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Das arcadas para a história

Agosto de 1986, na USP: agradecendo homenagem dos  alunos / Foto: Roberto Faustino/Folhapress
Agosto de 1986, na USP: agradecendo homenagem dos alunos / Foto: Roberto Faustino/Folhapress

Por: HERBERT CARVALHO

Em 1977, a fase aguda de torturas e assassinatos de opositores da ditadura brasileira havia ficado para trás. Os últimos casos de grande repercussão envolveram o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho, torturados e mortos nas dependências do DOI-Codi (Departamento de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa Interna), na capital paulista, fatos que tiveram como consequência o afastamento, em janeiro de 1976, do general Ednardo D’Ávila Mello do comando do II Exército, em São Paulo.

Vivia-se, então, o governo de avanços e recuos da política de “lenta, gradativa e segura distensão”, assim definida em 1974 por seu executor Ernesto Geisel, o quarto ditador-presidente do ciclo inaugurado uma década antes. Nos Estados Unidos, o democrata Jimmy Carter assumia a presidência em janeiro de 1977, disposto a virar a página da Operação Condor.

Estimulados por essa conjuntura, em março daquele ano os estudantes saíram às ruas de São Paulo na primeira passeata desde 1968. Mas para mostrar que o regime não estava disposto a se deixar acuar, Geisel fechou o Congresso e baixou o que ficou conhecido como “Pacote de Abril”, um conjunto de alterações autocráticas da Constituição então em vigor. Em meio a uma onda de ocupações e invasões policiais a universidades, é cassado o deputado José Alencar Furtado, líder do Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

Para expressar seu repúdio ao regime de arbítrio, um grupo de advogados formados pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Fadusp) decide aproveitar as comemorações dos 150 anos da criação dos cursos jurídicos no Brasil para divulgar, no pátio sob as arcadas da vetusta Academia do Largo de São Francisco, um documento que mobilizasse a vocação democrática da Nação.

Em contraponto à comissão organizadora dos festejos oficiais do sesquicentenário, presidida por Alfredo Buzaid, ex-diretor da Fadusp e ex-ministro da Justiça no governo Médici, a escolha para a redação da “Carta aos Brasileiros” recaiu em um professor considerado símbolo da escola no século 20, por sua dedicação ininterrupta a várias gerações de estudantes. “A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: Estado de Direito Já!” bradou Goffredo da Silva Telles Junior (1915-2009) no dia 8 de agosto de 1977 ao final do documento assinado por mais de 200 juristas e advogados, lido ao lado do monumento em homenagem aos estudantes de Direito mortos na Revolução Constitucionalista de 1932.

Comparado em importância histórica ao “Manifesto dos Mineiros”, que precipitara a queda do Estado Novo nos idos de 1940, o texto foi publicado com destaque nos jornais e revistas, pois apenas a mídia eletrônica permanecia sob controle. O uso da força e da censura em nome do desenvolvimento econômico era abertamente caracterizado como “ditadura” e “totalitarismo”. Ousadia suprema, defendia-se a convocação de uma Assembleia Constituinte. Estava rompido o círculo do medo.

Esta não era, nem de longe, a primeira vez que mudanças fundamentais na vida cultural e política de São Paulo e do país seriam gestadas no pátio da escola criada por Dom Pedro I em 11 de agosto de 1827. Um fato determinante na própria história da cidade da capital dos paulistas que, depois de ser um acanhado arraial de sertanistas nos séculos precedentes, transformava-se num burgo de estudantes vindos de todo o país.

Influência da avó

Abolicionista e republicana no século 19, a Faculdade adaptada no interior do convento dos frades franciscanos gera a tríade dos poetas românticos, cujos nomes permanecem inscritos em seu pórtico de entrada: Castro Alves, Álvares de Azevedo e Fagundes Varela. Proclamada a República, quase todos os presidentes civis até a Revolução de 1930 saem diretamente de suas salas de aula para o Palácio do Catete, então sede do Poder Executivo, no Rio de Janeiro. Não por acaso, esse período é também conhecido como “República dos Bacharéis”, que teve Rui Barbosa e José Maria da Silva Paranhos Júnior (Barão do Rio Branco), também antigos alunos das Arcadas, entre seus expoentes mais notáveis.

