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Fernando da Rocha Peres

foto: WSchulz
foto: WSchulz


O poeta e historiador fala sobre a posição da intelectualidade baiana no cenário brasileiro e a pesquisa a respeito da obra de Gregório de Matos


Poeta e historiador, Fernando da Rocha Peres participa da vida cultural baiana desde 1957, quando fundou, com Glauber Rocha, Calasans Neto e Paulo Gil Soares, as Jogralescas (poesia teatralizada), a revista Mapa, a Yemanjá Filmes e as edições Macunaíma. Professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA) desde 1972, Fernando publicou, entre outros livros, Poemas Bissextos (Macunaíma, 1972), Gregório de Mattos: O Poeta Devorador (Manati, 2004) e Memória da Sé (3ª ed., Corrupio, 2009). Nesta entrevista, ele fala das pesquisas sobre o poeta Gregório de Matos e a trajetória intelectual que construiu entre a poesia e a história: “Posso dizer que o magistério e a história me deram o pão para a vida, e a poesia me deu o sabor intelectual”.

Como é ser um intelectual, poeta e historiador morando fora do eixo Rio-São Paulo?
O diálogo, para quem faz essa escolha de aqui permanecer, é muito fechado. É um diálogo entre pares locais. Não há diálogo com o sul. Esse diálogo tornou-se muito estreito na medida em que mudaram as relações interpessoais. Elas hoje são mais mecânicas do que físicas, digamos assim. Eu, há muitos anos, tive amigos no sul, que de certo modo me enriqueceram e contribuíram para o meu desenvolvimento intelectual. Havia um contato, que era extremamente pessoal, na medida em que nós trocávamos cartas, objetos, figurinhas, e isso deixou de existir. Eu sou de uma geração considerada envelhecida. É evidente que se torna difícil, para quem fez essa opção de ficar aqui, tornar-se conhecido. Nossas ideias, nossos textos e publicações ficam aqui, porque hoje em dia não existe mais crítica literária, existe resenha. Resenhistas muito comprometidos com interesses editoriais, e isso cria certo embaraço, para não ser mais agressivo. Recentemente publiquei um livro de poesia e não saiu uma resenha fora da Bahia. Ninguém se abalou em escrever.

Salvador sempre teve uma vida intelectual muito aguerrida. Você mesmo fez parte da mesma geração de Glauber Rocha, Calasans Neto e Paulo Gil Soares. Você acha que hoje isso mudou?
Não há mais uma geração como aquela. Morreram os protagonistas e alguns já estão à beira de partirem. Aquela vibração morreu porque nós não temos mais um suplemento cultural. O último foi o do jornal A Tarde, que por medidas de economia fechou. Era o único respiradouro onde os intelectuais locais poderiam publicar os seus poemas, ensaios, contos e assim por diante. Hoje nós temos, por exemplo, um grande contista baiano chamado Hélio Polvora, que mora na Bahia. Porque veio para cá, será que Hélio Polvora está sendo esquecido? Na minha opinião ele deveria estar na Academia Brasileira de Letras, com condições de concorrer, porque a obra dele é válida. Então isto aqui se fechou, como eu disse.

Você disse que os jornais deixaram de ter suplementos literários. Além disso, você observa também massificação cultural?
Massificação cultural é uma das razões, na medida em que hoje, neste país, os leitores têm condições mínimas de qualidade. Mas o grande desastre, que considero significativo, é a má qualidade do ensino que se prática hoje no Brasil. Esse não é um problema só da Bahia. A Bahia é um local que sofre desse problema, talvez pela razão muito significativa de que a nossa geração foi substituída por uma geração voltada para a massificação musical. Hoje, quando se fala em personalidades da cultura baiana, o referencial são os músicos e os intérpretes masculinos e femininos. Ninguém se lembra mais, por exemplo, do Otávio Mangabeira, do Castro Alves. Jorge Amado vai sendo esquecido com o tempo. Dorival Caymmi também estava sendo esquecido, agora houve um revival, devido ao centenário dele. Então a massificação e a má qualidade do ensino refletem na produção cultural porque já não há mais uma interlocução com o docente. Eu tive professores que foram, além de professores, orientadores, pessoas amigas com quem eu me encontrava nas livrarias, nos clubes de cinema. A cidade não tem mais um clube de cinema.

