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Baden Powell

Crédito: Dieter Hopf
Crédito: Dieter Hopf


Virtuosismo, talento e técnica fizeram de Baden Powell um dos nomes mais expressivos do violão


Ao pesquisar o nome Baden Powell na internet o resultado apresenta duplo significado. O violonista e o fundador do escotismo, o general Robert Stephenson Smyth Baden Powell, misturam-se na rede. Em 1937, Lilo de Aquino (Tic), pai do músico brasileiro, não imaginaria que o nome escolhido para batizar seu caçula seria tão conhecido quanto o homenageado britânico. Além de músico amador, Lilo era fabricante de sapatos e chefe dos escoteiros da cidade fluminense de Varre-Sai – onde Baden Powell nasceu.

Segundo relato da biografia O Violão Vadio de Baden Powell (Editora 34, 1999, edição esgotada), escrito pela francesa Dominique Dreyfus, o parto do menino foi em casa, seguindo os costumes da época. Quando o bebê tinha três meses de vida, a família se mudou para a cidade do Rio de Janeiro, fixando residência no bairro de São Cristóvão. Ali eram comuns as apresentações musicais nas ruas: festas de carnaval, São João, serenatas e rodas de choros, as quais ficaram na memória de Baden. Na casa, além do garoto, moravam o pai, a mãe, Adelina Gonçalves (Neném), a irmã, Vera, e os irmãos de Lilo.

Fora do comum

Baden Powell pegava às escondidas o violino do pai para tirar sons. A ação despertou a atenção dele para a sensibilidade do caçula para a música. O pai foi seu primeiro professor de violão. Aos 8 anos teve como mestre o pernambucano Jayme Florence, o Meira, professor de outros talentos, como Maurício Carrilho e Raphael Rabello.

O ritmo de apresentações encorpava, tendo estreado na Rádio Nacional aos 10 anos de idade, ao marcar presença no programa Papel Carbono, no qual ganhou o primeiro lugar interpretando a canção Magoado, de Dilermando Reis, violonista paulista que chegou a dar aulas de violão para a filha do ex-presidente da República, Juscelino Kubitscheck. Ao evidenciar-se o prodígio de Powell, Meira comunicou ao pai que já não tinha mais o que ensinar ao aluno, o qual era convidado frequentemente para tocar em público. Sem cerimônia, batiam na porta do casal e se comprometiam a buscar e trazer o menino em segurança. Esse período ficou marcado pela formalização do aprendizado. Powell entrou na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro, aos 13 anos de idade.

Para o idealizador do Acervo Digital do Violão Brasileiro (violaobrasileiro.com.br), Alessandro Soares, esse histórico comprova a relevância inegável de Powell. “Ele atingiu uma dimensão que talvez outro violonista brasileiro não tenha tido. Primeiro, porque vivenciou o período do Long Play – o que não aconteceu com o violonista Garoto, por exemplo –; segundo, porque reuniu talentos raros”, explica. “Fora a técnica, inventou uma nova forma de tocar. A levada de mão direita dele é inigualável e arrebatou gerações: Egberto Gismonti, Edu Lobo, Toquinho.” Soares também destaca o lado compositor do músico. “As melodias feitas com Vinicius de Moraes, depois na linha dos Afro-Sambas, as parcerias com Paulo César Pinheiro, são incríveis”, elogia.

Powell e Vinicius de Moraes tornaram-se não só parceiros musicais, mas amigos. Da convivência ficaram os registros de Cantiga de Ninar Meu Bem, Sonho de Amor e Paz, Samba em Prelúdio, Deixa, entre outros. Com Paulo César Pinheiro compôs Lapinha e Vou Deitar e Rolar, imortalizada na voz de Elis Regina no disco Em Pleno Verão (1970).

No fim dos anos 1950, Baden Powell era presença certa em sessões de estúdio da Philips, gravadora que o contratara como músico. Acompanhou Roberto Carlos no início de carreira durante a gravação de um “disco prova”, entre outros estreantes, e também vários artistas renomados, sempre deixando sua marca.