A mudança da capital do país para Brasília, em abril de 1960, não acabaria com a tradição: o primeiro presidente a iniciar seu governo no Palácio do Planalto, Jânio Quadros, também frequentara os bancos escolares do Largo de São Francisco, assim como Michel Temer, Fernando Haddad e Ricardo Lewandowski, respectivamente vice-presidente da República, prefeito de São Paulo e presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), exemplos mais recentes que ajudam a dar uma ideia da longevidade dessa influência.

Goffredo Carlos da Silva Telles Junior nasceu no seio de uma família vinculada tanto à oligarquia cafeeira que comandava o Brasil desde os tempos do Império, quanto à elite acadêmica que fazia do estudo do Direito um estágio indispensável para o acesso aos cargos privilegiados do aparelho do Estado. Seu pai, Goffredo Teixeira da Silva Telles, descendia dos barões de Vassouras, interior do Rio de Janeiro, e se formara na turma sanfranciscana de 1910, embora nunca tenha exercido a advocacia. Administrador da Fazenda Santo Antônio, no município paulista de Araras, de propriedade da família de sua mulher Carolina Penteado da Silva Telles, Goffredo pai era também poeta e membro da Academia Paulista de Letras. Foi por muitos anos vereador do município de São Paulo e chegou a ser aclamado prefeito da cidade no breve governo de Pedro de Toledo, durante a Revolução Constitucionalista de 1932.

A maior influência na infância e adolescência de Goffredo Junior, entretanto, seria a de sua avó materna e madrinha Olívia Guedes Penteado, amiga e protetora dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922. Essa circunstância lhe proporcionou ter aulas de desenho com Tarsila do Amaral (1886-1973) e a empinar os papagaios confeccionados por ninguém menos do que Heitor Villa-Lobos, maestro e compositor (1887-1959).

Em 1929, aos 14 anos, Goffredo é matriculado no Ginásio São Bento, onde se deslumbra com o estudo da Filosofia, cujas implicações sobre a liberdade do ser humano o acompanhariam pela vida afora, presentes na dezena de livros que escreveu e em sua tese de concurso para professor catedrático, A Criação do Direito, de 1954. Em sua autobiografia A Folha Dobrada – Lembranças de um Estudante – título extraído dos versos de Tobias Barreto: “Quando se sente bater/No peito heroica pancada, Deixa-se a folha dobrada/Enquanto se vai morrer” – grande parte do grosso volume de mil páginas é dedicada a digressões sobre as obras de Baruch Spinoza, René Descartes, Immanuel Kant e Henri Bergson.

Sua vocação para professor é detectada por sua avó Olívia, que pede ao neto de 16 anos para ministrar a ela própria e a um grupo de amigas ilustres um curso de Lógica. Foram tempos duros, de revoluções. Na primeira delas, de 1930, são fechadas as janelas e apagadas as luzes da mansão de sua família de fazendeiros fiéis ao amigo deposto, Washington Luís, quando, diante dela, passa em carro aberto o vitorioso Getúlio Vargas. Na segunda, dois anos depois, quando a menoridade impede sua inclusão em um batalhão de voluntários, atua como secretário do hospital de sangue das tropas constitucionalistas na frente de combate no Vale do Paraíba contra as tropas leais a Vargas.

Após a derrota dos paulistas, quando seu pai é preso e exilado, Goffredo entra como aluno do curso de Direito na escola em que mais tarde seria professor, durante 45 anos, de 1940 a 1985. “Ali estava eu, na famosa Academia! As Arcadas, o Pátio, o Largo, tudo aquilo passou a ser meu. Eu tinha 18 anos de idade. Havia agitação nas ruas e um sonho em minha alma”, diria mais tarde em suas lembranças de estudante.

Na agitação ele mergulhara, ainda como ginasiano, ao se filiar, no final de 1932, à Ação Integralista Brasileira (AIB), versão tupiniquim do nazismo e do fascismo, que destes diferia por não ser antissemita nem adotar em suas milícias o porte de revólveres ou porretes. “Para mim foi uma extraordinária experiência de fraternidade humana, idealismo e coragem”, diria sobre os cinco anos, entre 1933 e 1938, em que militou nas fileiras integralistas, na época ao lado de figuras como San Tiago Dantas e Dom Hélder Câmara, que posteriormente se destacariam à esquerda do espectro político.