A Bahia produziu autores, músicos, pintores, que ajudaram a dar uma cara para o Brasil, a criar esse imaginário. Você concorda que, hoje, isso se reduziu a uma carnavalização?
Hoje, a galeria brasileira e baiana é composta dos grandes interpretes da nossa música popular, seja ela MPB, tropicália, axé. É aí que estão as grandes figuras da nossa cultura baiana. As outras coisas perderam a razão de ser perante o público, seja ele jovem, principalmente, ou de meia-idade, na medida em que esse fenômeno vem decorrendo há muitos anos. Eu posso dizer isso e não estou lamentando o fato de ter ficado aqui, porque eu vivo cercado dos meus livros, das coisas que publiquei, nesse endereço razoável, e o que eu posso esperar mais? Reconhecimento, se vier, será póstumo. Em vida não há, porque o sul nos ignora atualmente. Ou nós somos de péssima qualidade ou eles são muito melhores e, por isso mesmo, cuidam dos seus pares e das suas crias, nos seus pastos.

Você estudou muito o poeta satírico do período colonial Gregório de Matos, que unia na linguagem expressões dos dialetos indígenas e africanos. Isso era, na sua interpretação, uma questão cultural, algo relacionado ao período barroco, ou havia um viés de crítica ao que se dava naquele momento na Bahia?
Ele usa expressões da língua dos índios e africanos, mas usa também expressões em latim, francês e espanhol. Isso de certo modo tem a ver com o aproveitamento que o poeta passa a fazer de determinadas palavras no contexto em que ele está querendo escrever. A poesia satírica se presta muito ao uso dessas expressões de natureza estranha à própria língua em que o poeta constituiu a sua formação, e por isso mesmo ele usa determinado termo quando o considera apropriado, seja na língua tupi, kimbundu, que é a língua angolana... O estoque vocabular de Gregório é muito grande.

Gregório de Matos fazia uma espécie de poesia mestiça, mas era um cidadão cuja família era proprietária de terras. Como era a convivência dele com os negros daquele período?
Tenho que tomar cuidado para dizer se havia preconceito ou não, porque esse assunto está muito em ebulição. Não considero a poesia de Gregório de Matos preconceituosa. É um retrato em versos da realidade das circunstâncias daquele momento do Brasil. Aqui existia um regime escravocrata. Ele nasceu em uma família de proprietários rurais, foi criado em meio àquele horror que era o regime escravocrata para com os índios e os africanos. Ele viu aquilo, cresceu vendo aquilo, não podia entender de outra maneira. Por ser um crítico, o poeta captava a maneira comportamental do sujeito, fosse negro ou branco, e caía em cima com os seus versos impiedosos. Ele tanto caía em cima dos negros e das negras como caía em cima dos governadores, dos poderosos, dos clérigos. Enfim, era um poeta de musa violenta, agressiva.

Em relação à poesia que se praticava naquele momento, ele é um caso único de usar a poesia como instrumento de crítica?
Essa poesia violentamente satírica é uma tradição na cultura ocidental. Não só em Portugal e na Espanha, mas também na França, na Alemanha, existem poetas que se tornaram notáveis e célebres por isso. Não se tem notícia da existência de outro poeta natural daqui que fizesse o mesmo na época. Têm-se notícias da presença de portugueses como o Tomás Pinto Brandão, que escreveu poemas nessa linha satírica, crítica, erótica. Outros, como o Manuel Botelho de Oliveira, contemporâneo do Gregório, não era satírico e, por isso mesmo, publicou seus versos. Gregório nunca publicou em vida. Ele tinha consciência de que se reunisse seus poemas eles seriam recusados, mesmo aqueles de natureza religiosa ou amorosa.

