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O que restou da nossa vida privada?

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Ambientes equipados com câmeras de vigilância, pessoas que expõem a vida nas redes sociais, empresas que procuram informações online sobre os candidatos. Entre os diversos impactos das novas tecnologias de informação e comunicação está a ampliação da capacidade de coleta e disseminação de informações mundo afora, o que coloca em jogo os limites da vida privada. Qual o controle que ainda exercemos sobre as nossas próprias informações? É possível afirmar que ainda existe privacidade atualmente? Discutem o tema a doutora em sociologia Mariana Zanata Thibes, o professor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Danilo Doneda e a mestranda em políticas públicas na Hertie School of Governance (Berlim, Alemanha) Marília Monteiro.


AUTOEXPOSIÇÃO NAS REDES
por MARIANA ZANATA THIBES

Entre as inúmeras notícias que nos alarmam cotidianamente sobre ameaças à privacidade, a mais recente a que tive acesso foi sobre um software do Google que estaria sendo secretamente instalado nos navegadores Chromium (a versão open source do Google Chrome) e que seria capaz de ouvir o que é dito em frente ao computador1. O software foi criado como suporte da nova ferramenta de detecção de palavras, o chamado “OK, Google”, que faz o computador responder quando você fala com ele. Entretanto, alguns usuários alegaram que o software foi instalado e ativado sem sua permissão. Isso significa que o computador poderia ativar o microfone e a câmera do computador para captar imagens e sons e enviar esse conteúdo para outras pessoas, incluindo empresas, governos etc., sem o nosso consentimento e conhecimento. Esse tipo de recurso de voz já está disponível em smartphones modernos há algum tempo. A novidade seria sua introdução nos lares por meio das smart TVs e agora dos navegadores de internet.

Dessa forma, além das câmeras que nos espionam o tempo todo em condomínios, bancos, lojas, ruas, agora estaríamos sendo espionados dentro de nossa própria casa. Não por acaso, essa notícia alarmou os defensores da privacidade mundo afora, já que o recinto por excelência considerado guardião da privacidade, isto é, a casa, foi o alvo do ataque da vez à privacidade. Infelizmente, essa é apenas mais uma notícia que se soma a tantas outras que temos lido acerca das ameaças a nosso direito de privacidade e que nos fazem indagar sobre a possibilidade de manutenção desse direito no presente.

Os riscos à privacidade são, via de regra, atribuídos ao desenvolvimento das novas tecnologias da informação e comunicação (NTICs). Estas, sem dúvida, ampliaram de modo jamais visto a capacidade de coleta e disseminação de informações, o que teve impactos consideráveis sobre a privacidade. Entretanto, é preciso ampliar o nosso olhar histórico para entender quais são de fato as transformações em jogo na vivência da privacidade no presente. A vigilância, por exemplo, não constitui nenhuma novidade. Ela sempre foi um recurso dos Estados para governar a população e lidar com inimigos políticos. O desenvolvimento tecnológico, nesse caso, apenas teria ampliado – de modo excepcional, é verdade – o poder das ferramentas de vigilância, as quais, hoje, são muito mais sofisticadas do que nos tempos da Guerra Fria. Entretanto, o desenvolvimento das NTICs não explica a outra parte do problema da privacidade no presente: a despeito de tantas notícias alarmantes sobre as ameaças a esse direito, as pessoas continuam a expor a vida privada na internet, sobretudo nas redes sociais. É no mínimo espantoso que a exposição virtual só aumente a despeito da ampliação massiva das formas de vigilância. Como explicar essa aparente contradição? É nesse ponto que precisamos buscar outras explicações para entender o que aconteceu com a privacidade.

Um aspecto fundamental da chamada “exposição de si online” é que as pessoas não publicizam quaisquer aspectos da vida nas redes sociais. Basta prestar o mínimo de atenção em nossa página do Facebook: todos parecem felizes e bem-sucedidos, ninguém aparece mal nas fotos. Em outras palavras, há uma seleção cuidadosa do que deve ser publicado para se adequar aos símbolos de beleza, sucesso e felicidade presentes em nossa sociedade. É claro que sempre há falhas nesse processo de gestão da imagem pessoal online: deslizes ocorrem constantemente e podem resultar em relacionamentos rompidos, perda de amigos, de emprego etc. O que queremos dizer, em suma, é que uma imagem bem construída de si rende bons frutos: popularidade, amigos, reconhecimento, fama, ao passo que uma má imagem ou simplesmente a ausência dela pode conduzir ao ostracismo social, gerar ansiedade, frustrações e até mesmo ocasionar danos mais sérios, como nos casos em que pessoas perdem o emprego, por exemplo, por conta de uma foto de um momento de bebedeira postada inadvertidamente em alguma rede social.