“Troglodítica e odiosa”

Formado na turma de 1937, Goffredo inscreve-se na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) aos 22 anos, dando início, na defesa gratuita de réus pobres, à carreira que exerceria durante toda a vida passo a passo com o magistério. “Advogado sempre fui. Advogado sou por destinação genética. Mas não só por isto: sou advogado por amor. Tirante a mais sublime das profissões – que é a de professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco –, não conheço profissão tão fascinante”, afirmou, em 2002, ao ser homenageado pela “Revista do Advogado”, publicação da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP).

Goffredo frequentou o Fórum até 1966 quando, ao ser nomeado vice-diretor da Faculdade e a ela dedicar-se integralmente, sua advocacia de “clínica geral”, extensiva a diferentes áreas do Direito, passou a ter caráter somente consultivo. Em 1987, recebeu da OAB-SP a láurea de “advogado símbolo”. Durante três décadas, de 1944 a 1974, teve também destacada atuação como membro do Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo.

Livre-docente nomeado em 1940, inicialmente deu aulas nas mais diferentes áreas do Curso Jurídico: Civil, Comercial, Internacional Público e Privado e Penal. Em 1954, substituiu Spencer Vampré na cátedra de Introdução à Ciência do Direito. Até 1985, quando a Universidade de São Paulo (USP) o aposentou compulsoriamente por ter atingido a idade limite de 70 anos, não se afastaria de seus alunos sequer durante o período de 1946 a 1950, quando exerceu o mandato de deputado federal constituinte.

Eleito com a terceira maior votação do país pelo Partido de Representação Popular, que reunia antigos integralistas, travou na Assembleia Constituinte intenso debate sobre questões doutrinárias com o líder do Partido Comunista Brasileiro (PCB), senador Luís Carlos Prestes. Mas reprovou o fechamento do PCB pelo Supremo Tribunal Federal, em 1947, e se colocou contra a cassação dos mandatos dos parlamentares comunistas, classificada por ele como “troglodítica e odiosa”.

Especial repercussão teve seu discurso em defesa da Amazônia e seu voto contrário na Comissão de Segurança Nacional da Câmara dos Deputados ao projeto de criação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica (IIHA), ardilosa manobra patrocinada pela recém-fundada Organização das Nações Unidas (ONU) que implicaria na renúncia à soberania sobre a parte que nos corresponde da maior floresta tropical do planeta. Terminado o mandato, porém, decidiu não se candidatar novamente.

Nesse tempo, Goffredo foi casado com Lygia de Azevedo Fagundes, que fora sua aluna e se transformaria na famosa escritora Lygia Fagundes Telles, com quem teve um filho, o cineasta Goffredo Telles Neto, falecido em 2006. Ele já era viúvo e no casamento anterior tivera um filho, com o mesmo nome, morto prematuramente, vítima de meningite. Em 1967, se casaria pela terceira vez, novamente com uma ex-aluna, Maria Eugênia Raposo da Silva Telles. Dessa união, definitiva, nasceria a filha Olívia, futuramente mais uma advogada, a exemplo dos pais.

No início da década de 1970, publicou seu livro didático mais original e um dos mais reeditados, Direito Quântico: Ensaio sobre o Fundamento da Ordem Jurídica, fruto de quatro anos de estudos para determinar o nexo entre a dinâmica dos corpos celestes e as formas de aplicação das leis e da distribuição de justiça na sociedade humana.

Depois da Física, foi a vez da Biologia ser vinculada ao Direito na obra Ética: do Mundo da Célula ao Mundo dos Valores. Em ambos os casos e também no livro Iniciação na Ciência do Direito, seu objetivo era o de dar uma formação abrangente aos alunos. “O que logo observei, nos primórdios de minha atividade de professor, foi que os estudantes, ao iniciar seu curso, no primeiro ano da faculdade, não sabiam onde estavam, não conseguiam situar o Direito entre as coisas do mundo. Impressionava-me a ignorância da mocidade em matéria dos princípios sobre os quais repousam, inelutavelmente, todas as ciências”.

“Goffredo! Goffredo!”