Naquele momento na Bahia o Gregório é uma pessoa da elite, mas critica as autoridades, que são basicamente representantes dos portugueses aqui. Você vê nisso uma afirmação de nacionalidade?
Eu não acredito nisso. Existem livros que insistem muito nessa ideia, mas ele fazia aquilo porque via, não se conformava e criticava. Ele fazia porque o viés mais significativo da criação poética dele era criticar determinadas situações, criticar o outro. Tanto que você pode conceber que ele foi desembargador da relação eclesiástica, posição criada por Dom Pedro II. Ele ocupou durante certo tempo o cargo porque tinha se formado em direito eclesiástico e veio a compor uma relação eclesiástica. Ele não quis vestir batina, não quis entrar nas regras do arcebispado do qual ele passa a fazer parte. Muda o arcebispo, o novo tenta convencê-lo a se comportar dentro dos padrões da igreja, ele se recusa e perde o cargo. Então ele começa a escrever poemas virulentos contra a própria instituição da qual ele participou, a atacar os colegas desembargadores, a ponto de chamar o capítulo da sé de “um presépio de bestas”. É uma postura extremamente ambígua, para não dizer oportunista. Ele tanto elogiava o sujeito como, se não tinha o valimento desejado, ele partia para criticar, atacar. Era uma questão de comportamento e, dentro dessa elite, ele era um ser discrepante e se comportava dessa maneira.

Naquele momento do Brasil Colônia a poesia era muito praticada. Existia um status nisso?
Quem não era poeta estava em um mato sem cachorro. Isso dava status. Ser literário conferia a um cidadão uma condição que ia além de ser um bacharel. Todo mundo era bacharel e poeta, e isso continuou durante muitos anos na nossa cultura. Pelo menos até a primeira metade do século 20 havia essa aproximação entre o letrado e a poesia. Ser poeta era algo muito importante na vida de uma pessoa.

Isso era algo particular à Bahia ou ocorria também em outros lugares?
Era comum, mas é que a gente desconhece a história da nossa literatura. Em Pernambuco nós tínhamos o Bento Teixeira, por exemplo. Nos outros estados, em outras capitanias, se desconhece porque há poucos registros. A Bahia era a capital do Brasil e aqui se concentrava a administração, a igreja, e só depois é que outras localidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco vão tomar corpo. A Bahia foi, pelo menos durante o século 16, o local de referência do Brasil de então. Chegou a dizer-se que a Bahia era a cabeça do Brasil. Hoje ela perdeu essa significação e, o que é pior, perdeu-se este acato às coisas do intelecto. Hoje em dia as coisas da criação, seja ela intelectual de que maneira for, estão mais concentradas nas mídias atuais, na música, no teatro, na novela de televisão. O próprio romance brasileiro está perdendo qualidade.

Há quem diga que uma das razões para a poesia manter a qualidade é que ela não entrou na roda da indústria cultural. Você vê da mesma maneira?
A poesia deixou de ser algo de interesse na indústria cultural e tem esse vigor talvez por isso, por essa frustração dos poetas. Talvez porque seja mais factível mexer com a palavra poética do que com a palavra em prosa. É muito difícil você inovar em prosa. O último grande inovador da prosa brasileira foi Guimarães Rosa. Antes dele, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Lima Barreto e alguns outros. Não havia essa indústria cultural esmagadora que nos impinge estes best sellers.

