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Madame Satã

Foto: Divulgação
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Com chapéu de palha, camisa de seda, chinelo ou tamanco, Madame Satã foi personagem célebre da Lapa, bairro da cidade do Rio de Janeiro onde fez fama e criou confusão


Contadas ao acaso, as histórias sobre o personagem que ganhou espaço na memória nacional como Madame Satã tomam ares de ficção. A construção da figura lendária começou ainda na infância de João Francisco dos Santos, que nasceu em fevereiro de 1900, em Glória do Goitá, interior de Pernambuco. A mudança para o Rio de Janeiro se deu em 1908, um ano após a morte do pai, Manoel Francisco dos Santos. Para driblar dificuldades financeiras, a mãe, Firmina dos Santos, trocou o menino por uma égua. A promessa era de que ele teria uma vida melhor, com casa e estudos garantidos. Porém, o que lhe sobrou foi trabalho escravo.

As condições precárias o fizeram abandonar o trabalho seguindo outra promessa feita pela dona de uma pensão. No entanto, o trabalho pesado só trocou de endereço e João Francisco se viu obrigado a escapar do destino novamente. Dessa vez, seguiu sozinho para o bairro da Lapa, local em que se tornou célebre.


Parte da história

A mudança de João Francisco para o Rio de Janeiro coincidiu com um momento de transformações não só na cidade, mas no país. “Ele viu um Rio que se transformava. As ruelas do centro deram lugar a largas avenidas. As populações mais pobres foram sendo afastadas do centro da cidade, as favelas começavam a crescer. A polícia encarregava-se de reprimir e prender os praticantes de um estranho ritual chamado samba. Para escapar da polícia, os primeiros sambistas corriam para o morro. Lá, o samba pegou e se desenvolveu. O caso entre João e a Lapa foi de amor à primeira vista”, explica o autor do livro Madame Satã – Com o Diabo no Corpo (Editora Brasiliense, 2005, 2ª edição), Rogério Durst. Além da situação regional, o surgimento do personagem e o auge da boemia carioca esbarraram nos reflexos da queda da bolsa de Nova York (1929), na Revolução de 1930 (que começou a sedimentar o poder político de Getúlio Vargas) e na opressão do Estado Novo.

Durante a juventude, João foi trabalhar como garçom em uma casa de tolerância da Lapa, onde também aprendeu a ser cozinheiro – profissão que desempenharia em vários momentos da vida. Exercendo a função em uma pensão no Catete, conheceu a atriz Sara Nobre, que o introduziu no universo das artes e do teatro. O ano de 1938 marcou sua transição efetiva para Madame Satã, alcunha que vira nome próprio, devido à fantasia que usava e que lhe rendeu o primeiro lugar no concurso do baile de carnaval no Teatro República.


Entre o feminino e o masculino

Madame Satã era bom de briga, famoso por ser o homossexual mais macho da história. Passou a viver com Maria Faissal, em 1946, aos 34 anos de idade, teve seis filhos adotivos e não deixava de se afirmar homossexual: “Sempre fui, sou e serei”.

A professora adjunta de Antropologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Paula Mendes Lacerda menciona que a aparente dualidade de Madame Satã foi cultuada por ele próprio ao longo da sua vida, mas, ainda que não exclusivamente, também é produto de nossa sociedade, que estipula papéis de gênero distintos para homens e mulheres. “Na nossa cultura, a agressividade, a valentia e a violência são associadas a comportamentos tidos como ‘masculinos’, enquanto certas performances artísticas, a suavidade dos movimentos ou a postura ‘passiva’ em uma relação sexual são tidas como elementos ‘femininos’” compara. “É interessante como Madame Satã, um personagem que viveu as primeiras décadas do século 20, ajuda-nos a criticar a polaridade entre tais papéis de gênero.”


Prisões e polêmicas

Madame Satã costumava dizer que sua fama de briguento começou em 1928. Em vida, afirmou ter sido preso injustamente, quando um guarda civil levou um tiro na esquina da rua do Lavradio com a avenida Mem de Sá.  De acordo com Rogério Durst, Madame Satã foi condenado a 16 anos, mas mais tarde foi absolvido por legítima defesa. “A partir daí, entra definitivamente na vida da malandragem. Entre 1928 e 1965, passa 27 anos e 8 meses – intercalados – na prisão”, acrescenta.

Outro caso famoso, contado em diferentes versões, foi a briga com o sambista Geraldo Pereira, em 1955. Uma delas relata que o sambista morreu devido a um soco de Madame Satã, o que não foi confirmado na época. Meses após essa briga, o boêmio foi preso por furto e cumpriu pena em Ilha Grande, onde trabalhou como cozinheiro e teve sua pena reduzida. “Em todos os seus anos de cadeia, Satã foi respeitado tanto pelos outros presos como por funcionários e diretores das prisões”, afirma Durst em seu livro.


De volta à cena

Buscando conciliar as performances como transformista nos bares da Lapa com os percalços causados por seu temperamento, Madame Satã acabou na obscuridade, entre prisões e tentativas de se firmar na cena artística da época.