Essas preocupações humanistas seriam ainda mais marginalizadas no ensino brasileiro após o golpe militar de 1964. Com o propósito de manter o caráter democrático da Universidade, Goffredo participou da criação e tornou-se presidente da Associação Paulista dos Professores do Ensino Superior, o que lhe valeu 30 horas de interrogatório no Departamento de Ordem Política e Social, o sinistro Dops, de triste memória.

Acusado de “marxista” por professores que se alinhavam com a ditadura, ele faz uma profissão de fé perante a Congregação da Faculdade, afirmando abominar qualquer regime que não tenha os Direitos do Homem como principal fundamento. E concluiu: “Dentro dessas paredes leciono há 29 anos. Toda a minha vida de homem passei-a sob as Arcadas. Pela Faculdade, larguei a advocacia contenciosa, deixei o Parlamento nacional, renunciei à carreira político-partidária. Minha Escola, Minha Casa, minha sábia Academia. Quando penso nela, no silêncio do meu quarto, parece que sonho. Eu a vejo realizada no pleno emprego de suas potencialidades. Vejo-a íntegra, unida e perfeita, na liderança revolucionária do pensamento brasileiro”.

A “Carta aos Brasileiros” de Goffredo é didática como uma de suas aulas, com sete subdivisões temáticas: 1. O Legal e o Legítimo; 2. A Ordem, o Poder e a Força; 3. A Soberania da Constituição; 4. O Poder Constituinte; 5. O Estado de Direito e o Estado de Fato; 6. A Sociedade Civil e o Governo e 7. Os Valores Soberanos do Homem, Dentro do Estado de Direito. Um texto considerado primoroso pelos especialistas e ainda atual no século 21, para exorcizar o fantasma de recaídas autoritárias.

Alguns dias após a leitura, realizou-se a comemoração oficial do 11 de agosto, com uma cena insólita: Alfredo Buzaid e o então vice-governador paulista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, também professor no Largo de São Francisco, são vaiados pelos estudantes, que gritam em coro: “Goffredo! Goffredo!”

Em setembro de 1977, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) é invadida pela polícia e 1.700 estudantes são presos, mas no mês seguinte ocorre um fato decisivo para garantir a continuidade da abertura do regime: o ministro do Exército, general Sylvio Frota, expoente da “linha dura”, é demitido por Geisel, que consegue sufocar as reações dos setores mais intransigentes das Forças Armadas. Estes ainda promoveriam atentados à bomba no início dos anos 1980, mas a saída de milhões de pessoas às ruas, na campanha pelas Eleições Diretas Já, em 1984, tornaria irreversível a devolução do poder aos civis, o que aconteceu no ano seguinte.

Aposentado em 1985, Goffredo não se afasta da juventude: em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, cria o Círculo das Quartas-Feiras, inicialmente com os estudantes Adriano Nunes Carrazza e Cássio Schubsky. Muitos outros se incorporariam às reuniões semanais, que tiveram importante papel político na elaboração do primeiro mandado de segurança coletivo do país e nas manifestações pelo impeachment do presidente Fernando Collor.

No texto de boas-vindas aos calouros de 2008, solicitado pela Associação dos Antigos Alunos da Faculdade, lá estava novamente o professor que definia o Direito como “a disciplina da convivência humana”. Na saudação, após garantir “não ser de estranhar que em épocas corruptas os setores normais da população vivam a clamar por ética na política”, ele fez uma advertência aos futuros bacharéis: “Não se deixem jamais seduzir pelas tentações da corrupção. Todo bacharel corrupto – seja advogado, juiz, promotor público ou delegado de polícia – abre chaga no seio da sociedade. É traidor da ordem social de que ele precisa ser sentinela e guardião”.

Goffredo Telles Junior morreu no dia 27 de junho de 2009, aos 94 anos de idade, em seu apartamento na Avenida São Luís, no mesmo centro de São Paulo onde sempre viveu e trabalhou, e que ainda tinha ruas de terra em seus tempos de menino. Ao lado da catedral da Sé, o edifício que até recentemente era a sede da OAB-SP exibe seu nome gravado na entrada. Mas a homenagem que ele certamente mais apreciaria pode vir neste ano, durante as comemorações de seu centenário: a designação de Pátio Goffredo Telles Junior para o espaço da faculdade que foi palco de tantas batalhas pela liberdade.