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Uma história de muitas ladeiras

Fábrica da Fiat, em Betim: a segunda maior linha de  montagem / Foto: Divulgação
Fábrica da Fiat, em Betim: a segunda maior linha de montagem / Foto: Divulgação

Por: MIGUEL NÍTOLO

Em fevereiro, em entrevista para a revista “IstoÉ Dinheiro”, o presidente da Mercedes-Benz do Brasil e CEO da empresa na América Latina, Philipp Schiemer, disse, referindo-se ao momento econômico, que “a crise é um preço que temos de pagar para voltar a crescer”. É claro que Schiemer se referia ao país, como um todo, mas se estivesse falando especificamente da indústria automobilística também não deixaria de ter razão. Não que o setor esteja passando por um momento decisivo ou perigoso. O fato é que as montadoras subiram e desceram ladeiras no decorrer de toda a sua história no país por conta, sempre, da conjuntura nacional. Em 2014, por exemplo, já sob o efeito da desaceleração da economia, e mesmo com a ajuda oficial representada pelo desconto no recolhimento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na venda de modelos novos, as fábricas de veículos sofreram um revés com a produção de 3,15 milhões de unidades, ou 15,3% menos que em 2013, ano em que foram montados 3,7 milhões de veículos, levando ao fechamento de 12,4 mil vagas. A oferta do ano passado, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), foi a menor desde 2009, quando saíram das linhas de fabricação 3,07 milhões de unidades. As exportações também estão em baixa: em 2014, seguiram para fora do país 334,2 mil veículos montados (US$ 11,5 bilhões), 40,9% menos que em 2013, quando as vendas externas somaram 565,1 mil unidades (US$ 16,5 bilhões). O recorde das exportações pertence a 2005, com o embarque de 724,1 mil autos.

Uma corrida de olhos pelos números do setor a partir de 1957 (ano oficial da instalação da indústria de carros no Brasil) torna possível ver que os tombos foram muitos, uns maiores, outros menores, mas todos eles capazes de afetar o sistema produtivo da nação. As montadoras continuam respondendo por parcela apreciável do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, considerando que a cadeia automotiva vai muito além das linhas de produção, envolvendo milhões de pessoas de segmentos diversos. Pode não parecer, mas o que acontece ali vai influir nos negócios do borracheiro, do lavador de carros, do funileiro, do mecânico e da seguradora – para citar apenas alguns ramos empresariais –, sem falar da indústria e do comércio de autopeças. Menos carros novos nas ruas, menor faturamento para um número incalculável de brasileiros.

Foi no final dos anos 1950, no governo de Juscelino Kubitschek – ou, simplesmente JK, como a imprensa gostava de se referir a ele –, o arquiteto da indústria automobilística brasileira, que as grandes do ramo em escala global encontraram solo fértil no Brasil para crescer. Até então os veículos eram em sua maior parte apenas montados aqui; com os estímulos oficiais, passaram a ser fabricados internamente com bom índice de nacionalização. A Romi, de Santa Bárbara d’Oeste, a 139 quilômetros de São Paulo, conhecido fabricante de tornos atualmente com linhas de produção também no exterior, antecedeu à entrada no mercado nacional das gigantes do setor com a montagem em série, no interior paulista, em 1956, da pequena Romi-Isetta, veículo capaz de transportar duas pessoas e rodar 25 quilômetros com apenas um litro de combustível. A Romi deixou de industrializar seu carro compacto em 1961, depois de atingir a marca de 3 mil unidades fabricadas.

A China na frente

Convencionou-se dizer, todavia, que a história da linha de montagem no país começou em 1957, com a produção da perua DKW, modelo com tração dianteira equipado com motor de dois tempos e três cilindros. O grande impulso, no entanto, seria dado dois anos mais tarde com o lançamento de vários outros veículos, entre eles o Volkswagen 1200 (Fusca), o sedã DKW, o Simca Chambord, a perua Kombi e o Dauphine (Renault).

