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“Hollywood é uma péssima professora de história”

Sidney Ferreira Leite é historiador, mestre e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo; pós-doutor em comunicação pela Universidade Metodista, pró-reitor acadêmico do Centro Universitário Belas Artes, onde também é professor do curso de Relações Internacionais. Em sua pesquisa de doutorado, estudou a relação entre História e o cinema, com a tese O filme que não Passou: Estados Unidos e Brasil na política da boa vizinhança¿—¿diplomacia através do cinema.

 

Qual a relação entre a sociedade brasileira e sua História?

No Brasil, há uma dificuldade de constituição do conhecimento histórico porque o Estado constrói uma galeria de heróis para contar a História oficial que é predominantemente ensinada na escola. Percebemos isso ao ler os livros didáticos que, por mais que tentem romper com a tradição, não conseguem fugir de uma reprodução factual de nomes e datas. Assim, não conseguimos viabilizar com eficiência uma História crítica da sociedade. Na redemocratização do país, voltamos a discutir a História como ferramenta da cidadania, mas essa discussão me parece que se perdeu. Rompemos com aquela carga ideológica e doutrinadora do regime militar, mas não conseguimos construir um modelo de ensino de História que fosse eficaz. Abandonamos um projeto, mas vivemos num permanente estado de transição em que sabemos o que não queremos, que é o factual, mas não conseguimos construir o novo.

 

De que forma o audiovisual auxilia no ensino da História?

A ideia de usar o Cinema como uma ferramenta de educação e também de manipulação das massas nasce quase juntamente com ele, na virada do século XIX para o XX. Essa é uma discussão muito forte na Europa, mas o fato de debatermos o audiovisual e sua conexão com ensino e aprendizagem não significa que tenhamos feito o “dever de casa”. Pelo contrário, pois ainda usamos mal o audiovisual, apenas como ilustração de um período histórico. As ferramentas são riquíssimas, mas precisamos ter teorias e metodologias claras de utilização da imagem, inclusive para desconstruí-la. Hollywood é uma péssima professora de História, mas é possível desmontar seus filmes e ter uma bela percepção do presente.

 

Qual a relevância social dos filmes e séries baseados em fatos históricos?

Os filmes históricos contemporâneos, mesmo que estejam falando de uma sociedade cujo passado é remoto, estão falando do presente, mas isso não é perceptível para o espectador. Gladiador, por exemplo, não fala sobre Império Romano, mas sobre os Estados Unidos e a era Bush. Ele faz uma discussão ética em torno de valores da sociedade norte-americana, mostra seu esgotamento político, o poder da mídia e o uso sistemático de valores ideológicos apresentados como verdades. Filmes como esse se valem do conhecimento histórico como uma ferramenta de percepção do presente e de localização dos indivíduos dentro dos contextos sociais. Se forem apresentados dessa maneira a estudantes, eles desenvolverão um olhar mais crítico e tentarão entender os elementos que estão por trás de um filme, questionando até sua data da produção. O fundamental é levá-los a perceber que um filme é uma construção, é uma leitura. Não é a verdade, mas uma representação da verdade.

 

Como você avalia a produção audiovisual de obras históricas no Brasil?

Por aqui, é interessante pensarmos na Hollywood brasileira, a TV, com seu principal produto, a novela. Nos anos 1970, era muito comum os grandes romances serem adaptados para a TV, com uma percepção nem um pouco crítica. Mas, recentemente, acompanhei uma novela que gostei muito, sobre o início da República no Brasil, Lado a Lado, vencedora do Emmy em 2014. As minisséries também têm um papel bem interessante de levar esse viés de desconstrução da História oficial. É uma missão a ser feita, por uma mídia comprometida em não ser apenas um negócio. Por professores de História comprometidos a se valer da História como uma ferramenta de conscientização, não apenas como um lugar de memória.

 

Se a ficção ajuda a compor a História de uma sociedade, não corremos também o risco da criação de uma memória histórica ficcional?

Esse risco é enorme, porque, sem um olhar crítico, as narrativas de ficção passam como verdadeiras. Como no caso do filme Rambo, que acabou consolidando um pouco a versão norte-americana sobre a Guerra do Vietnã. É muito provável que alguns americanos cultivem a ideia de que os Estados Unidos venceram a Guerra do Vietnã, além de outras. Esse “rocambole” histórico perigoso muitas vezes passa como uma verdade histórica. Contudo, esses filmes populares são fontes ricas para a compreensão da História Contemporânea. Por mais horrendos que possam ser em termos de mensagem e roteiro, cabe ao professor, junto a seus alunos, decodificar e desmontar a mensagem. Porque aí atuamos em duas frentes: a do conhecimento histórico, baseado na História da sociedade, não de mitos criados pelo Estado; e a da disciplina História, utilizando o universo audiovisual para preparar a criança a lidar com diferentes manipulações de imagens que ele vai encontrar ao longo de sua vida, cuja tendência é ser cada vez maior.

 

A produção de vídeos para internet, independente e até amadora, pode se tornar objeto de estudo histórico no futuro?

As mídias sociais terão de ser trabalhadas pelos historiadores para tentar compreender, por meio dessa produção, o que foi esta sociedade a partir de sua entrada na era da internet e qual o primeiro impacto na vida e no comportamento das pessoas. Essas produções são fontes riquíssimas para mostrar uma sociedade complexa, consumista e que está redefinindo seus valores. Ela começa a renegar seus valores antigos, mas não sabe quais são os novos. Qualquer historiador no futuro que quiser compreender o nosso contemporâneo, vai ter de se valer dessas fontes, que são as mais valiosas porque são as mais espontâneas.

 

A produção facilitada pode alterar a forma como as pessoas encaram e interpretam o audiovisual e a própria História?

Há um potencial muito forte para que, na medida em que você mesmo seja o produtor de uma narrativa, compreenda a construção de um roteiro, e o quão subjetivos são o processo e o resultado. Mas me parece que não é isso que está acontecendo. Acredito que essa produção está reforçando determinados conceitos. Não há a conscientização de que o audiovisual é uma construção. Quando se tira uma fotografia, a fotografia não mente, mas o fotógrafo pode mentir. Com a produção do vídeo é a mesma coisa. É tudo sempre uma seleção. Quando estudamos História, a primeira lição é uma frase do historiador George Duby que diz que “Os homens não vivem o real. Os homens vivem a imagem que constroem do real”. Toda questão é a imagem. O que nós temos são construções do real. Umas são fundamentadas, outras são pura ideologia.