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Força da fronteira na economia local

Uruguaiana: ponte internacional é peça-chave do comércio no Cone Sul / Foto: José Paulo Borges
Uruguaiana: ponte internacional é peça-chave do comércio no Cone Sul / Foto: José Paulo Borges

Por: JOSÉ PAULO BORGES

Nem o presidente do Brasil, Eurico Gaspar Dutra, e muito menos o da Argentina, Juan Domingo Perón. Naquela manhã gelada de 21 de maio de 1947, em Uruguaiana, no extremo oeste do estado do Rio Grande do Sul, quem roubou a cena na solenidade de inauguração da ponte internacional sobre o rio Uruguai, unindo os dois países, foi a primeira-dama Eva Maria Duarte Perón, a Evita. Saudada em prosa e verso à época como a mais completa tradução da mulher argentina, Evita provocou um pequeno tsunami durante sua breve passagem pela região. Na cidade de Paso de los Libres, na extremidade argentina da ponte, Evita levou seus conterrâneos ao delírio ao distribuir notas de um e cinco pesos valorizados porque ostentavam seu autógrafo. Do lado brasileiro, enquanto permaneceu no palanque oficial, com o marido e o presidente Dutra, o corte perfeito do vestido, o penteado no rigor da moda e o casaco de pele que descia com discreta elegância dos ombros, atraíam os olhares.

“Era uma mulher belíssima”, recorda Elza Correa Pons, um dos sobrenomes mais tradicionais em Uruguaiana. Naquela época, Elza, hoje com nove décadas de vida, vivia a juventude dos seus 19 anos de idade. Ela se recorda da recepção de gala oferecida à noite no Clube Comercial – o mais chique da cidade – aos ilustres visitantes. “Perón pediu licença ao meu sogro e me tirou para dançar uma valsa. Como ele era alto”, repassa de memória. Foram duas voltas, quanto muito, no salão, nos braços do presidente argentino, instantes que ficaram marcados para sempre nas suas lembranças. “O chapéu cor-de-rosa de Evita, de penas bem fininhas, era deslumbrante”, entusiasma-se. Qual uma cinderela do rio da Prata, à meia-noite Evita, juntamente com a comitiva presidencial, regressou a Buenos Aires.

A ponte, com 1.419 metros de extensão e que também permite a passagem de trens, foi considerada a obra-prima da engenharia latino-americana da época. Mas sua construção não foi recebida com unanimidade. O Exército brasileiro temia uma invasão argentina por ali, por isso relutou em avalizar o projeto. Hoje, transcorridos 68 anos de sua inauguração, a ponte internacional que leva os nomes dos presidentes que mais se empenharam para sua concretização – o brasileiro Getúlio Vargas e o argentino Agustín Justo – não é apenas o cartão de visita da cidade, mas o marco que identifica Uruguaiana como o portal do Mercosul, uma peça fundamental da engrenagem que movimenta o comércio internacional sobre rodas do Brasil com os países do Cone Sul.

Para se ter uma ideia do protagonismo do município no panorama logístico da região, basta dizer que até Montevidéu, no Uruguai, a distância é de cerca de 720 quilômetros, em direção a Buenos Aires, na Argentina, dependendo da rota, são pouco mais de 660 quilômetros, enquanto que para Assunção, no Paraguai, o percurso é de 490 quilômetros. Com uma área de 5.715 quilômetros quadrados e uma população de 130 mil habitantes, Uruguaiana é uma das raras cidades fronteiriças do Brasil que pode dar-se ao luxo de ostentar tais vantagens estratégicas. Vantagens, aliás, das quais soube tirar proveito bem cedo. Em 1850, através do porto erguido à beira do rio Uruguai, e ainda uma pequena vila fundada 12 anos antes durante a Revolução Farroupilha (1835-1845), já praticava intenso comércio internacional de derivados do gado bovino criado nas grandes estâncias, com países vizinhos e mesmo com Alemanha, Bélgica, França e Inglaterra.