Naquele mesmo ano, de acordo com a Anfavea, o país montou 30.533 veículos, assim distribuídos: 10.440 automóveis, 1.588 comerciais leves, 16.259 caminhões e 2.246 ônibus, oferta que, no ano seguinte, totalizaria 60.983 unidades. A primeira queda no volume de produção foi registrada em 1963, portanto, seis anos depois do começo de tudo: naquele ano o setor industrializou 174.191 veículos contra 191.194 em 1962. Outros tombos aconteceriam em 1977, 1981, 1984, 1987, 1990, 1998 e 1999. De todos esses períodos, é de 1981 o registro do maior recuo com a fabricação de 693.416 veículos, 32% menos que em 1980 (1.091.205). A indústria nacional havia entrado literalmente em parafuso e as montadoras, pelo seu peso no contexto fabril brasileiro, ajudado a puxar a economia para baixo.

Mesmo tendo começado tardiamente em relação aos tradicionais fabricantes de veículos automotores, como a Alemanha, os Estados Unidos, a França, a Inglaterra, a Itália e o Japão, o Brasil é, atualmente, o quarto maior mercado no ranking internacional do setor (números de 2014) conforme a Jato Dynamics, empresa de consultoria inglesa do ramo automotivo. A Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave) informou que no ano passado o país fez o emplacamento de 3.497.811 unidades entre automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus, 7,15% menos que em 2013. Foi a maior queda anual dos últimos 12 anos. A entidade retratou para a imprensa que aquele número já havia caído 0,9% em 2013, depois de seguidas altas desde 2004.

O primeiro lugar do ranking, que durante décadas pertenceu aos americanos, agora é da China, líder mundial que avança a toda corda com a venda, no exercício passado, de 21 milhões de veículos, um salto de 8,8% sobre 2013. Os Estados Unidos, a “casa” do carro (a frota circulante no país de Obama é de quase 300 milhões de autos), vieram em seguida, com 16,5 milhões de unidades, um crescimento de 5,9%, e o Japão, o terceiro da lista, com 5,5 milhões de novos emplacamentos. Depois do Brasil despontaram a Alemanha, com 3,2 milhões; a Índia, com 2,88 milhões; a Grã-Bretanha, com 2,7 milhões; a Rússia, com 2,4 milhões; a França, com 2,1 milhões, e o Canadá, com 1,8 milhão.

No mercado brasileiro, em 2014, houve uma mudança significativa na participação das marcas. A Fiat manteve a primeira posição no ranking, com 20,97%, agora seguida pela General Motors (17,39%). A Volkswagen, que ocupava a vice-liderança, fechou o ano em terceiro lugar com 17,32%. Vieram depois a Ford (9,26%), Renault (7,13%), Hyundai (7,12%), Toyota (5,87%), Honda (4,14%), Nissan (2,17%) e Mitsubishi (1,78%) – as outras montadoras dividiram entre si os 6,84% restantes. Durante anos, um reinado que se encerrou em 2013, o popular Gol, da Volkswagen, foi o carro mais vendido no país, mas cedeu espaço para o novo campeão do segmento, o modelo Palio, da Fiat. No ano passado, o mercado consumiu 183.741 unidades do Palio e 183.356 do Gol.

Poucas pessoas sabem, mas a planta fabril da Fiat, no município mineiro de Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, é a maior do gênero no país e a segunda do setor em escala mundial. Com área total de 701.696 metros quadrados, capacidade anual de produção de 950 mil veículos e 19 mil empregados, a fábrica foi inaugurada em 1976, ano em que a produção nacional atingiu 924.672 unidades. Apesar de seu gigantismo, a linha de montagem dos italianos em Minas se apequena quando comparada à base industrial da Hyundai em Ulsan, na Coreia do Sul, a maior do mundo, com 5 milhões de metros quadrados, capacidade de produção anual de 1,5 milhão de veículos e um quadro de 34.200 funcionários. Ali operam cinco linhas de produção entre caminhões; carros compactos, médios e grandes; implementos e SUVs (sigla do inglês para sport utility vehicle que significa veículo utilitário esportivo).

