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O café nosso de cada dia

O grão e sua importância: responsável por 2,68% das  exportações / Foto: Arquivo PB
O grão e sua importância: responsável por 2,68% das exportações / Foto: Arquivo PB

Por: MIGUEL NÍTOLO

Apesar da inconstância das estatísticas e dos problemas que assolam o desempenho do setor, em especial a longa estiagem que andou brincando de bicho-papão com a meteorologia, os números que retratam a performance da cafeicultura são de encher os olhos ante a produção da concorrência internacional. O Brasil colheu em 2014 o equivalente a 45,3 milhões de sacas de café beneficiado de 60 quilos, um recuo de 7,7%, ou 3,8 milhões de sacas, em relação à safra de 2013 (49,1 milhões). O desempenho negativo do setor, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) – empresa pública vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) – se deveu à queda de 15,6% na produção do café arábica, o tipo mais cultivado no país, motivada pela falta de chuva nos primeiros meses do ano, pela inversão da bienalidade em algumas regiões (um ano é bom, no outro é ruim) e pelas geadas no Paraná. As peraltices do clima foram determinantes para reduzir os números da produção mineira (-18,1%) e paranaense (-66,1%).

Já a oferta do conilon, também conhecido por robusta, registrou aumento de 20% em razão, sobretudo, da renovação de culturas e do revigoramento da produtividade, além das condições climáticas favoráveis no Espírito Santo, o maior cultivador da variedade. Vale dizer que o café arábica é mais completo nos itens aroma, acidez e doçura; o conilon, de seu lado, é mais amargo porque tem mais cafeína.

Algumas previsões falam em acentuada queda da safra em 2015; outras, numa pequena elevação, prognósticos que, diante dos sobressaltos de toda ordem, podem acabar não correspondendo à realidade. São Pedro vai colaborar com a agricultura, mandando a quantidade de água que o campo precisa? Ou, por conta da longa estiagem que marcou 2014 e avançou sobre 2015, o mal já está feito? Levantamento da safra de café destes períodos, divulgado pela Conab, no início deste ano, estima que a produção oscilará entre 44,1 milhões e 46,6 milhões de sacas no período. O resultado pode apresentar uma redução de 2,7%, caso seja alcançado a menor projeção, ou um aumento de 2,8%, se comparado o limite superior aos números da safra anterior.

A assessoria de imprensa da Conab destaca que a forte estiagem no final da safra anterior e o intenso frio durante a florada da atual interferiram de maneira negativa na produtividade do conilon. E que a oferta do café arábica pode avançar de 0,6% a 6,5%, reflexo do crescimento da cultura na Zona da Mata, em Minas Gerais, e do avanço da produção no Paraná. Calculada entre 32,5 milhões e 34,4 milhões de sacas, a produção dessa modalidade de café deve corresponder a 75,1% do volume total a ser beneficiado no país no corrente exercício. Já para o conilon é estimada uma produção de 11,6 milhões a 12,2 milhões de sacas, e as primeiras informações dão conta de que apenas o Espírito Santo deverá responder pela colheita de 8,52 milhões a 8,96 milhões de sacas. A projeção da Conab, não é única. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimou uma oferta na presente safra de 45,5 milhões de sacas, uma previsão bastante próxima da apresentada por aquela empresa pública.

O Conselho Nacional do Café (CNC), todavia, diz que a produção do setor deverá ficar abaixo desses patamares. A entidade, que agrupa associações representativas da cafeicultura no país, argumentou que as estimativas divulgadas até aqui talvez não tenham considerados os danos já causados pela seca aos cafezais, notadamente no mês de janeiro deste ano, quando choveu pouco. Bom volume pluviométrico nos dois primeiros meses do ano é crucial para o desenvolvimento uniforme dos grãos, situação que se contrapõe ao cenário dos últimos tempos, com temperatura elevada, escassez de chuva e consequente déficit hídrico no solo. Há uma outra pedra no sapato que também poderá comprometer parte da oferta em 2015: as podas feitas no segundo semestre do ano passado em razão da seca, medida extrema adotada por muitos cafeicultores que deixaram de acreditar na capacidade de recuperação de suas plantas. “Agora é que elas não produzirão mesmo”, dizem os entendidos.