É sabido que universidades norte-americanas checam minuciosamente as informações online de seus candidatos. Caso se deparem com algo que julguem inadequado (uma foto, uma frase, ou mesmo a postura geral do candidato), podem negar a admissão. O mesmo ocorre em âmbito profissional. Uma pesquisa realizada pela empresa CareerBuilder descobriu que pelo menos duas em cada cinco companhias procuram informações online sobre seus candidatos para avaliar seu “caráter e personalidade”. A mesma pesquisa mostrou que um terço dos empregadores disse que encontrou em sua busca algo que os fez não contratar algum candidato, como fotos provocativas, informações inapropriadas ou evidência de uso de álcool e outras drogas. Outras razões para a desistência da contratação seriam a demonstração de poucas habilidades comunicativas no perfil, a difamação de antigos empregadores, ou comentários ofensivos relacionados a gênero, etnia ou religião2. Uma saída para evitar esse tipo de situação seria simplesmente sair de todas as redes sociais, alguns poderiam pensar. Entretanto, como alerta a revista Forbes, candidatos silenciosos estão em desvantagem. A ausência de informações online pode ser interpretada como suspeita ou como inabilidade do candidato em estabelecer conexões e se comunicar de modo positivo. Por outro lado, a demonstração de uma “personalidade interessante” no perfil da rede social, assim como de evidências de que as informações do currículo são verdadeiras, incentiva a contratação.

Na vida pessoal a pressão não é menor. Em entrevistas com estudantes da Universidade de Indiana, a pesquisadora Ilana Gershon (2011) descobriu que os estudantes sentiam que o Facebook muitas vezes atrapalhava suas relações pessoais. Eles diziam sentir uma pressão constante para sempre ostentar uma imagem perfeita, pois, sem isso, sentiam-se ameaçados de perder namorados(as), amigo(as) etc. Desse modo, fica clara a importância que a criação e a gestão de uma boa imagem pessoal desempenham em nossa sociedade contemporânea. As redes sociais constituem a maior vitrine dessa performance de apresentação de um eu “adequado” aos padrões que orientam as seleções sociais a que estamos submetidos a todo momento. A percepção desse fato nos coloca diante de novos desafios para pensar a privacidade no presente. São, de fato, as ferramentas de vigilância e as novas tecnologias que estão a nos ameaçar? A maior consequência e significado dessa inédita exposição de si é que a adequação aos padrões sociais é premiada instantaneamente, assim como os desvios são penalizados do mesmo modo. Basta pensar em celebridades instantâneas que fazem fortunas do dia para a noite apenas com seu perfil do Instagram, no qual mostram nada além de sua vida pessoal ou, ao contrário, pessoas que arruínam sua reputação apenas com um comentário mal colocado no Twitter.

Entretanto, esse “nada além da vida pessoal” que as celebridades exibem é digno de nota. Longe de algo sem importância ou de apenas futilidades, os detalhes da vida pessoal dessas pessoas – o que comem, o que vestem, para onde viajam, suas relações, sua casa, suas lingeries – compõem um modelo de conduta a ser invejado e “curtido” por milhares, às vezes milhões de “followers” (seguidores). Essas pessoas investem (e o termo emprestado da economia não é por acaso) em sua vida pessoal, em seu life style, porque sabem que ao ostentar um modelo de pessoa saudável, que come bem, faz exercícios, entende de moda etc., elas conseguirão obter tudo aquilo que os seres humanos lutam para conquistar: fama, prestígio, reconhecimento, dinheiro e relações. O sucesso dessas pessoas é proporcional à sua adequação aos padrões que a sociedade atual nos impõe: de saúde, de beleza, de bem-estar, de coolness, de sucesso. Esses padrões orientam, o tempo todo, nossas avaliações e guiam também o modo como queremos nos mostrar aos outros. Curiosamente, todos esses atributos estão relacionados hoje à vida pessoal.

Como proteger, diante desse cenário, nossa vida privada? Bastaria, como dizem os especialistas, que nos informássemos melhor sobre como funcionam as tecnologias da informação? Ou, então, que policiássemos nosso comportamento para evitar a exposição demasiada? Todas essas recomendações parecem inócuas diante do que foi exposto aqui. Na medida em que nossa sociedade coloca a vida privada como um elemento central para ser julgado, avaliado e comercializado, de que modo podemos resistir e lutar para manter a nossa privacidade? Termino o texto com essa questão, já que ainda não há resposta efetiva para ela.