Maior porto seco

A ponte internacional ficou pronta em 1945 e já estava operando quando Perón e Dutra cortaram a fita inaugural, dois anos mais tarde. Mas o comércio entre Brasil e Argentina só deslanchou a partir de 1964, quando quatro carretas cruzaram por ela transportando tijolos refratários brasileiros e retornaram carregando produtos químicos produzidos no vizinho país. Em março de 1991, com a criação do Mercado Comum do Sul (Mercosul) – acordo formado, inicialmente, por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, visando uma maior integração entre as quatro nações – Uruguaiana, por sua posição geográfica, assumiu naturalmente o status de peça chave no tabuleiro econômico do bloco. Atualmente, transitam a cada 24 horas pela ponte entre 400 e 600 caminhões, indo e vindo, levando e trazendo os mais diversos tipos de carga. Por ano, mais de 150 mil veículos pesados passam no local. No verão a movimentação se intensifica devido ao aumento do número de carros e ônibus lotados com turistas argentinos em animada revoada rumo às praias do litoral brasileiro.

Não é por acaso que algo em torno de 10% da população economicamente ativa do município exerça atividades ligadas ao vai e vem do comércio internacional. Cerca de 1.500 caminhões do tipo carreta, usados no transporte internacional, têm a placa de Uruguaiana, ou seja, há um caminhão dessa modalidade para cada grupo de 80 habitantes. Estimativas apontam para uma arrecadação anual de impostos federais na cidade ao redor de R$ 1 bilhão apenas com o comércio exterior e o transporte internacional. O que não chega a ser uma surpresa, já que em 2012, por exemplo, o Produto Interno Bruto (PIB) da cidade atingiu R$ 3,16 bilhões. No entanto, persistem entre as autoridades locais queixas referentes ao baixo impacto da arrecadação de impostos federais nas finanças do município, por causa da legislação que privilegia os cofres de Brasília.

Uruguaiana também abriga o maior porto seco rodoviário da América Latina e o terceiro do gênero em ordem de grandeza do mundo. Trata-se, por definição, de terminais rodoviários localizados em corredores de exportação e importação nos quais são executadas operações de movimentação, armazenagem e despacho aduaneiro. Administrado pela Elog, empresa do grupo Columbia, o porto seco de Uruguaiana ocupa área de 167 mil metros quadrados, dos quais 12 mil metros quadrados são de armazéns (capacidade para 600 veículos de carga). Por dia, cerca de 400 caminhões passam pelo local, tanto na entrada quanto na saída do terminal. O tempo médio das operações de exportação é de três horas, já as operações de importação demandam um dia inteiro, em média. Na parte externa, dois mil caminhões aguardam a vez de serem atendidos. Se por um lado a cidade se beneficia com a população flutuante que gravita em torno do terminal, pois há uma constante demanda por restaurantes, hospedarias e borracharias, por exemplo, por outro lado isso também causa transtornos, tais como roubo de cargas, consumo de álcool e drogas, e prostituição.

Quando as trocas entre os países do bloco sul-americano vão bem, Uruguaiana agradece. Mas se algum abalo econômico estremece o Cone Sul, a crise logo reverbera na cidade. Os tempos atuais estão mais para trepidações do que calmarias. Segundo dados da Receita Federal, no primeiro trimestre de 2015 o volume de cargas para a Argentina, em trânsito pela fronteira oeste gaúcha, sofreu uma queda de 10% em comparação com o mesmo período de 2014. Já o movimento de idas e vindas de caminhões por Uruguaiana diminuiu 11% no mesmo período. Dois mil veículos de carga deixaram de atravessar a ponte em apenas dois meses: janeiro e fevereiro. Isso, claro, repercute numa corrente de atividades que vão de despachantes aduaneiros a transportadores e comerciantes, como o bem-humorado barbeiro Santinho, especializado, conforme anuncia a placa colocada em frente ao seu estabelecimento, no centro da cidade, em deixar o cliente “bem bonitinho”.

Os servidores da Receita Federal envolvidos em atividades aduaneiras não têm vida fácil em Uruguaiana. Segundo o Sindicato Nacional dos AnalistasTributários da Receita Federal do Brasil (Sindireceita), o efetivo de menos de cem profissionais não dá conta do trabalho, que inclui, por exemplo, o atendimento às demandas do porto seco, o controle do fluxo de turistas e comerciantes que passam pela ponte e, de quebra, vigilância, fiscalização, repressão ao contrabando, à pirataria e ao tráfico de armas e drogas. Mesmo assim, esses servidores ainda encontram tempo para arregaçar as mangas e retirar o lixo acumulado às margens do rio Uruguai e, assim, chamar a atenção da comunidade às reivindicações da categoria.

