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Cansativo, mas vale pelas paisagens

Travessia de balsa na Amazônia / Foto: Divulgação
Travessia de balsa na Amazônia / Foto: Divulgação

Por: ALBERTO MAWAKDIYE

Desde novembro de 2014, o Expreso Internacional Ormeño, empresa de ônibus com atuação em vários países da América do Sul, está oferecendo novamente duas viagens por semana de São Paulo a Lima, no Peru, onde a companhia está sediada. Explica-se: durante mais ou menos um ano, esse trajeto, implantado em 2010, operou com apenas uma viagem semanal – às quartas-feiras, saindo do Terminal Rodoviário Tietê. A segunda saída, implantada devido à procura, às quintas-feiras (agora, aos sábados), foi suspensa devido à precariedade de algumas estradas que ligam os dois países.

Até aí, nada de mais: empresas de ônibus vivem remanejando frequências e cronogramas de suas viagens por motivos diversos, e, no caso de longas distâncias, as condições das estradas estão entre eles. Mas, como acontece muitas vezes nestas situações, a suspensão da segunda frequência acabou criando uma espécie de demanda reprimida, que mais um pouco estaria obrigando a Ormeño a criar uma lista de espera para as viagens da quarta-feira. O que não deixa de ser um tanto surpreendente. O trajeto São Paulo-Lima está muito longe de ser uma viagem comum, como tantas outras do gênero. É o percurso coberto por ônibus mais longo do mundo, constando como tal no Livro Guinness dos Recordes, em 2012.

Com 5.917 quilômetros de extensão, a linha da Ormeño liga o Terminal Rodoviário Tietê, na capital paulista, ao bairro de San Isidro, na capital peruana, depois de exaustivas 96 horas de viagem. Ou seja, são literalmente quatro dias e quatro noites dentro de um ônibus, mais do que o dobro da distância entre São Paulo e Belém, no Pará, com 2.463 quilômetros, um dos mais longos trajetos rodoviários nacionais. E muito maior do que outras jornadas internacionais que começam no Terminal Tietê e cujos ônibus se dirigem para a Argentina, Uruguai e Paraguai.

“Essa viagem tem muita procura”, diz Oscar Vásquez Solís, representante da empresa transportadora no Brasil. “São aproximadamente 3.600 passageiros por ano, cerca de metade deles constituída por peruanos e metade por outros sul-americanos, como bolivianos, colombianos e equatorianos, incluindo um pouco de brasileiros. Alguns europeus e norte-americanos, principalmente turistas, também viajam conosco”. Segundo Solís, a segunda frequência foi suspensa por conta das chuvas e alagamentos registrados nos trechos amazônicos de Porto Velho (Rondônia) e Rio Branco (Acre) em janeiro de 2014, que deixaram quase intransitáveis as estradas da região. A Ormeño achou melhor esperar pela recuperação dessas vias para normalizar o serviço, que só não foi totalmente paralisado porque isso implicaria em mais prejuízos e transtornos para os usuários.

“A maioria dos passageiros é composta por gente pobre, sem renda para viajar de avião, e, especialmente os peruanos que vivem ou têm família no Brasil, dependem dessa linha para se deslocar entre os dois países”, explica o executivo, dizendo que eles fazem isso sempre que possível, exatamente como os nordestinos brasileiros que mantêm estreita ligação com os estados do sul.

As facilidades oferecidas aos passageiros são outros atrativos. Os preços – até Lima, R$ 550 na modalidade semileito e R$ 600 na categoria leito – custam menos da metade de uma passagem aérea. Não é necessário adquirir o bilhete de ida e volta, algo comum quando se trata de viagens internacionais, e do passageiro exige-se apenas os documentos de identidade. Ou seja, não é preciso passaporte ou comprovação de emprego e residência, o que, obviamente, acaba fazendo da linha também a preferida dos peruanos que trabalham ou pretendem trabalhar no Brasil.

Parada em Cáceres

É o caso de Roberto, que compreensivelmente não quis fornecer seu nome completo porque presta serviço sem o visto de trabalho em uma das muitas oficinas têxteis localizadas na região do Brás, em São Paulo, a exemplo de tantos outros conterrâneos e mesmo de bolivianos e paraguaios. Em meados de dezembro último, o jovem iria até Huánuco, cidade localizada nos Andes peruanos, para passar as festas de fim de ano com a família. “Mesmo não precisando cumprir todo o percurso, para mim a viagem é cansativa, parece que não vai acabar nunca. Mas em compensação as paisagens são maravilhosas”, ele afirma.

De fato, o que não falta na viagem rodoviária entre São Paulo e Lima é a exuberância da natureza – algo natural para um trajeto que cruza cinco estados brasileiros e sete departamentos peruanos, passando pelas deslumbrantes Amazônias brasileira e peruana e pelos Andes. Durante o trajeto, há não só profundas alterações de topografia, mas também de clima, e em certos pontos o oxigênio pode ficar rarefeito. O trajeto inclui ainda lugares tão remotos onde o celular não faz nem recebe ligações.