1. “Google eavesdropping tool installed on computers without permission”. Jornal The Guardian, 23/6/2015.
2. Cf. SMITH, Jacquelyn. “How Social Media Can Help (Or Hurt) You In Your Job Search.” Forbes, 16/4/2013.

“A MAIOR CONSEQUÊNCIA E SIGNIFICADO DESSA INÉDITA EXPOSIÇÃO DE SI É QUE A ADEQUAÇÃO AOS PADRÕES SOCIAIS É PREMIADA INSTANTANEAMENTE, ASSIM COMO OS DESVIOS SÃO PENALIZADOS DO MESMO MODO”
 

MARIANA ZANATA THIBES é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Foi pesquisadora visitante na New York University e atualmente faz pós-doutorado na Universidade Federal do ABC (UFABC).
 

PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS
por DANILO DONEDA e MARÍLIA MONTEIRO

Bobagem olhar as gavetas ou abrir o armário da entrada. A quem queira descobrir algo hoje em dia, só há uma coisa a fazer: vasculhar o computador (Número Zero, Umberto Eco, 2015)

Fornecer uma grande quantidade de informações sobre nós mesmos em troca de conveniência, de serviços gratuitos ou simplesmente por sermos obrigados, parece ser, hoje, parte inafastável do nosso cotidiano, o que, no entanto, não deixa de causar desconforto – na verdade, pouco sabemos em geral sobre o que é feito com essas informações pessoais, sobre o que a sua circulação vai efetivamente desencadear e se termos revelado nossos dados realmente vale a pena.

Uma sensação de inevitabilidade do desenvolvimento tecnológico descambou rapidamente para outra, a de inevitabilidade do uso generalizado de informações pessoais e, consequentemente, com o questionamento sobre a privacidade nesta versão da contemporaneidade – se ela pode ser controlada, se ela é possível sob o domínio da técnica e, até mesmo, se ela efetivamente existe diante de revelações como as que dizem respeito à vigilância de massa e à realidade do que se convencionou chamar de “Big Data”.

Os dados pessoais passam a ser os intermediários entre a pessoa e a sociedade, prepostos nem sempre autorizados e capazes e é justamente isso que produz como efeito a perda de controle da pessoa sobre o que se sabe em relação a si mesma – o que em última análise representa uma diminuição na sua própria liberdade1

A estranheza e o desconforto diante do uso de informações pessoais derivam da perda de controle sobre algo que, até há pouco tempo, pensávamos poder controlar com relativa facilidade, que era o destino das nossas informações pessoais. Essa situação mudou drasticamente com o recurso a meios automatizados de tratamento de dados e com a profusão de meios para a coleta de informações pessoais.

Essa sensação de perda de controle sobre o uso das próprias informações não é um problema somente para o que entendemos como a nossa privacidade. A questão é mais ampla e atinge o nosso próprio direito de participar de decisões fundamentais a nosso respeito. Nossas informações pessoais são utilizadas para que sejam tomadas decisões a nosso respeito: sobre o nosso acesso a crédito, sobre ofertas que poderemos receber (ou não), sobre nossa provável aptidão para uma vaga de emprego, sobre nossa propensão para desenvolver uma determinada patologia, e daí por diante. Esse conjunto de pressuposições pode formar um mosaico de condicionamentos capaz de afetar concretamente as oportunidades que teremos ao longo da vida.

Para harmonizar essa situação com a necessidade de garantir liberdade, privacidade e não discriminação, a tendência a reconhecer um direito fundamental à proteção de dados pessoais e também a estabelecer uma legislação específica sobre a matéria está hoje fortemente enraizada em vários países. O objetivo dessas leis é devolver ao cidadão o controle e a titularidade sobre suas próprias informações, para que elas possam ser utilizadas com fins transparentes e legítimos.

No Brasil, apesar de a Constituição Federal e normas de proteção ao consumidor garantirem alguns direitos do cidadão sobre os seus dados, foi apenas em 2014, com a Lei 12.965, conhecida como o Marco Civil da Internet no Brasil, que o ordenamento jurídico pátrio passou a contar com uma menção expressa ao direito à proteção de dados pessoais como princípio autônomo à privacidade no uso da internet no Brasil, em seu Art. 3º, III. Nele é feita menção expressa a uma lei específica para a proteção dos dados pessoais, normativa esta presente hoje em mais de 100 países.