Polo arrozeiro

A agricultura é outra fonte de renda do município. No final da primeira quinzena de abril, a safra 2014/2015 de arroz irrigado estava praticamente concluída em Uruguaiana. Em apenas 16% dos 108,9 mil hectares de área plantada no município, ainda se avistavam colheitadeiras em atividade. Na Granja do Salso, situada a 8 quilômetros do centro da cidade, a terra já estava sendo preparada para a próxima safra. “É sempre assim, mal termina uma colheita e a gente já está de olho na próxima”, resume o arrozeiro Carlos Augusto Simonetti, proprietário da granja. Simonetti é um dos agricultores que ajudam a fazer de Uruguaiana não só o maior produtor de arroz do Brasil, mas também da América Latina.

 A evolução do arroz irrigado no Rio Grande do Sul se intensificou a partir da década de 1990, com a modernização da agricultura local. Na safra 1959/1960, por exemplo, o estado respondia por apenas 18,23% da produção nacional; no período 1980/1981 saltou para 29%, e na safra 2013/2014 os arrozeiros gaúchos foram responsáveis por nada menos que 66,7% da produção brasileira. Nesse quesito, Uruguaiana se destaca, com uma produção, na safra 2013/2014, de 695 mil toneladas colhidas e uma produtividade de 8 mil quilos por hectare, uma performance excelente tendo em vista que a produtividade média do estado é de 7,6 quilos. “Recursos naturais favoráveis, água farta e condições de tempo adequadas são fundamentais para o desenvolvimento da cultura do arroz em Uruguaiana”, explica o produtor Carlos Simonetti. “E muito trabalho”, completa.

Uruguaiana também tem história. “O senhor presidente da Câmara a convite da Sociedade Emancipadora e do Grupo 18 de abril proclama no edifício da escola municipal a libertação dos escravos do município.” A réplica com esta frase, da ata da sessão extraordinária da Câmara dos Vereadores, realizada no dia 31 de dezembro de 1884, ocupa lugar de destaque na Sala do Negro, do Museu Histórico Raul Vurlod Pont, no centro da cidade. O documento ratifica oficialmente a decisão tomada em 18 de setembro de 1884 – três anos e oito meses antes da assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel – por um grupo de jornalistas, intelectuais e políticos do movimento antiescravagista de Uruguaiana, que havia anos lutava para apagar do mapa do município “a mancha” da escravidão. “Uruguaiana foi uma das cidades brasileiras pioneiras na libertação dos escravos”, enfatiza o historiador Dagoberto Alvim Clos.

“O negro foi trazido ao pampa para trabalhar na pecuária e nas charqueadas. Seus descendentes deixaram forte marca nos hábitos e costumes da fronteira gaúcha”, relata Clos. Isso pode ser comprovado, segundo ele, pela presença de mais de 600 terreiros de umbanda e candomblé na cidade e, especialmente, pela existência, no interior do município, de três comunidades que se formaram a partir de quilombos existentes desde meados do século 19, originários de doações de terras para ex-escravos: Rincão dos Fernandes, Palma e Capela do Ipané.

Ainda estão vivos nessas comunidades vestígios daqueles redutos. Sua história está sendo resgatada por lembranças de remanescentes mais idosos, como dona Maria de Castro Moraes, 85 anos. Bisneta de escravos, oito filhos, doze netos, quatro bisnetos e dois trinetos, dona Maria, uma benzedeira, é a moradora mais antiga do Rincão dos Fernandes. Criada, segundo ela mesma conta, à base de farinha de mandioca e café preto (“quando tinha”), preparados no fogo de chão, ultimamente ela tem estado animada acompanhando o andamento das obras da sede da Associação Quilombola Rincão dos Fernandes e de oito casas, maiores e mais confortáveis, para as cinco famílias de ex-escravos que vivem por lá.