Liderança global

Diante de um clima tão adverso, o setor procura direcionar a luneta para bem longe preocupado com os números futuros da produção. Tanto que há vozes brandindo que a safra de 2016 já estaria irremediavelmente afetada pelo baixo índice de vegetação dos cafezais em decorrência do tempo quente e seco nas áreas de cultivo. Especialistas observam, todavia, que é muito cedo para estimar uma colheita que ainda está tão longe.

É possível, entretanto, que o parque cafeeiro, que em 2014 ocupava pouco mais de 2,25 milhões de hectares, 2,6% menos do que em 2013, se mantenha nos mesmos níveis das últimas safras, com pequenas oscilações, para cima ou para baixo. Em 2013, por exemplo, a área ocupada com culturas em produção e em formação era de 2,31 milhões de hectares; em 2012, de 2,32 milhões; em 2011, de 2,27 milhões; e, em 2010, de 2,28 milhões. Segundo a Conab, Minas Gerais tem o maior parque cafeeiro, com 1,2 milhão de hectares (predomínio da espécie arábica, com 98,8% da área cultivada), seguido pelo Espírito Santo, com 474,6 mil hectares (60% destinada ao café conilon). Especula-se que mais de 8 milhões de pessoas vivam da cafeicultura no Brasil, uma cadeia que começa na roça (plantação e colheita) e termina no supermercado e no balcão das cafeterias.

Graças à expansão e modernização do setor, surgiu a figura do barista, especialista no preparo da bebida que, por causa do tipo de trabalho que executa, ajuda a difundir os cafés de qualidade. “Eles estão para o café assim como os sommeliers estão para o vinho”, compara a Associação Brasileira de Café e Barista (ACBB). Com uma diferença, ela diz em seu site: o barista tem a capacidade de criar novas e originais receitas e apresentações tanto de café expresso quanto de cappuccinos e outros drinques e coquetéis (à base de expresso).

Independente das estatísticas conflitantes sobre o comportamento da safra em curso, o país continua, como sempre, ocupando posição de destaque na lista dos principais fornecedores globais. No ranking de 2014, o Brasil, mais uma vez, ocupou a primeira posição com 32,1% da produção de café, seguido de longe pelo Vietnã, com 18,4% (26 milhões de sacas), Colômbia com 8,5% (12,1 milhões), Indonésia, com 6,3% (9 milhões), e Etiópia, com 4,2% (6 milhões). O quadro pouco mudou em relação a 2013, a não ser a troca de posições entre indonésios e colombianos: naquele ano o Brasil figurou com 33,8% (49,1 milhões de sacas), o Vietnã, com 18,9% (27,5 milhões), a Indonésia, com 8% (11,6 milhões), a Colômbia, com 7,5% (10,9 milhões), e a Etiópia, com 4,5% (6,6 milhões de sacas). Uma curiosidade: na lista dos 15 principais produtores mundiais, a América Latina é representada por nove nações, seguida da África e da Ásia, cada qual com três participantes.

Assim como no Brasil, a produção do grão ao redor do planeta oscila ao sabor do clima. A Organização Internacional do Café (OIC) revelou, em janeiro passado, que a oferta do setor deverá cair 3,6% neste ano, passando de 146,8 milhões de sacas, na safra 2013/2014, para 141,4 milhões. A entidade esclareceu, em seu relatório mensal de mercado, que a produção das espécies arábica e conilon deverão despencar 3,7% e 3,5%, respectivamente. É esperada uma ligeira recuperação apenas para o tipo “colombianos suaves”, com alta de 3,2% sobre a safra de 2013/2014, que somou 12,1 milhões de sacas. A expectativa é que a produção de café na Colômbia continuará crescendo, só que em menor escala em relação aos anos anteriores. Perto de 60% da produção mundial é de café do tipo arábica, o grão utilizado pela Starbucks, a maior rede de cafeterias do mundo e, por questões óbvias, uma das mais destacadas consumidoras em escala global.