Motivados pela excelência do instrumentista – que ganhava importância no boca a boca –, a gravadora não teve alternativa: de contrato assinado, o primeiro disco ficou pronto em dois dias. Chegava ao mercado Apresentando Baden Powell e seu Violão, disco que resultou em vendas expressivas e música na rádio.


Quem é esse cara?

O pianista Amilton Godoy conviveu com Baden Powell e traz na lembrança histórias que servem para exemplificar a personalidade do amigo. Conheceram-se antes da formação do Zimbo Trio (grupo instrumental surgido nos anos 1960 do qual Amilton participou) e ficaram mais próximos a partir de 1965, no programa de TV O Fino da Bossa, exibido pela TV Record e comandado por Elis Regina. “Nos víamos quase toda semana. Ele trouxe uma renovação única para nossa música”, comenta. Godoy conta que naquela época todos frequentavam um bar ao lado do teatro onde aconteciam as gravações. Num dia encontrou Powell e Vinicius de Moraes sentados na mesa do bar. “Eles estavam decidindo a letra de Canto de Ossanha”, lembra aos risos. “Tudo era bem espontâneo.”

Sempre que se encontravam para conversar, o assunto era música, e Powell mantinha postura firme para defender suas ideias. Um episódio ilustra o caráter do amigo. Godoy participou do júri no festival da TV Excelsior selecionando intérpretes para as composições que recebia. “Naquela época tinha a Elis (Regina), Jair Rodrigues, Wilson Simonal, muita gente nova que cantava mandando brasa. Era o sinônimo de uma música extrovertida, diferente da Bossa Nova”, diz. “Quando vi a composição do Baden estava escrito: Cidade Vazia – Cantor Milton Nascimento. Ninguém ainda conhecia o Milton. Então chamei Baden e perguntei quem era esse cara. Ao que ele – me comendo com os olhos – reagiu dizendo que era um cantor muito bom e que se responsabilizava pela escolha.” Devido à insistência, Milton Nascimento ganhou sua primeira oportunidade em São Paulo. “Ele não ganhou o festival, mas se destacou. Com toda a intransigência, quem podia dizer não para o Baden? Quando falava de música, era coisa séria”, pontua Godoy.


Memória preservada

Discos, fotos, cartazes, programas de shows, algumas partituras, anotações, cadernos de exercício e dois violões restaurados de Baden Powell são preservados pelo Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro (IMS-RJ). O trabalho com o acervo começou em 2013. “A análise do que temos vai nos permitir, em algum momento, a realização de uma linha do tempo ilustrada, pois há muito material disponível”, revela a coordenadora de música do acervo do IMS, Beatriz Paes Leme, comparando o trabalho à mineração. “É minucioso. Precisamos tomar contato e aos poucos ver quanto disso podemos processar para ser divulgado”, pondera.

Um dos filhos de Baden, o também violonista Marcel Powell, menciona a importância de manter o acervo e salienta o carinho pelos violões do pai: “Prezamos muito todo o material e os violões. Há outros que estão comigo. Não uso para trabalhar diariamente, mas toco em casa, estão em perfeito estado e precisam ser usados. Os instrumentos devem ser cuidados tanto quanto uma vida, pois morrem se não forem tocados”, observa Marcel.

Os filhos acompanharam Powell na música. Em 1994, Marcel e o irmão, o pianista Philippe, gravaram com o pai Baden Powell e Filhos, registro ao vivo de um show feito no auditório Guiomar Novaes, um anexo da Sala Cecília Meireles no Rio de Janeiro. “Foi a minha primeira experiência com gravação. Eu tinha 12 anos e me lembro dos ensaios, da passagem de som e do meu pai preocupado em definir o repertório. Me sinto privilegiado de ter vivido isso logo no começo da carreira. Quantos artistas têm uma oportunidade como essa?”, questiona Marcel, sem disfarçar o orgulho.

A virtuose de Powell foi aclamada no exterior. O instrumentista morou na Europa e gravou discos na França e na Alemanha. Marcel comenta que ao se apresentar em outros países sempre ouve a menção a dois músicos brasileiros, Tom Jobim e Baden Powell. “Eles se tornaram referência da música brasileira no exterior”, confirma o instrumentista.

