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Os passos da habitação social

Por: HERBERT CARVALHO

Desengavetar documentos do passado para ajudar a pensar num futuro sem o déficit atual de oito milhões de moradias e na construção de mais 27 milhões de casas ou apartamentos, atendendo, assim, às necessidades previstas pelo Plano Nacional da Habitação até 2023. Resgatar exemplos de planos urbanísticos especialmente agora quando se fala numa edificação maciça de habitação, garantindo o direito à moradia digna para toda a população. Ou, ainda, criticar a visão estreita que insiste em produzir moradias sem construir cidades.

Estes são os propósitos da monumental obra de pesquisa realizada ao longo de quase duas décadas na Universidade de São Paulo (USP), pelo arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, e publicada em três grossas brochuras sob o título Os Pioneiros da Habitação Social. Fartamente ilustrada por fotografias antigas e atuais, plantas, croquis e desenhos de centenas de projetos, a edição destinada a se tornar um clássico nas estantes dos especialistas do setor é resultado de parceria entre a Editora Unesp e as Edições Sesc São Paulo. Um livro concebido para tratar desse tema com a mesma qualidade que tem sido dada à “alta arquitetura”, de acordo com as palavras de apresentação do próprio autor.

Dois desses volumes, o segundo e o terceiro, de aspecto mais técnico, contam com a coautoria da também arquiteta e urbanista Ana Paula Koury, doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP): o segundo, traz um inventário completo dos empreendimentos de habitação social de produção pública entre 1930 e 1964, durante a chamada era Vargas; o terceiro, foca em detalhes onze das mais emblemáticas “propostas de morar para o Brasil moderno”.

É no primeiro volume, entretanto, da lavra exclusiva de Bonduki, que se concentram as informações para a compreensão de mais de cem anos de políticas públicas setoriais, num vasto mosaico que começa nas vilas operárias do início do século passado e se estende até o atual programa do governo federal Minha Casa, Minha Vida. Vereador em São Paulo e relator do Plano Diretor Estratégico da cidade, recentemente aprovado, o autor se dedica ao tema desde sua tese de doutorado, que em 1998 resultou no livro Origens da Habitação Social no Brasil.

Para elaborar o trabalho que agora chega aos leitores, com prefácio do historiador Nicolau Sevcenko e patrocínio da Petrobras, Bonduki orientou e coordenou grande número de pesquisadores de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado. O resultado foi “prodigioso pela escala e acuidade analítica”, além de “oportuno, inspirador e de irresistível apelo solidário”, na visão de Sevcenko, para quem a obra contém o desejo de “transformarmos o desafio dos pioneiros nas respostas concretas, dignas e urgentes do nosso tempo”.

Bairro operário

Durante a Primeira República (1889-1930), quando ganhou vida no Brasil o surto inicial de expansão urbana, surgiram algumas alternativas de moradia destinadas a abrigar a crescente classe trabalhadora. Iniciativa inovadora do presidente Hermes da Fonseca – que precisou enfrentar a oposição do Congresso Nacional e de forças políticas conservadoras contrárias à intervenção do estado na questão habitacional – surgiu, em 1912, na zona norte do Rio de Janeiro, à margem da estrada de Ferro Central do Brasil, o bairro operário Marechal Hermes. Esta primeira e tímida experiência governamental resumiu-se a 165 unidades que acabaram ocupadas por funcionários públicos e apaniguados do governo.

No mesmo período, para atender às necessidades de estabelecimento do capitalismo no país, companhias privadas da indústria têxtil edificaram núcleos para atrair e alojar a mão de obra. Eram verdadeiras cidadelas com equipamentos coletivos – escolas, igrejas, enfermarias, clubes, pequenos comércios – administrados e sustentados pela empresa. Para os patrões, que cobravam aluguéis abaixo do valor de mercado, as vantagens eram muitas: salário menor em troca da moradia, pagamento garantido descontado em folha, participação laboral de vários membros de uma mesma família e fidelidade do trabalhador, pois a demissão implicaria na perda da habitação.