O começo, em 1919

Ao contrário da queda experimentada no mercado interno, e segundo a consultoria Focus2move, em 2014 a Volkswagen foi guindada à liderança mundial nas vendas de carros e comerciais leves com o emplacamento de 9,91 milhões de unidades, assumindo o lugar da Toyota (9,81 milhões), que ocupava o posto desde 2009. Foi um acontecimento inédito, já que, por muitos anos, antes da ascensão da montadora japonesa, as americanas Ford e General Motors se revezavam no comando dos negócios do setor. A Volkswagen foi alçada às alturas graças, principalmente, aos bons resultados de marcas tradicionais que integram o grupo alemão, como a Audi e a Skoda. A história da montadora alemã no Brasil teve início em 1953, com a abertura de uma filial na Rua do Manifesto, no bairro paulistano do Ipiranga, na verdade um pequeno galpão onde trabalhavam, nos primeiros tempos, somente 12 funcionários. Seis anos mais tarde a empresa abriu as portas da unidade da Via Anchieta, em São Bernardo do Campo, no ABCD, uma das maiores linhas de montagem do país (990 mil metros quadrados de área construída em terreno de 1,6 milhão de metros quadrados). Em 1976, com planos de produzir o modelo Gol, a empresa inaugurou sua segunda fábrica em solo brasileiro, desta feita em Taubaté, no Vale do Paraíba, a 130 quilômetros de São Paulo. Depois, em 1996, colocou em funcionamento, no município de São Carlos, a 230 quilômetros da capital paulista, uma das três mais portentosas plantas de motores do grupo no mundo. E, em 1999, ergueu no município paranaense de São José dos Pinhais, na Grande Curitiba, uma moderna linha de produção.

Na verdade, os primeiros passos da indústria automotiva brasileira não foram dados no fim dos anos 1950, mas em 1919 com a instalação, na cidade de São Paulo, de uma filial da Ford, 16 anos após seu nascimento nos Estados Unidos. A empresa ocupou em princípio um sobrado na Rua Florêncio de Abreu, no centro velho da capital paulista, e suas atividades, que se prolongariam assim por vários anos, consistia em importar da matriz veículos acabados e partes (neste caso para fazer a montagem local).

A história da empresa mostra que no primeiro ano de suas operações no país foram vendidos 2.447 automóveis, e apresentado ao mercado o primeiro trator da marca fabricado nos Estados Unidos, o modelo Fordson. Em 1920, a Ford comercializou 4 mil unidades e transferiu suas instalações para a Praça da República, também na parte central de São Paulo, passando a ocupar um galpão até então utilizado como pista de patinação. De lá para cá, a expansão da empresa em território brasileiro levou à construção de linhas de montagem em São Bernardo do Campo; Taubaté, e Camaçari, na Grande Salvador – nesta última são produzidos, anualmente, 250 mil veículos. A Ford também opera um campo de provas em Tatuí, a 131 quilômetros da capital paulista.

Logo depois da Ford foi a vez de a General Motors se estabelecer em solo brasileiro com a abertura de uma filial, em 1925, na Avenida Presidente Wilson, no bairro paulistano do Ipiranga, e o primeiro modelo oferecido ao mercado foi um furgão para entregas urbanas. Dois anos mais tarde, a empresa comemorava a comercialização de 25 mil veículos e ensaiava os primeiros passos para a construção da linha de produção de São Caetano do Sul, no ABCD, inaugurada em 1930. Esse complexo industrial, que se esparrama por uma área de 290,5 mil quilômetros quadrados, festejou, em agosto de 2014, a marca de 6 milhões de unidades produzidas. A montadora atua no Brasil por meio de outras unidades industriais, como a fábrica de Gravataí, no Rio Grande do Sul, e a de São José dos Campos, em São Paulo.

“Resultado equilibrado”

A atuação no país de um elevado número de marcas (só a Anfavea abriga mais de duas dezenas delas) reafirmam o potencial do mercado brasileiro e a confiança de que o futuro é promissor, apesar de alguns acidentes de percurso. A aposta no Brasil tem feito crescer a frota circulante nacional, e a prova cabal disso está nas ruas das grandes metrópoles, cada vez mais entupidas pelo excesso de carros. De acordo com aquela entidade, a quantidade de veículos nas mãos dos brasileiros totalizava 39,7 milhões de unidades em 2013, número que poderá chegar a 95,2 milhões em 2034 caso seja mantido o ritmo atual de expansão da frota. Pesquisadores afirmam, entretanto, que esses resultados só se confirmarão se o setor automotivo experimentar até lá um crescimento médio anual da ordem de 3,7% (expectativa não atendida em 2014), a população saltar dos atuais 201 milhões de habitantes para 226 milhões (crescimento médio de 0,5% ao ano) e o PIB não parar de crescer.

Alguns estudos mostram que esse cenário não é obra de ficção. Projeções feitas pelo mercado apontam que a produção brasileira de veículos leves, a mais importante do setor, poderá saltar para 6,2 milhões de unidades até 2025, quase o dobro da oferta atual. E uma empresa de consultoria inglesa do ramo automotivo, otimista, afirma que essa marca será alcançada já na virada da próxima década.