As leis sobre proteção de dados pessoais quase sempre são formuladas em torno de alguns princípios comuns, ainda que em diferentes países – no que podemos verificar uma forte manifestação da convergência das soluções legislativas sobre a matéria, bem como uma tendência sempre mais marcada rumo à consolidação de certos princípios básicos.

Esses princípios remontam aos chamados Fair Information Practice Principles, que passaram a ser encontrados em várias das normativas sobre proteção de dados pessoais. Esse “núcleo comum” encontrou expressão como um conjunto de princípios a serem aplicados na proteção de dados pessoais, principalmente com a Convenção de Strasbourg e nas diretrizes da A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no início da década de 1980. Em síntese, esses pontos seriam o princípio da transparência, o da qualidade, o da finalidade, o do livre acesso e o da segurança.

Esses princípios, mesmo que fracionados, condensados ou adaptados, formam a espinha dorsal de diversas leis, tratados, convenções ou acordos em matéria de proteção de dados pessoais, formando o núcleo das questões com as quais o legislador se depara ao procurar fornecer a própria solução ao problema da proteção dos dados pessoais.

A aplicação de tais princípios, no entanto, é a parte mais aparente de uma tendência rumo à constatação da autonomia da proteção de dados pessoais e a sua consideração como um direito fundamental em diversos ordenamentos.

No Brasil, discute-se, desde 2010, de forma ampla e colaborativa, uma normativa geral de proteção de dados pessoais no âmbito de anteprojeto de lei proposto pelo Ministério da Justiça que prevê, de forma semelhante, um conjunto de princípios que norteiem o tratamento dos dados pessoais por terceiros; direitos que são explicitados, em particular com relação ao acesso, correção, dissociação e oposição ao tratamento de dados e mais uma série de instrumentos. Com o objetivo de dar efetividade à proposta, também foi objeto do debate a designação de um órgão como autoridade com competências quanto à proteção de dados pessoais no país. Tal órgão seria responsável pela supervisão, auditoria, edição de normas complementares, aplicação de sanções administrativas, bem como pelo recebimento e encaminhamento de denúncias e reclamações dos cidadãos que sofreram danos em decorrência do tratamento indevido de dados pessoais e demais medidas necessárias para a implementação da legislação.

A disseminação do modelo das autoridades independentes, dessa forma, também faz parte das tendências observadas nas normativas de proteção de dados pessoais das últimas décadas. A designação de um organismo específico para zelar pela aplicação da lei se faz tanto mais necessária com a diminuição do poder de “barganha” com o indivíduo para a autorização ao processamento de seus dados, como também pelo surgimento de normativas conexas na forma, por exemplo, de normas específicas para alguns setores de processamento de dados (para o setor de saúde ou de crédito ao consumo). Hoje, é possível afirmar que um tal modelo de proteção de dados pessoais é representado pelos países europeus que transcreveram para seus ordenamentos as diretivas europeias em matéria de proteção de dados, em especial a Diretiva 95/46/CE e a Diretiva 2000/58/CE.

Com essa evolução, portanto, das normativas que versam sobre proteção de dados pessoais, evidencia-se a dificuldade em afirmar que não há mais um direito à privacidade – as gerações de direitos são cumulativas. Hoje, a tutela da privacidade busca empoderar e fortalecer o cidadão em relação a decisões que são tomadas com base em suas informações e, portanto, muni-lo de ferramentas que diminuam essa assimetria de poder. Em uma economia cada vez mais baseada em dados, é impossível conceber sistemas de informação seguros e condizentes com a importância estratégica das informações pessoais em nossa sociedade sem a presença de ferramentas que permitam ao cidadão realizar suas opções livres e legítimas a respeito do tratamento de seus dados, o que depende de um marco normativo e de estruturas institucionais que lhe garantam acesso a esses direitos e garantias.

“ESSA SENSAÇÃO DE PERDA DE CONTROLE SOBRE O USO DAS PRÓPRIAS INFORMAÇÕES NÃO É UM PROBLEMA SOMENTE PARA O QUE ENTENDEMOS COMO A NOSSA PRIVACIDADE. A QUESTÃO É MAIS AMPLA E ATINGE O NOSSO PRÓPRIO DIREITO DE PARTICIPAR DE DECISÕES FUNDAMENTAIS A NOSSO RESPEITO”


DANILO DONEDA é professor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
MARÍLIA MONTEIRO é mestranda em políticas públicas na Hertie School of Governance (Berlim, Alemanha).