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Histórias de uma paixão

Muitos artistas têm histórias surpreendentes para contar do que os levou a serem o que são. Pensei até em inventar umas para mim, afinal trabalho no limite entre a ficção e realidade e poderia até dar especiais sentidos à minha escolha. Só que uma paixão não se escolhe… Ou melhor, você um pouco escolhe e um pouco é escolhido. Nela, seus desejos se misturam com uma falta de controle que talvez seja o seu mais saboroso ingrediente.

Mas, afinal, como é que alguém escolhe ser palhaço? Sim, esse é meu ofício e assim preencho fichas de hotel, profissão: palhaço. De fato, busquei aprender a me expressar por várias linguagens, do desenho à dramaturgia, da cenografia à direção e apronto em outras artes pelo simples gostar. Não quero o status dessas artes, quero o fazer. Prefiro ser chamado de palhaço.

Reflito aqui, enquanto escrevo, me perguntando o que me leva a gostar tanto que riam de mim. E como se aprende a gostar disso a ponto de deixar se invadir por essa paixão?

Muito do que repasso em minha memória têm a ver com minha mãe e meu pai. Ela sempre colocou sua disfarçada alma de artista em tudo que fez, nos seus deliciosos pratos às suas costuras e pinturas artesanais. E estimulava os filhos a querer fazer arte. Nada regrado ou imposto. E o gosto pelo que as artes ofereciam vinha também naturalmente. Eram gestos simples que me seduziam. Ela se entretinha por horas lendo um romance, com tamanho interesse e satisfação, que me levava a querer o mesmo.

Já meu pai, muito agregador, reunia todos os meninos, todas as semanas para jogar bola como se fosse sempre uma festa. Como eu e minha irmã nem sempre estávamos em todos os programas dos irmãos mais velhos, ele se aplicava em nos levar a tudo quanto era tipo de espetáculo. Assisti a filmes, peças de teatro, shows de mágica, espetáculos de circo e fiz uma infinidade de passeios divertidos. Foi um gosto ensinado, mas meu pai não fazia isso como uma obrigação de nos ensinar. Fazia porque gostava de se divertir assim e juntos nos divertíamos.

Meu irmão do meio¿—¿somos cinco¿—¿desde cedo se dedicou a ser músico e recebia muito estímulo, o que nos deixava sempre empolgados com a proximidade que a arte propiciava entre nós. Era sempre um momento de encontro familiar poder ouvi-lo tocando violão. E nada era solene, todos sempre foram muitos sarristas, brincalhões e até hoje nossos almoços de domingo são recheados de risadas.

Quando percebi, lá pelos seis ou sete anos de idade, já estava convocando meus primos a fazer peças nas festas de família. A mais inesquecível foi uma em que fomos, como quem não quer nada, colhendo histórias da infância de minha mãe e minhas tias. A apresentação, no Dia das Mães, foi uma surpresa para elas e para nós, que trouxemos suas memórias vivas e cheias de humor.

Um humor que trazia o lirismo desse reconhecimento afetivo, que nos fez olhar o tempo sem cobrar dele mais do que ser o tempo.

Também nesta época, fui levado pela escola a uma peça infantil. Hoje, com 52 anos, uns 40 anos depois, lembro nitidamente de cenas do Casamento da Dona Baratinha, da casa de tijolinhos do cenário e de uma piada que me fez dar uma gargalhada tão explosiva e tão prazerosa que sempre que dou uma gargalhada sinto que retorno àquela plenitude da existência.
Esse mesmo prazer se deu quando fui assistir aos palhaços Torresmo e Pururuca, nos estúdios da TV Bandeirantes. Naquele dia, Torresminho fez uma magia cômica com um ovo e, depois, de mil peripécias o ovo se estatelou na testa dele. Minha estrondosa gargalhada fez a câmera me achar em close. Em casa e na escola aquela gargalhada virou assunto e, como eu era absurdamente tímido, aquilo também me colocou na cena da vida, afinal gente que nunca tinha me visto passou a me dirigir o olhar.

Não tenho uma explicação para ter atravessado a fronteira que separa o espectador que adora rir para ter me tornado um palhaço que tem prazer em ver os outros rindo.

Sei que aprender a gostar¿—¿por mais óbvio que seja¿—¿tem a ver com o prazer. Porém, não é somente com o meu prazer. É o prazer do encontro, do reconhecimento, da afetividade. O prazer, da piada ou do sexo, que muitas vezes é condenado pelo moralismo conservador das sociedades de todos os tempos. O prazer que nos liberta e aponta caminhos. O prazer que não se prende às regras, como a explosão de uma gargalhada que rompe os muros do comodismo e nos convoca à coragem de olhar o mundo de outras maneiras.

Como o mundo visto pelo olhar torto e hiperbólico dos palhaços, com sua aparente ingenuidade, que nos leva a perceber que existe uma liberdade possível.