É certo que na maior parte das situações as projeções refletem o momento econômico, o que representa dizer que elas podem ou não ser concretizadas, especialmente agora que o país se acha à beira de uma recessão, com o PIB próximo de zero e nenhuma esperança de crescimento em 2015. Diante de um quadro tão desalentador, qual é a expectativa da indústria automobilística para o corrente ano? “Para 2015 esperamos um primeiro semestre difícil, mas os ajustes promovidos nos levarão a um resultado equilibrado, no mínimo com desempenho igual a 2014”, acredita Luiz Moan Yabiku Junior, presidente da Anfavea. Ele complementa seu raciocínio, argumentando que “em 2014 enfrentamos uma série de desafios, como a forte seletividade na concessão de crédito, feriados em razão de grandes eventos e cenário complexo no comércio exterior. Contudo, o segundo semestre já apresentou recuperação do licenciamento e da produção”.

O presidente da Fenabrave, Alarico Assumpção Júnior, também opina, só que em relação ao comércio de veículos. Segundo ele, os negócios na área deverão recuar 0,43% em 2015 (projeção feita no início de janeiro passado, mês em que as vendas do setor teriam despencado 31,4% em relação a dezembro de 2014) com a comercialização, no período, de 4.906.418 unidades. Assumpção destacou que no caso de automóveis e comerciais leves, a queda será ainda maior, de 6,91%, com a previsão de vendas de 3.312.116 veículos. O executivo da Fenabrave afirmou que as preocupações para este ano são os juros elevados e a volta da cobrança do IPI. “Um ponto positivo em 2015 é que já temos conhecimento do mercado e das regras que irão vigorar”. Ele lembra que em 2014 os empresários perderam quase 60 dias aguardando os anúncios oficiais que interessavam ao setor. “Este ano, portanto, o cenário não é pior”, concluiu.

As montadoras, é claro, não estão dispostas a assistir de braços cruzados a queda da produção e das vendas. Estamos apenas iniciando 2015, mas algumas marcas já apresentaram ao mercado alguns modelos 2016, casos da Fiat (modelo Bravo), Honda (Civic) e Hyundai (Tucson). Em depoimento à imprensa, Gerardo San Roman, presidente da Jato Dynamics do Brasil, falou que é tudo uma questão de marketing e de comportamento do mercado. “Há 20 anos havia uma concorrência bem controlada, o mercado estava muito bem repartido entre a Ford, a Fiat, a GM e a Volkswagen. Hoje, a disputa está muito mais forte e é preciso se mostrar melhor que o concorrente”.

 


 

Mercado em efervescência

É sabido que bilhões de dólares estão sendo investidos no setor automotivo com vistas à instalação de seis novas linhas de montagem, além de projetos de ampliação de fábricas antigas. Alguns desses aportes vêm sendo bancados por marcas que atendem o mercado brasileiro por meio da importação de seus modelos e decidiram apostar na nacionalização para atender ao Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto), em vigor desde janeiro de 2014, que prevê estímulos e proteção para a produção de automóveis feitos no país.

Trocando em miúdos: a disputa pelo consumidor vai ficar aguerrida, e isso se tornará perceptível à medida em que as empresas que ainda não fabricam internamente passarem a fazê-lo. Agora mesmo a chinesa Chery, inaugurada em agosto de 2014, está iniciando as operações comerciais de sua fábrica no município paulista de Jacareí, a 82 quilômetros de São Paulo – ela é pioneira entre as montadoras da nação do mandarim a se estabelecer com linha de produção no país do carnaval. A empresa está colocando à disposição do mercado o compacto Celer, um dos campeões de vendas da marca.

Fundada em 1997, a montadora chinesa é a maior indústria automotiva independente de seu país, e a filial brasileira é a primeira planta produtiva da companhia no exterior. A linha de montagem em Jacareí, resultado de investimentos da ordem de R$ 1 bilhão, tem capacidade anual de produção de 150 mil unidades. A Chery informa que ainda em 2015 poderá iniciar a fabricação da nova geração do compacto QQ, “totalmente reformulado para atender o mercado brasileiro”. Também revela que para 2016 está em seus planos a montagem local do SUV médio Tiggo.