Três empresários se notabilizaram pela implantação de vilas operárias modelares: Luís Tarquínio, em Salvador, na Bahia; Delmiro Gouveia, em Alagoas, e Jorge Street, em São Paulo. Deste último, a Vila Maria Zélia, no bairro paulistano do Belenzinho, com casas de um só pavimento e dois, três e até quatro quartos, construídas em ruas largas, é considerada precursora do conjunto residencial moderno.

Para o autor, a contribuição desse período – que ele caracteriza como de “produção rentista da habitação” – é o reconhecimento de que a moradia dos trabalhadores constituía um problema público e a definição de “padrões mínimos de habitabilidade, com os conceitos higienistas em vigor na época”. Poucos, porém, podiam pagar aluguel naquele tempo: a maioria se amontoava em cortiços, cabeças de porco ou casas de cômodo, como se denominavam as habitações subnormais antes da proliferação das favelas.

Após a Revolução de 1930, o Brasil abandonou o liberalismo e o estado passou a interferir em todos os aspectos da vida econômica, inclusive na questão da habitação. O instrumento para isso foram os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), autorizados a partir de 1937 a investir suas reservas – até então aplicadas exclusivamente em títulos da dívida pública, com rendimentos muito baixos – na construção de moradias de aluguel para seus associados.

Encarada como uma questão social, a habitação passou a ser considerada também um serviço público: os conjuntos residenciais construídos pelos institutos previdenciários dos industriários (IAPI), dos comerciários (IAPC) e dos bancários (IAPB) contavam com equipamentos coletivos e espaços verdes e de lazer, abertos para a cidade, como se pode ver com riqueza de detalhes nos segundo e terceiro volumes da obra de Bonduki. Porém, num tempo em que os trabalhadores assalariados não tinham renda para adquirir casa própria, a rentabilidade das locações e a valorização dos imóveis eram objetivos colocados à frente do atendimento habitacional.

Áreas periféricas

Essa lógica rentista entrou em crise a partir de 1942, quando Getúlio Vargas, em pleno Estado Novo, outorgou a Lei do Inquilinato e congelou os aluguéis. Com a redemocratização, em 1945, superou-se a visão corporativa dos IAPs por meio da criação da Fundação da Casa Popular (FCP), em 1946, introdutora do conceito de universalidade no acesso à moradia. Nesse modelo, a obtenção dos terrenos e a instalação da infraestrutura eram responsabilidades do município, ficando o órgão federal encarregado da produção das unidades. Desse modo, as casas populares começaram a ser deslocadas para áreas periféricas distantes e carentes, problema ainda hoje não superado.

Esvaziada desde o nascedouro, sem fundos específicos e sem orçamento para administrar em nível nacional uma autêntica política habitacional, após participar da edificação das áreas residenciais de Brasília a FCP foi extinta em 1964, nos albores da ditadura militar. Durante os anos de chumbo, o Banco Nacional da Habitação (BNH), turbinado com os recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), viabilizou a produção em massa de unidades habitacionais, mas perderam-se a diversidade, a riqueza arquitetônica e a preocupação com a inserção urbana e com a criação de equipamentos e espaços públicos de qualidade que marcaram o período anterior.

Assim, chega-se ao Brasil do século 21 que, praticamente, encerrou o ciclo de migração campo-cidade e proporcionou renda e acesso a crédito para que grandes contingentes historicamente marginalizados da população realizem o sonho da casa própria. O nível de conhecimento e de formulação sobre a questão da habitação acumulado ao longo do tempo é mais do que suficiente para isso, garante Bonduki. A questão a ser equacionada nos dias atuais, segundo ele, é outra. “A procura por consonância entre economia, beleza e boas condições de habitabilidade em um ambiente urbano saudável, que orientou os pioneiros, continua a ser um desafio para os que pensam a habitação como uma questão social, da cidade, de uso para seus moradores, e não como um negócio”, afirma Bonduki.