Depois de atravessar o estado de São Paulo e ganhar as planuras verdes e semidesérticas de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul – com direito a uma parada em Cáceres, município de 90 mil habitantes na fronteira com a Bolívia, no Pantanal do Mato Grosso – o ônibus mergulha na Amazônia brasileira, representada no trajeto pelos estados de Rondônia e Acre. Chega-se a Rio Branco, a capital acreana, depois de uma travessia de balsa sobre o Rio Madeira. O próximo destino são as cidades-gêmeas de Assis Brasil, no lado brasileiro, e Iñapari, no lado peruano.

Ingressa-se, então, na Rodovia Interoceânica, incluindo nova travessia de balsa na Amazônia peruana até alcançar a Cordilheira dos Andes, com curvas fechadas e muitas subidas, despenhadeiros e grotas com mais de 100 metros de profundidade. É esta a parte mais fascinante da viagem. O ônibus chega a uma altitude de 4.725 metros, com velocidade média de 30 quilômetros por hora. Depois da longa subida, é certo, começa a descida, em direção a Cuzco, já na região de Machu Picchu, a “cidade perdida dos Incas”, a 2.400 metros de altitude no vale do rio Urubamba. Nesse percurso, até a chegada em Lima, no litoral do Pacífico, os passageiros podem sentir tonturas e náuseas por causa das curvas, realmente labirínticas. Com 300 mil habitantes e a 3.400 metros acima do nível do mar, Cuzco, cuja fundação vem de séculos atrás, é um dos destinos turísticos mais procurados do Peru.

A equipe de motoristas que conduz o ônibus da Ormeño (três, em constante revezamento) é obrigada a ter no mínimo dez anos de experiência em rotas locais da companhia. Os veículos – com um ou dois andares, montados pela gaúcha Comil e equipados com chassis e motores da Mercedes-Benz – são novos, com boa espacialização interna, ventilação e TV. O número e a qualidade das paradas para alimentação e banho durante o trajeto são satisfatórios, embora em algumas delas os preços cobrados sejam aviltantes. Quando a linha foi implantada, em outubro de 2010, a frequência era de apenas uma viagem a cada 15 dias. Mas a demanda foi crescendo com rapidez e, dois anos depois, ela passaria a ser semanal. Hoje, já é bissemanal.

De qualquer forma, a explicação para tamanho sucesso tem a ver mesmo com o aumento exponencial, nos últimos anos, do número de peruanos no Brasil e, especificamente, em São Paulo. Autoridades peruanas estimam que cerca de 70 mil conterrâneos de Mario Vargas Llosa vivam em território brasileiro, dos quais 35 mil na capital paulista. Pouco mais de 70% deles imigraram a partir de 2006. “Sem dúvida, a melhora das condições econômicas do Brasil (pelo menos em anos passados) e o aumento da oferta de empregos na área de serviços, especialmente em metrópoles como São Paulo, serviram de chamariz”, afirma Myriam Lertora, uma das principais dirigentes do Comitê das Senhoras Peruanas de São Paulo, entidade cultural e beneficente bastante ligada ao Consulado do Peru e que atua na cidade desde 1985. “É uma imigração motivada principalmente por razões econômicas, e que por isso tem atraído outros sul-americanos”.

Com muita vivência de Brasil e estudiosa informal da história dessa imigração, Myriam observa que os atuais imigrantes têm um perfil distinto de outras levas de peruanos que vieram para cá em décadas passadas, como nos anos 1960 e 1970, que incluía, principalmente, estudantes universitários (muitos dos quais acabariam por se casar com brasileiras e se fixar no país). E a dos anos 1980, ensejada pela grave crise econômica no Peru e pela guerrilha do Sendero Luminoso. Eram imigrantes “sociais” que se domiciliariam principalmente no vizinho estado do Acre.

“A maioria dos peruanos que vem hoje para o Brasil atrás de empregos e melhores salários são quase sempre da região dos Andes, têm pequena escolaridade e trabalham principalmente na área de serviços domésticos, em oficinas de costura e na construção civil”, diz. “Mas há também muitos que são funcionários de empresas multinacionais e vêm transferidos para cá, assim como centenas de estudantes interessados em fazer pós-graduação, munidos de bolsas de estudo. São, em geral, peruanos de grandes cidades e obviamente de escolaridade superior e com bom nível de renda”.

