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Tércia Montenegro

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti


Já fazia mais de uma semana que eu fugia, num traçado nervoso por esse mapa do sertão, criando uma espécie de trilha que parecia o bordado de um insano. Estava exausto de tanto parar nas cidadezinhas somente para uma refeição, antes de escolher o próximo trajeto, o mais imprevisível que pudesse haver. Não dormia quase, nos sacolejos dos ônibus, em meio ao suor daqueles passageiros sempre com idêntica expressão. Estava para enlouquecer, pensando que a falta de sono me fazia viajar em círculo, com as mesmas pessoas entristecidas.

Na última parada, decidi finalmente que precisava de repouso. Telefonei para meu filho, disse mais ou menos o horário em que chegaria a Fortaleza, e ele prometeu me pegar na rodoviária. Quando o encontrei, quase meio dia depois, estava tão esgotado, que acho que nem o cumprimentei. Fazia dois anos que não via meu filho, mas não me passou pela cabeça abraçá-lo ou reparar em sua barba, para mim inédita. Ao desembarcar, só pude lhe pedir um local tranquilo onde pudesse dormir, com a máxima urgência.
Meu filho sorriu, compreensivo. Disse que tinha alugado um apartamento perto da praia: um local discreto, onde eu poderia descansar à vontade. Saiu na frente, carregando minha mala, mas talvez tenha percebido o meu ar de preocupação, porque acrescentou:

– Não se preocupe. Não fica na parte turística.

Realmente, quando chegamos às imediações do litoral, um pouco mais tarde, reparei que o lugar era mesmo tranquilo, distante dos hotéis e bares. Naquela altura, a praia era até deserta, com um vasto horizonte a se contemplar, em cores homogêneas. Eu me senti subitamente melhor e desenvolvi uma rápida conversa, dizendo a meu filho que sua mãe mandava lembranças, e que eu mesmo estava com muita saudade, esperando que no período daquela estada nós dois pudéssemos retomar alguns dos antigos hábitos – o pôquer, quem sabe.

Meu filho fez um gesto sobre o volante, algo assim evasivo, como quem não deseja negar o capricho de um velho, mas não compartilha sinceramente de suas vontades. Calei-me, constrangido, e foi nesse instante de silêncio que vi, naquele rosto barbudo que se voltava para meu lado, um par de olhos fixos. Friamente fixos.

Foi apenas um segundo de impressão, porém. Observei meu filho sorrir em seguida, contraindo as pálpebras com minúsculas rugas nas têmporas. Trocamos ainda algumas frases, enquanto ele estacionava o carro diante de um pequeno edifício. Esperei que ele saísse com a mala, atravessasse a rua e me chamasse, diante do portão gradeado. Só então, como que despertando de um torpor, levantei-me do assento.

O apartamento tinha somente um quarto, a varanda e a cozinha – tudo com paredes desbotadas e um cheiro de velhice que talvez viesse do sofá: um estofado em veludo verde antigo. Felizmente, havia uma rede armada, na falta do leito. Na cozinha, um mínimo de mantimentos – bolachas, latinhas de refrigerante e cerveja – na mesa ao lado da geladeira. Meu filho comentou que ainda não arranjara um fogão, mas acreditava que eu não ia querer cozinhar mesmo:

– Conheço uns restaurantes bons. A gente podia daqui a pouco sair, para o almoço – disse, consultando o relógio.

Respondi que não estava com fome; na verdade, queria apenas dormir, e para isso bastava um teto seguro, com aquela rede excelente.

– Ah, e aqui é bastante seguro. O senhor pode sair e entrar sem cuidado, que praticamente não há vizinhança. Além disso, olhe que vista privilegiada!

Ele se aproximara da varanda, e eu o segui, para conferir a paisagem de um azul compacto entre céu e mar. Muito bonito, respondi, e gostaria de contemplar por mais tempo, se não estivesse com tanto sono...

– Tudo bem, sr. Dorminhoco! Já vou sair. Repouse o quanto quiser. À noite, volto para buscá-lo.

Notei que pronunciou a última palavra com certo receio. Procurei seu olhar, mas o rosto estava voltado na direção da porta. Ele entregou-me a chave e abriu os braços para despedir-se. Quando me fitou, estava sereno, mas estranhei que me abraçasse segurando-me pela cintura, e não pelos ombros, como normalmente se faz. Parecia que tateava a existência de alguma arma sob minha camisa. Aquilo durou apenas um instante, mas foi o suficiente para dissipar meu sono.

Ainda caminhei para a rede estendida no quarto; cheguei a sentar nela, balançando os pés por um tempo. Mas, quando escutei o ronco do motor dois andares abaixo, não resisti à tentação de olhar pela janela. Lá estava o carro de meu filho, deslizando junto à calçada deserta, completamente deserta a não ser por uma pessoa. Um homem de jaqueta escura, de quem não distingui as feições, estava parado junto ao poste. Meu filho avançou lentamente até ele, então parou o veículo para que ele entrasse. Não houve hesitações ou diálogos; parece que a carona já estava combinada com antecedência.

Esperei que o carro sumisse de vez, com a mesma marcha lenta. Então, apurei os ouvidos para perceber qualquer ruído suspeito. Havia apenas o som abafado das ondas, um pouco além. Voltei a sentar na rede, mas logo tomei a decisão. Sem ao menos ter comido qualquer coisa na cozinha, passei pelo sofá verde e peguei minha mala.


Tércia Montenegro começou sua carreira como ficcionista em 1998 com O Vendedor de Judas, livro que está em sua quinta edição e recebeu o selo PNBE (Programa Nacional Biblioteca na Escola), do MEC. É autora também de O Tempo em Estado Sólido (Grua, 2012), Os Espantos (Demócrito Rocha, 2012) e do ebook Meu Destino Exótico (Amazon 2013), entre outros.