A presença do café brasileiro no mercado internacional, pode-se afirmar, data, basicamente, dos primeiros anos de seu cultivo, séculos atrás (foi o principal item exportado pelo país no século 19 e nas primeiras décadas do 20). As vendas externas do setor permitiram, em 2014, o ingresso de US$ 6,66 bilhões (36 milhões de sacas), receita 26,27% superior ao montante negociado em 2013, da ordem de US$ 5,27 bilhões, quando foram embarcadas 32 milhões de sacas. De acordo com o Mapa, no exercício passado o café foi o quinto item mais vendido ao exterior pelo agronegócio nacional, ficando atrás apenas dos produtos florestais (US$ 9,95 bilhões), do complexo sucroalcooleiro (US$ 10,3 bilhões), das carnes (US$ 17,4 bilhões) e da soja e seus derivados (US$ 31,4 bilhões). As exportações globais do agribusiness em 2014 chegaram a US$ 96,7 bilhões, uma pequena queda ante o resultado de 2013 (US$ 99,9 bilhões), e um pequeno salto sobre 2012 (US$ 95,8 bilhões). O Brasil exporta para uma infinidade de mercados, mas os principais compradores de café são a Alemanha, a Bélgica, os Estados Unidos, a Itália e o Japão.

As vendas internacionais caminham dentro dos prognósticos, mas o setor cobra do governo mais empenho na divulgação no exterior dos cafés solúveis e especiais. No início de 2015, reunidos com a ministra Kátia Abreu, do Mapa, os representantes das indústrias que atuam na área reclamaram da falta de investimento em marketing que os tornem reconhecidos interna e externamente. Ainda aproveitaram o momento para dizer que a falta de infraestrutura, a elevada carga tributária e o produto importado também dificultam a concorrência do produto nacional. A ministra disse que tentaria selar uma parceria com o ministério do Turismo com vistas a fomentar o marketing do café brasileiro nas Olimpíadas de 2016, que será realizada no Rio de Janeiro entre os dias 5 a 21 de agosto.

Mão de obra escrava

O café não é um produto nativo e sua semente não ingressou no país pelas vias normais da importação. Há 300 anos, ou perto disso, a planta chegou ao Brasil vinda da então Guiana Holandesa, hoje Suriname, ao norte da América do Sul, e, consta, o cultivo dos primeiros pés em território brasileiro deu-se no Pará. O passo seguinte da ainda incipiente cultura tomou o caminho do litoral e, caminhando na direção do sul, chegou ao Rio de Janeiro. Foi quando o setor começou a ganhar corpo e escala de produção, isto por volta dos primeiros anos do século 19. Os Estados Unidos e a Europa já se mostravam, naquela época, ávidos consumidores do grão, situação que ajudaria a impulsionar a cafeicultura brasileira.

Do Rio de Janeiro, as plantações foram avançando sobre novos territórios, chegando a São Paulo, estado onde o setor firmou-se definitivamente e deu ao país a condição de maior fornecedor de café do planeta. Além do solo, que se revelou apropriado para a nova cultura, havia os escravos que, sob os olhares nada complacentes dos senhores da terra, davam cabo da árdua tarefa de fazer o grão brotar, crescer, atravessar a florada – entre setembro e novembro –, colher os frutos, secá-los nos terreiros, ensacá-los e transportar nos ombros os sacos de 60 quilos. Depois, com a Lei Áurea, o trabalho estafante num tempo em que a mecanização pertencia ao mundo da ficção foi transferido aos imigrantes que, a partir de meados do século 19, desembarcavam aos milhares no Porto de Santos com a esperança de aqui fazer a América. Por fim, com a evolução do tempo, coube aos brasileiros, muitos deles descendentes daqueles intrépidos estrangeiros, responder pela expansão da cultura cafeeira, que se espalhou para outros pontos do país (hoje, segundo o Mapa, 1.900 municípios de 15 estados cultivam café).