“Adoro o Brasil”

Há muitos médicos também. Trabalham hoje no Brasil cerca de 400 peruanos profissionais da medicina, um número menor apenas do que o de bolivianos (em torno de 800). Mas, no caso dos médicos peruanos, trata-se do prolongamento de uma longa tradição. Os primeiros médicos daquele país chegaram ao Brasil ainda na distante década de 1950. Um desses pioneiros se tornou, inclusive, uma referência na medicina brasileira. Tido como um dos papas da eletrocardiografia no país, José Bocanegra Arroyo emigrou para complementar seus estudos na Escola Paulista de Medicina, em São Paulo, em 1953 e, graças ao seu esforço e talento, acabou ficando e realizando um importante trabalho como médico, pesquisador e professor da faculdade onde se formou. Hoje, com 88 anos, está aposentado. “Adoro o Brasil”, diz Arroyo, que se casou com uma brasileira e tem filhos e netos todos nascidos aqui. “Faz muitos anos que não vou ao Peru. Meus pais morreram e só mantenho contato com um irmão que ficou no país.”

É possível, entretanto, que o ritmo da imigração peruana para o Brasil desacelere nos próximos anos. O Peru vem crescendo a taxas significativas (5,8% em 2013, e 3,5% em 2014), ao contrário do Brasil, cuja economia patina e não deve avançar neste ano. Ou seja, daqui em diante pode ser mais compensador ficar no Peru do que vir para cá.

A tendência é de que também diminua o número de trabalhadores ilegais peruanos. “Um acordo assinado pelo governo brasileiro, em 2009, autoriza cidadãos do Mercosul, do Peru e de outros países sul-americanos a entrar sem visto no Brasil, somente com registro na Polícia Federal, e a pedir residência temporária”, esclarece Cynthia Soares Carneiro, especialista em Direito Internacional e professora da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto. “E esse acordo parece estar funcionando”. De fato, desde 2009, triplicou no país o número de imigrantes peruanos legais, embora cerca de 20 mil, imagina-se, estejam ainda em situação irregular.

A queda na imigração e a legalização de um maior número de peruanos – que pode significar melhores empregos e mais dinheiro no bolso, com a opção pelas viagens aéreas – não deve, em princípio, afetar o transporte por ônibus entre o Brasil e o Peru. “Usamos os ônibus da Ormeño principalmente para repatriar os peruanos que desejam voltar, por razões de saúde ou pessoais, mas não tem recursos para tanto”, revela o cônsul-geral adjunto do Peru em São Paulo, Fernando Alvarez Gamboa. “A linha São Paulo-Lima tem uma importância fundamental para a nossa comunidade.”

Fundado há 45 anos, o Expreso Ormeño é, seguramente, a empresa de ônibus mais “internacional” da América do Sul. Além da rota para São Paulo, a companhia explora linhas para a Argentina, Bolívia, Colômbia, Chile, Equador e Venezuela, completando, também nestes casos, alguns dos trajetos por ônibus mais longos do mundo. A linha São Paulo-Lima oferece uma conexão direta para Caracas, na Venezuela, com percurso total de mais de 11 mil quilômetros, quase a mesma distância entre Paris e Vladivostok, cidade portuária da Rússia no Oceano Pacífico, perto da fronteira com a China.

 


 

Culinária rica e variada

A gastronomia peruana está sendo responsável por um surpreendente enriquecimento das relações culturais entre o Brasil e o país andino, até pouco tempo praticamente restritas aos romances de Vargas Llosa e aos relatos de viajantes ou a documentários de TV sobre Machu Picchu. De alguns anos para cá, vários restaurantes de comida peruana foram abertos no Brasil, especialmente em São Paulo, e dezenas de outros, não necessariamente peruanos, passaram a servir comidas típicas daquele país, aproveitando-se da recente fama internacional adquirida pela culinária do Peru.

O mais badalado deles talvez seja o Rinconcito Peruano, na Rua Aurora, em plena Cracolândia, no centro velho da cidade de São Paulo. De porte acanhado, decoração puxada para o popular, ele tem em seu quadro apenas funcionários peruanos, “uma forma de ajudar meus conterrâneos”, diz o proprietário do estabelecimento, Edgar Villar, que emigrou do Peru anos atrás. Ele está radiante. Antes, acostumado a atender apenas fregueses oriundos de seu país, ele agora festeja o crescimento da clientela brasileira, que vem ao Rinconcito atraída especialmente pelo ceviche, prato tradicional peruano feito com peixe cru marinado em suco de limão ou em outro cítrico.

Assim como a brasileira, a gastronomia peruana é rica e variada. “Existe a cozinha criolla, a chifa – com sua influência oriental –, a andina, a amazônica, os sanduíches, os doces”, enumera a produtora de TV Carolina Guida Stamillo. “São tantas batatas, frutas, milhos e pimentas, além de ingredientes que fogem do padrão usado em outros países, e que permitem uma série quase interminável de combinações, sabores e diferentes preparos.”

Para Carolina – que foi ao Peru uma única vez, mas se encantou definitivamente pelo país e por sua culinária – os peruanos sabem como defender e manter sua cultura através da gastronomia.