Quanto à sua trajetória como historiador e poeta, você diria que o poeta tem curiosidade pela história ou a história leva à curiosidade pela poesia?
O meu lance, digamos assim, para com a poesia vem primeiro. Meu interesse pela história veio pela convivência que tive com alguns familiares, principalmente com um tio-avô médico, que lidava com questões da história da Bahia. Ele tinha uma bela biblioteca e, ao morrer, deixou muita coisa em São Paulo e muito pouca coisa aqui na Bahia. Eu tive a oportunidade de manusear o que ficou aqui quando era adolescente. Nessa biblioteca um dia eu encontrei um envelope cheio de documentos, manuscritos, correspondências, recortes de jornais e fotografias, e isso me interessou. Eu era adolescente e guardei esse envelope. Alguns anos depois, já formado em Direito e trabalhando na Universidade Federal da Bahia, fui chamado para ser professor “horista”, o chamado “taxi teacher”. Lecionando, fui pressionado a fazer concurso e me lembrei então daquele envelope. Fui juntar as pepitas que estavam nele e vi que aquilo podia dar um trabalho, um livro, uma tese. Sentei, escrevi e defendi a tese. Depois fui para Portugal com a bolsa de estudos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e fiz a pesquisa sobre Gregório de Matos. Sou um historiador com certas restrições pessoais. Não me estendo muito fora das minhas competências. Um historiador que foi antes um professor e, por isso mesmo, posso dizer que o magistério e a história me deram o pão para a vida, e a poesia me deu o sabor intelectual. Com isso eu não estou descartando, em hipótese alguma, a satisfação de ter tido um relativo sucesso com os livros sobre a Memória da Sé, com o Gregório de Matos e o meu trabalho sobre o Antônio Conselheiro.

Você, Paulo Gil Soares e Glauber Rocha fizeram diversas coisas juntos. Como se deu esse encontro?
Nós nos encontramos em um colégio público da Bahia de muita qualidade. Lá eu tive o privilégio de ter grandes professores e encontrar gente de muita inquietação. Gente que estava ali não só para estudar, mas também para criar, e encontrei com Glauber Rocha, Paulo Gil, Fred Souza Castro, entre vários outros. O convívio da juventude inquieta não degenerou; pelo contrário, cresceu e deu no que deu. Nós resolvemos fazer teatro e montamos espetáculos de teatro com a poesia moderna brasileira, e encenamos Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Pedro Nava, João Cabral de Melo Neto, Gregório de Matos, Cecília Meireles, muita gente. E isso fez com que nós montássemos sete espetáculos aqui na Bahia, de muito sucesso, mas era uma coisa de jovens de 18, 20 anos. Formamos um grupo extenso, com participação também de mulheres, e a partir daí partimos para fundar uma empresa de cinema, que não deu certo, mas fez com que Glauber fosse para o Rio de Janeiro e se tornou lá o tribuna do cinema novo brasileiro. Paulo Gil foi para São Paulo e trabalhou na rede Globo, fez cinema. Calasans, que fazia os nossos cenários, se transformou em artista plástico. O grupo cresceu, amadureceu.

Havia uma estética comum nesse grupo?
Havia a estética da inquietação, da modernidade, porque nós tivemos que nos suprir do nosso passado cultural. Esse é o grande problema hoje. Nós tínhamos lastro cultural familiar, escolar, de convívio com pessoas. Havia toda uma base. Nós precisávamos nos reunir para fazer agitação, política. Era uma inquietação muito significativa porque havia um substrato que levava a uma inquietação diferente da de hoje, que paira no vazio midiático.

“É evidente que se torna difícil, para quem fez essa opção de ficar aqui [em Salvador], tornar-se conhecido. Nossas ideias, nossos textos e publicações ficam aqui”


“Hoje, quando se fala em personalidades da cultura baiana, o referencial são os músicos e os intérpretes masculinos e femininos. Ninguém se lembra mais, por exemplo, do Otávio Mangabeira, Castro Alves. Jorge Amado vai sendo esquecido com o tempo”

“Não considero a poesia
de Gregório de Matos preconceituosa.
É um retrato em versos da realidade
das circunstâncias daquele momento do Brasil”


“Chegou-se a dizer que a Bahia era a cabeça do Brasil. Hoje ela perdeu essa significação e, o que é pior, perdeu-se este acato às coisas do intelecto”