Em 1965 se viu livre das prisões, mas decidiu permanecer em Ilha Grande. A partir de 1970, Satã volta a ser assunto devido a uma entrevista concedida ao Pasquim. Publicada em 1971, a edição trouxe em suas páginas toda a sinceridade do personagem que via em perspectiva a própria lenda e voltou a ser requisitado. Todos queriam ouvir as suas histórias.

Na opinião de Paula, ver Madame Satã como um personagem é útil para compreender a sua trajetória. “Alguns chegam mesmo a falar em mito e ambas as categorias expressam o aspecto de uma figura notória, contraditória e polêmica. Aparentemente, para que Madame Satã pudesse se tornar uma figura respeitável e temida – sobretudo entre a ‘nata’ da malandragem carioca –, era preciso fomentar histórias a seu respeito e estas eram de valentia”, afirma. “Nesse sentido, podemos dizer que o maior contador de histórias sobre Madame Satã foi o próprio. E assim ele construiu esse personagem que ainda hoje povoa a nossa imaginação sobre Lapa, malandragem e boemia carioca.”


(Madame Satã em destaque no Pasquim. A entrevista fez com que o interesse pelo personagem e as suas histórias só aumentassem)

Depois de aproveitar essa maré, Madame Satã viveu entre a Ilha Grande e o Rio de Janeiro. Ele pretendia lançar a segunda parte de suas memórias – em 1972 veio a público o livro Memórias de Madame Satã (Editora Lidador), de autoria de Sylvan Paezzo.

Contudo, em 1976, o boêmio, já aos 76 anos de idade, foi internado como indigente em um hospital de Angra dos Reis. Informados sobre a situação, o cartunista Jaguar – um dos jornalistas que entrevistaram Satã para O Pasquim – e amigos o levaram para um hospital em Ipanema, onde Madame Satã morreu devido a complicações de um câncer pulmonar.

Com uma vida intensa e sem rodeios, Madame Satã tornou-se o mais conhecido malandro que viveu no Rio de Janeiro, no bairro da Lapa, no período considerado áureo de sua boemia. “Personagem controverso, misturava valentia com poesia, seu caráter brigão às vezes cedia espaço às performances artísticas que realizava em cabarés da Lapa e da Praça Tiradentes, outro reduto boêmio do Rio de Janeiro”, resume Paula.



Mais do malandro
Filmes, livros e músicas flertam com o universo particular de Madame Satã

Madame Satã (2002)
O primeiro longa de Karim Aïnuz opta por mostrar o grande boêmio carioca sem se pautar nas biografias convencionais ou oficiais. Quase como ter nas mãos um personagem de estudo etnográfico, o diretor fez com que João Francisco – interpretado por Lázaro Ramos –, dialogasse com personagens fictícios, todos concebidos a partir da pesquisa feita para o filme. Entre os depoimentos colhidos está o de Jaguar, jornalista que o conheceu de perto e o entrevistou para o jornal carioca O Pasquim, em 1971.

A Arte da Entrevista (1995)
Nessa compilação de entrevistas organizadas pelo jornalista Fábio Altman, o leitor pode acompanhar a íntegra da conversa de Madame Satã com um grupo esperto do jornalismo brasileiro que representava O Pasquim. Entrevistado por Sergio Cabral, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Chico Júnior, Paulo Garcez, Jaguar e Fortuna, matou gradualmente a curiosidade de todos com sua sinceridade.

Tomba Homem (2008)
O documentário de Gibi Cardoso estabelece relações com o universo de Madame Satã ao retratar a travesti mineira Tomba Homem, que o conheceu e compartilhou com ele o cotidiano da Lapa carioca, ao mudar-se para o Rio de Janeiro. Ambos tinham em comum a coragem, o faro para confusão e conflitos com os policiais da região.

Rainha Diaba (1974)
Considerada uma das boas produções deste período do cinema brasileiro, o filme é associado a Madame Satã e à vida noturna carioca. Baseado num argumento de Plínio Marcos, foi dirigido por Antônio Carlos Fontoura e tem Milton Gonçalves, Nelson Xavier, Odete Lara, Wilson Grey e Stepan Nercessian no elenco.

Noite Cheia de Estrelas (1931)
A trilha sonora é importante para o filme de Karim Aïnuz e ajuda a compor o cenário noturno da Lapa de Madame Satã. Tanto que uma das cenas traz o ator Lázaro Ramos interpretando Noite Cheia de Estrelas, de autoria do carioca Cândido das Neves. A composição foi sucesso em várias vozes, entre elas Vicente Celestino, Evaldo Braga e Sílvio Caldas.

Largo da Lapa (1942)
O samba do compositor Wilson Batista traz nos versos a relação dos frequentadores com o bairro: Foi na Lapa que eu cresci / Foi na Lapa que aprendi a ler / Foi na Lapa que eu cresci e na Lapa eu quero morrer...