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Um mundo em processo nas engrenagens dinâmicas da comunicação e da cultura

Efemeridade e imaterialidade desafiam a nossa compreensão da comunicação e da cultura nestes primeiros quinze anos do século XXI. Como vamos acessar a produção cultural daqui a quinze anos, individual e coletiva, se certamente tudo que estamos produzindo e armazenando em formatos digitais pode desaparecer com um colapso de falta de energia? A produção cultural está ficando pior que antes? A comunicação entre os seres humanos está melhorando ou piorando?

É claro que nenhuma resposta absoluta e muitos questionamentos é a única certeza que temos. Mas se lançarmos um olhar mais atento para o mecanismo da transformação cultural e de como a comunicação vai ser, invariavelmente, uma expressão da cultura na qual vivemos, podemos ampliar nossa compreensão para um nível mais estrutural e menos momentâneo. A produção cultural contemporânea traduz os valores do mundo que vivemos, assim como a comunicação entre os seres humanos.

Se nos propormos a uma leitura do mundo por meio da¿—¿não se assustem¿—¿Semiótica da Cultura, vamos encontrar unidades de compreensão e significados a partir das quais lemos e entendemos a cultura¿—¿a isso podemos nomear “textos da cultura”. Quem primeiro usou este termo foi Iuri Lotman, o qual estudei com a professora Irene Machado na Universidade de São Paulo.

Podemos entender o cinema como um texto da cultura; a TV como um outro texto; a literatura como outro, e assim por diante. Os textos estão em constante contato, atuando e se influenciando mutuamente; nesta dinâmica observamos o surgimento de novos textos e linguagens, transformando a cultura e a comunicação. Quando o contato entre um texto e outro é muito dinâmico, surge um fenômeno imprevisível e de alto poder transformador, como a internet.

Este mecanismo explica estruturalmente a influência cada vez mais óbvia das linguagens dos meios de comunicação nas mais tradicionais formas de expressão artísticas, como as artes plásticas, cinema, literatura, poesia. O Leão de Ouro na Bienal de Veneza de 2011, por exemplo, foi para Christian Marclay com a obra em vídeo The Clock, na qual ele opera a história do cinema como uma base de dados, ao gerar vinte e quatro horas de vídeo encadeadas por cenas de filmes que mostram… as vinte e quatro horas do dia, de diversas maneiras¿—¿no relógio, nas falas dos personagens, e assim por diante. Sinal de que os artistas não criam mais nada de original? Ou fato da influência do big data nas artes plásticas? Ficamos com a segunda opção, pois todas as transformações que presenciamos hoje na área da comunicação e da cultura não são radicalmente novas, mas sim, a ação da cultura em movimento.

Como entender de forma coerente a transformação dos meios de comunicação, como a crescente participação do público na produção e disseminação de informações, senão pelo fato de que a informática possibilitou concretamente a interferência direta na comunicação e na cultura, mas que o gesto da participação nos textos culturais vinha sendo anunciado há tempos por artistas como Helio Oiticica, que chamava o público como “participador”, e nas obras de Lygia Clark e Lygia Pape, ao convidarem o público para a interação com a obra?

O sistema de indexação do Google começou quando se encontrou a primeira lista de livros conhecida em um tablete de argila, em 2000 a.C. O impulso lúdico do homem na cultura do jogo, explicada por Johan Huizinga, é a pulsão que nos move para um mundo no qual a comunicação e a cultura se tornam cada vez mais gamificados. Os códigos de relacionamento social e pessoal servem de base para o design das redes sociais que, por sua vez, criam novos códigos de relacionamento social e pessoal inéditos, como o porn revenge. Os exemplos são inúmeros.

O que importa é nos situarmos a partir de uma compreensão mais dinâmica e menos passiva dos processos culturais e da sua continuidade. É na fricção entre os textos que presenciamos a formação do cenário da comunicação e cultura contemporâneos. O fim da era da produção industrial linear e analógica e o início da era informática aleatória e digital evidencia que precisamos estar mais atentos aos processos, e não aos produtos; aos fluxos e às redes, e não às posições fixas de um mundo que, mesmo com recursos finitos, nos fizeram crer, um dia, imutável, não importando o que fizéssemos com ele.

Daniela Osvald Ramos é jornalista, professora e pesquisadora no curso de Jornalismo da ECA USP.