Beatriz Paes Leme destaca a atualidade da colaboração de Baden, que ainda pulsa na tradição do violão nacional. “A trajetória dele vem ao encontro da qualidade dos nossos instrumentistas”, relata. “Podemos citar também o trabalho pioneiro desenvolvido por Garoto – considerado precursor do violão moderno brasileiro –, o próprio Meira, Maurício Carrilho, e outros que estão na ativa e mais nomes que irão despontar. É inegável a tradição do violão brasileiro.”

Peça fundamental nesse jogo, Baden Powell seguiu em trânsito tocando seu violão de maneira ímpar. Esteve no prestigiado Festival de Montreaux, na Suíça, em 1995. De 2000 é seu último registro em disco. Lembranças foi lançado após a sua morte, em setembro do mesmo ano. Boa parte da discografia do músico pode ser encontrada e ouvida, com toda reverência que sua obra merece.


Conjunto melódico
Entre canções de sucesso e composições menos conhecidas, Powell desenhou um repertório sólido durante a carreira

Apelo: é uma canção do tempo em que dividia com Vinicius de Moraes o amor pela música e pela boemia. Ganhou o título provisório de DDC – dor de cotovelo –, até sua estreia, ao ser gravada pelo Quarteto em Cy, em 1965. Trata do sofrimento efetivo do poeta, cuja relação com Lucinha Proença estava caindo aos pedaços.

Afro-Sambas: disco mais marcante de sua carreira, gravado em janeiro de 1966, em parceria com Vinicius de Moraes. Salvo os Afro-Sambas, são raros os discos do violonista pensados a partir de um conceito. Em geral, a coesão se deve ao estilo pessoal do instrumentista, muito mais do que a seu repertório. A insatisfação de Baden Powell com o resultado – pois na época só existiam dois canais estéreos – fez com que ele regravasse o álbum em 1990, assumindo os novos arranjos e direção artística da produção.

Baden Powell – Do Rio a Paris: gravado entre os anos 1994 e 1995, marca a sua volta ao Rio de Janeiro. Trazia repertório quase todo inédito, assinado só pelo violonista ou com os filhos. Nele há homenagem a seu mestre no instrumento, em Tributo ao Professor Meira, e Vou Deitar e Rolar, parceria com Paulo César Pinheiro.

Canção a minha amada: parceria entre Baden e o cineasta Ruy Guerra. Os dois fizeram muitas canções juntos nos anos 1960. Essa foi a única que deixou algum rastro, embora, como todas as outras músicas da dupla, nunca tenha sido gravada. Mas, segundo Baden, eram todas lindas.

Fonte: O Violão Vadio de Baden Powell (Editora 34, 1999, edição esgotada), Dominique Dreyfus


Sintonia fina
Amilton Godoy e Marcel Powell reuniram-se pela primeira vez em show no Sesc Pompeia

Instrumentistas de mão cheia, o pianista Amilton Godoy (foto) e o violonista Marcel Powell estiveram juntos em apresentação inédita no Sesc Pompeia no mês de abril. A obra de Baden Powell foi a base do repertório mostrado nas duas noites de shows.
De gerações diferentes, mas compartilhando o talento e a paixão pela música, os dois participaram da série Encontros Instrumentais, promovida pela unidade – que reúne nomes expressivos da música instrumental brasileira, objetivando aproximar o público desse estilo tão profícuo e elogiado aqui e no exterior.

Segundo a técnica de programação do núcleo de músicado Sesc Pompeia Sarah Degelo os caminhos da música instrumental brasileira têm se mostrado tão diversos que não se pode, hoje, considerar uma cena com procedimentos criativos e padrões estéticos comuns. “Os instrumentistas que compõem a série apresentam trajetórias maduras e trabalhos importantes na constituição do repertório brasileiro”, explica. “Ao unirem-se pela primeira vez no palco, são convidados a desafiarem seus modelos e repertórios e vivenciarem, juntos, o risco do acontecimento artístico, em um novo momento de criação.”

Abrindo o projeto, apresentaram-se Jaques Morelenbaum e Chico Pinheiro, em fevereiro. Benjamim Taubkin e Ivan Vilela, em março. O próximo encontro é entre André Mehmari e Antônio Loureiro, no mês de maio.