Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Check-In

foto: Daniel Mordzinski
foto: Daniel Mordzinski



Autores ao redor do mundo emprestam a aura criativa para hotéis, que acabam ¿se tornando protagonistas de histórias literárias e da vida real


Há quem duvide da inspiração por instinto, há quem se apoie nela. E o lugar em que se cria, o quanto ele pode ser especial ou influenciar uma obra? Nesse capítulo das artes, os quartos de hotéis fazem parte da mítica de escritores. São fartos os exemplos. “No Brasil, caso famoso é o de Mário Quintana. O jogador Falcão havia comprado um hotel em Porto Alegre e, num gesto de extrema generosidade, cedeu uma suíte para o poeta morar até o fim da vida. Bonito”, afirma o escritor Evandro Affonso Ferreira, que gosta da história, mas diz nunca ter se inspirado literariamente em algum hotel para escrever seus livros.
Na autobiografia da poeta e cantora norte-americana Patti Smith (Só Garotos, Cia. Das Letras, 2010), há um capítulo inteiro dedicado às experiências vividas no Hotel Chelsea, instalado na 222 West 23rd Street, em Manhattan, Nova York. Por seus quartos e bares passaram Charles Bukowski, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, ¿Tennessee Williams e muitos dos autores beats, entre eles William S. Burroughs e Jack Kerouac. No livro, Patti Smith descreve o hotel como “um porto energético, desesperado”.
Já o fotógrafo Daniel Mordzinski – autor da série Quartos de Escrita: Retrato de Escritores em Hotéis –, interpreta os hotéis como locais produtores de uma solidão que favorece a criação literária. “Quem não adoeceu ou amou num quarto de hotel? Que escritor não sonhou em escrever a frase perfeita?”, questiona Mordzinski. Ao que parece, sua experiência em fotografar autores renomados lhe deu uma variedade de respostas e possibilidades. Ele compara os hotéis à Caixa de Pandora, definida pela mitologia grega como a caixa que guardava todos os males do mundo. “São uma espécie de Caixa de Pandora porque dão mais intensidade aos sentimentos. O crente irá acreditar em seu Deus, quem bebe se agarrará em sua garrafa e quem escreve sentirá que o que deve dizer é mais urgente. Essa é a relação mais profunda e talvez espiritual entre os escritores e os hotéis em toda a sua particular solidão”, enfatiza.
Para Julián Fuks, trabalhar em hotéis entre uma viagem e outra não faz parte de sua rotina de escritor, porém, admite que há algo nos quartos neutros, nos espaços desprovidos de uma história afetiva, que convida à inconsequência e à liberdade. “Quando o escritor não está cercado de um passado próprio, de um convívio familiar, pode alcançar uma amoralidade propícia à literatura, pode neutralizar censuras e pudores. Quartos de hotel, salas vazias, escritórios emprestados, qualquer variação espacial pode ajudar a liberar os dedos de um escritor que se sinta inibido ou travado”, exemplifica.

Entre continentes e paredes
Situado na América Central, em Cuba, o hotel Ambos Mundos foi destino certo de Ernest Hemingway, entre 1939 e 1960. A estada do autor norte-americano no quarto 55 transformou o local em espaço de culto. Revivendo a mágica, Daniel Mordzinski fez com que a lente de sua máquina fotografasse fotografasse mais um escritor cubano, Leonardo Padura.
Para Mordzinski, outro caso emblemático envolve o escritor Oscar Wilde e o hotel parisiense L’Hotel, ¿onde Wilde viveu seus últimos dias, até morrer sozinho em 1900.
Lá também, no quarto 12 do primeiro piso, ¿Mordzinski fotografou o premiado escritor espanhol Enrique Vila-Matas, “perdido e doente em meio a viagens e sua literatura”, relembra. Como se atribuísse à sorte, Mordzinski relata que outra foto é ainda mais impactante: “Estive no hotel Das de Harar, na Etiópia, onde Arthur Rimbaud [cultuado poeta francês] viveu por dez anos e meu amigo Santiago Gamboa [escritor colombiano] passou semanas relendo Rimbaud e tentando reviver uma temporada no inferno”, conta Mordzinski sem atenuar a força dos momentos compartilhados com os autores e os lugares.

 

BOXE - Intimidade revelada

Fotógrafo argentino trouxe registros inusitados de escritores de renome ao Sesc Bom Retiro

Salman Rushdie comendo uvas numa banheira vazia, Fernando Verissimo encarando o flash com cumplicidade, José Saramago observando o movimento da cidade entre as cortinas. Essas são algumas das cenas registradas por Daniel Mordzinski, ¿não à toa chamado de fotógrafo dos escritores.
Seu trabalho foi visto no Sesc Bom Retiro entre os meses de janeiro e março, na exposição Quartos de Escrita: Retrato de Escritores em Hotéis, com curadoria do jornalista e escritor Afonso Borges, que conheceu Mordzinski em Cartagena, em janeiro de 2014, no Hay Festival. “Quando cheguei à sede do festival, vi um sujeito pulando no segundo andar. Fui lá ver o que era aquilo e dei de cara com Gael García Bernal dando saltos e sendo fotografado”, conta Borges. “A obra de Mordzinski visível é importante – são milhares e milhares de fotos clicando quem escreve. Mas a sua obra invisível não é mensurável – a serena invasão de quem vive solitário, trabalhando, ganha valor com ele.”
Encontros e oficinas complementaram a exposição, definida pela técnica de programação da unidade, Kátia Caliendo, como uma “programação integrada, a refletir sobre os outros lugares de escrita. Vimos como necessário esse momento para a reflexão sobre o tema e para potencializar o encontro direto com a arte, na forma de produção artística”. Para ela, a troca de olhares foi o eixo principal de toda a programação, acompanhando a proposta de Mordzinski: “Olhar de diferentes maneiras uma mesma pessoa ou um mesmo objeto. A literatura extrapolou os livros, as paredes de hotéis e chegou ao público de maneira sutil, potente e – por que não? – divertida”, comenta.