A maioria dos moradores do lugar sobrevive trabalhando nas fazendas das redondezas: os homens como peões ou capatazes e as mulheres como domésticas ou cozinheiras. Já dos 87,12 hectares do quilombo da Palma, hoje restam somente 15 e o local era habitado, até recentemente, por apenas um morador, Estanislau Gonçalves, já falecido. Ele sempre dizia que, quando morresse, queria ser enterrado por lá. Por sua vez, o quilombo da Capela do Ipané, que já foi o maior de Uruguaiana, com mais de 200 moradores, conta com apenas quatro famílias remanescentes. Alguns dos moradores dali nem se reconhecem mais como quilombolas. “É urgente a realização de um trabalho de educação nas escolas do município, bem como o tombamento imediato de todos esses locais de inestimável valor histórico, social e turístico para Uruguaiana”, cobra Clos.

Garanhão chileno

Uruguaiana também nasceu pelas mãos dos jesuítas. Em 4 de fevereiro de 1626, padres da Companhia de Jesus fundaram a Redução de Nossa Senhora dos Três Reis Magos de Japeju – posto avançado da colonização espanhola na América, que se abriu, ao transpor o rio Uruguai, em direção aos vastos campos do pampa gaúcho onde atualmente se localiza Uruguaiana. Mas, para que a missão evangelizadora e de catequese se concretizasse, os jesuítas precisavam assentar raízes bem sólidas. E assim foram criadas as estâncias jesuíticas, estabelecimentos pecuários e centros de irradiação religiosa, que ocupavam grandes espaços no pampa gaúcho, cujas marcas estão presentes até hoje no território uruguaianense. Uma delas é a estância São Sebastião.

Localizada numa colina (“coxilha”, como dizem os gaúchos), São Sebastião logo chama a atenção pelo conjunto da obra arquitetônica, toda em pedras basaltos, chamadas de Itaqui, encaixadas com perfeição e calçadas com pedras menores e mais finas. “Trata-se de uma maneira engenhosa e inteligente de equilibrar pedras de tamanhos diferentes”, explica Clos. “Esse método construtivo foi implementado pelos jesuítas e transmitido aos índios guaranis, que executaram a obra. O transporte das pedras era feito com o auxílio de juntas de bois”, prossegue.

O legado dos jesuítas à região vai além dessas construções em pedra, avalia o historiador: “Os jesuítas introduziram e propagaram o gado, base da futura economia da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, e também a técnica do pastoreio, vital para o desenvolvimento posterior. É inegável que a colonização jesuítica representa o marco inicial da história, no espaço geográfico do atual município.” É impossível concluir qualquer texto sobre Uruguaiana sem abrir pelo menos um parágrafo para Hornero, o garanhão chileno que mudou a história da criação de cavalos da raça crioula no Brasil. Extremamente resistente e rústico, por sua habilidade no trato com o gado o crioulo (termo que significa “nativo do lugar”) é o preferido do gaúcho. “Chefe maior da raça na América do Sul”, conforme dizem os criadores sulistas, o garanhão foi adquirido num leilão, em 1976, pelos criadores Flávio Bastos Tellechea e Dirceu dos Santos Pons. Na verdade, Hornero só entrou na pista de leilão por um favor especial, já que sua participação havia sido vetada por causa de um caroço que ele trazia na parte anterior. O que ninguém poderia imaginar é que aquele animal quase enjeitado iria se tornar o mais importante reprodutor da história da raça crioula em todos os tempos. Seus descendentes são useiros e vezeiros vencedores do Freio de Ouro, competição anual que busca definir, através de uma série de provas, o cavalo crioulo completo. O torneio é realizado na cidade de Esteio, região metropolitana de Porto Alegre, durante a Expointer, maior exposição agropecuária do Rio Grande do Sul.

O garanhão chileno morreu em 1997, aos 26 anos, após dar origem a um clã de mais 1.300 filhos diretos. Sua saga de mais importante reprodutor da raça não cessa de ser contada e cantada por repentistas, poetas e músicos tradicionalistas gaúchos. Em abril deste ano, num leilão realizado em Uruguaiana, sua bisneta Basca Una Piedra foi arrematada por R$ 1,5 milhão, a maior cotação já obtida por uma égua crioula.