Diz-se intrépidos porque os europeus, especialmente italianos, que atenderam ao chamado dos fazendeiros do Brasil, deixavam tudo para trás – família, emprego e bens – e subiam em vapores muitas vezes acomodados em porões malcheirosos (os navios, boa parcela deles, eram especializados no transporte de cargas e não de pessoas) e cujas viagens, que correspondia à travessia do Atlântico, podiam consumir até 25 dias. Chegavam, na maior parte das situações, com apenas a roupa do corpo, mas entusiasmados com as promessas de dias melhores e muito dinheiro no bolso, expectativa que, tirando alguns poucos exemplos, não se concretizaria.

É certo que muitos desses retirantes acabariam donos de fazendas e proprietários de negócios na cidade, mas antes de conhecer o Olimpo tiveram de comer o pão que o diabo amassou, puxando a enxada do alvorecer ao anoitecer. Na verdade, uma vida semelhante à reservada aos trabalhadores agrícolas que vieram depois como sucessores da mão de obra estrangeira e que, antes do êxodo rural, se manteriam presos ao campo durante décadas – uma condição sine qua non, naquela oportunidade, para o fortalecimento da cultura do café, o combustível que por longos anos tracionou a economia nacional.

Os tempos e os cenários mudam: veio a industrialização e a condição de nação dependente da monocultura voltada para o mercado externo foi ficando para trás. Durante muito tempo o café reinou soberano na pauta de exportação do país, até perder o reinado para outros itens que surgiram e ganharam peso em decorrência da modernização da economia propiciada justamente pelo café. Em 2014, as vendas externas do setor participaram com apenas 2,68% das vendas globais do Brasil, que alcançaram no período US$ 225,10 bilhões. O primeiro posto, que um dia pertenceu ao grão, ficou com o minério de ferro: US$ 25,8 bilhões em vendas, o equivalente a 11,4% do volume total exportado.

 


 

Como tudo começou

Uma bebida com presença marcante em todos os cantos do planeta, uma história (ou lenda) que vem de longe e não se sabe até que ponto o que falam sobre sua origem é verdadeiro. Dizem que tudo começou com o olhar astuto de Kaldi, um pastor de cabras que viveu na Abissínia (Etiópia), no norte da África, mil anos atrás, e que teve a atenção voltada para o comportamento estranho de seus animais após mastigarem os frutos de um arbusto que se desenvolvia em profusão na região. Elas ficavam saltitantes e cheias de energia, situação que contrastava com as cabras de rebanhos vizinhos. Os bichos escalavam as paredes íngremes das montanhas sem dificuldades e cobriam longas distâncias sem mostrar cansaço.

Kaldi não guardou para si a descoberta, logo passada adiante. Um monge do lugar foi a primeira pessoa a quem ele falou sobre o estranho fato e de tão empolgado, o religioso ficou decidido a tirar proveito daquele relato, apanhou certa quantia daquelas bolinhas amarelo-avermelhadas antes de tomar o caminho de volta para o monastério. Longe da vista dos curiosos, à noite, o monge fazia com o fruto uma espécie de infusão que, depois de ingerida, afastava o sono e dava a ele um tempo extra para a leitura.

A descoberta logo se espalhou e não passou muito tempo até que um número incalculável de monastérios também estava preparando a bebida. A história da planta milagrosa não acabaria aqui. A Arábia Saudita se incumbiria de divulgar aos quatro ventos as qualidades da planta e da bebida do café. Conhecido no início como vinho da Arábia (gahwa), o “estimulante” descoberto casualmente por Kaldi ganhou rapidamente o paladar dos europeus assim que desembarcou no velho continente, no decorrer do século 14. Isto depois de ser consumido no Iêmen como fruto in natura, e, posteriormente, na Pérsia (Irã) na forma de pó, após ser torrado e moído.

Os árabes protegiam suas plantações da cobiça dos estrangeiros, pois o café prometia se converter em excelente fonte de renda, como de fato acabaria acontecendo mais tarde. Mas não deu para manter a novidade e seus segredos presos a sete chaves: em pouco tempo os holandeses colocaram as mãos em algumas mudas e elas rodaram o mundo, chegando ao Brasil, no século 18.