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Em nome da educação

ARTICULANDO TEORIA E PRÁTICA, PAULO FREIRE TRABALHOU PARA QUE ALFABETIZAÇÃO FOSSE ENTENDIDA COMO UM PROCESSO DE CONSCIENTIZAÇÃO

Pensamento e teoria se renovam a cada página deixada por Paulo Freire. O educador confunde-se com o objeto que dedicou uma vida a refletir e postular. Autor de livros referenciais para a educação, como Pedagogia do Oprimido (1968), também publicou em parceria com outros escritores e teve obras e artigos traduzidos em mais de 20 idiomas, em diferentes continentes, da Europa à América Latina.

“Este é realmente um livro seminal, reconhecido internacionalmente como uma obra que ofereceu, na área da educação, contribuições importantes para repensar e ressignificar os conceitos de currículo e de didática e também as relações ensino-aprendizagem e educador-educando”, afirma o pesquisador Alexandre Saul, doutorando em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e integrante do grupo de pesquisa O Pensamento de Paulo Freire na Realidade Brasileira (PUC-SP/CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Para ele, a explicitação do caráter sempre político da educação, que se depreende de sua qualidade diretiva e intencional, e a urgência de construir, com a ajuda da educação, mas não exclusivamente por meio dela, uma sociedade mais justa, solidária e democrática, são lições que se destacam no livro, até hoje recorrente na bibliografia de cursos de pedagogia e licenciatura na área de humanas.

SR. PROFESSOR
Natural de Pernambuco, Paulo Freire nasceu em 1921 e em 1927 iniciou seus estudos primários, entrando na escola localizada em Joboatão dos Guararapes. Conseguiu seu primeiro emprego de professor de Língua Portuguesa no Colégio Oswaldo Cruz, o mesmo no qual cursou o ensino médio. Graduado pela Faculdade de Direito do Recife em 1947, formalizou sua relação com a educação ao assumir a diretoria da Divisão de Educação e Cultura, do Sesi-Pernambuco. Em 1960, foi nomeado professor de História e Filosofia da Educação na Universidade do Recife. O ano de 1969 lhe reservou um fato importante em sua trajetória internacional e acadêmica: trabalhou como docente na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Até 1979, foi consultor especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, na Suíça. Ao mesmo tempo, ofereceu consultoria educacional a vários países com grave situação social e política, principalmente na África.

Devido ao seu forte pensamento político, passou por um período de exílio (1964-1980) retornando ao Brasil para lecionar na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na PUC-SP. Em 1989, assumiu o cargo de Secretário de Educação do município de São Paulo.

O contato com contextos educacionais e humanos tão diversos possibilitou a criação e o desenvolvimento de conceitos inovadores na teoria e prática educacional, como “educador-educando”, o processo “ensinar-aprender” e “ensino aprendizagem”. Todos, sem exceção, reconfiguraram-se ao longo do tempo, mas continuam inspirando professores no Brasil e no mundo. Quem explica é a doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) e integrante do grupo de pesquisa O Pensamento de Paulo Freire na Realidade Brasileira Fernanda Quatorze Voltas. “Os processos de ensino-aprendizagem e as relações que se estabelecem entre educadores e educandos aparecem, periodicamente, com maior ou menor destaque no debate educacional e se reconfiguram em função dos desafios, das exigências e contingências do tempo histórico”, diz. “No âmbito da pedagogia freireana, para a qual a educação é um ato político, a discussão a respeito dos pares dialéticos ensinar-aprender, ensino-aprendizagem e educador-educando não pode prescindir de algumas questões essenciais, tais como: Ensinar o quê? Para quê/quem? A favor do quê/quem? Contra o quê/quem? Perguntas essas que ajudam a desvelar as intencionalidades, os objetivos, os conteúdos, os valores e o horizonte político que orienta a prática educativa.”

A pesquisadora explica ainda que, na proposta da educação problematizadora de Freire, educar não é transferir conhecimentos do educador, “que sabe”, para o educando, “que não sabe”. “A educação, como ato político, tem o compromisso com o desvelamento da realidade, processo esse que acontece ao mesmo tempo em que se avança na construção do conhecimento, prática conjunta entre educadores e educandos”, analisa a pesquisadora.

@PAULO FREIRE
A contemporaneidade do educador ganhou força na internet. Um dos exemplos bem-sucedidos é a webssérie Pedagogia da Autonomia (http://bit.ly/pedagogiaautonomia), idealizada pelo professor e pesquisador do Centro de Educação, Comunicação e Artes (Ceca) da Universidade Estadual de Londrina (UEL) André Azevedo da Fonseca. Ele define a iniciativa como produtiva, porque possibilitou a análise e a discussão de cada um dos pontos abordados de “forma criteriosa”. O professor produziu vídeos concentrados nos subcapítulos do livro Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa (Paz e Terra, 1996), último livro de Freire publicado em vida.

Em cinco meses na rede, os vídeos somam mais de 125 mil visualizações. Segundo André Azevedo, quando a série for concluída, a ideia é que cursos de licenciatura presenciais e a distância se sintam à vontade para usar o conteúdo como complemento às aulas sobre o livro. “O contato com professores, estudantes, pesquisadores e pessoas interessadas em educação nos comentários dos vídeos também tem sido enriquecedor. Muitos ressaltam que os vídeos contribuíram para iluminar aspectos que não tinham percebido com a leitura”, acrescenta. “Outros ajudam a problematizar o autor e apontar críticas importantes. E vários se interessaram em conhecer Paulo Freire devido às discussões.” O pesquisador também afirma que, ao relacionar os atos de aprender e de ensinar em uma dinâmica comunicativa, a pedagogia freireana tem condições de estimular processos nos quais professores e alunos passam a aprender juntos, no sentido de superar o senso comum para produzir novos conhecimentos, estimulando o espírito de inovação, cooperação e criatividade.

PEDAGOGIA E POLÍTICA
Originária da palavra grega paidagogía, pedagogia é, por definição, substantivo feminino referente à teoria e ciência da educação e do ensino. Já pedagogo, do latim paedagogu, é o substantivo masculino referente a quem aplica a pedagogia, ou seja, ensina. Paulo Freire desenvolveu um pensamento pedagógico assumidamente político e, na opinião do pesquisador Alexandre Saul, há uma preocupação de que educadores e educandos, ao dialogarem sobre a realidade concreta, “tomem consciência das razões das situações que vivenciam em que são impedidos de ‘ser mais’,  isto é, em que têm diferentes dimensões de sua humanidade, dignidade e autonomia negadas”. Alexandre salienta que, para Freire, contudo, a tomada de consciência não é suficiente. “É preciso que os conhecimentos construídos na prática educativa possam gerar e potencializar ações para mudar os contextos de opressão, na direção da justiça social”, destaca. “É possível reconhecer, hoje, em diferentes espaços e programas de formação docente, discursos e práticas que sintonizam com a sua proposta da educação conscientizadora.”

Porém, segundo o pesquisador, essa ainda é uma perspectiva contra-hegemônica na sociedade capitalista ocidental, “mas que tem ganhado cada vez mais espaço e adeptos em virtude do aumento das injustiças sociais e desigualdades econômicas em diferentes contextos”. 

TRABALHO PREMIADO
Em vida, Paulo Freire exerceu influência certeira no que estava sendo feito e no que estava por vir quando o assunto é educação. O reconhecimento no Brasil ecoa a importância que seu pensamento teve no exterior. Em 1986, recebeu o Prêmio Unesco da Educação para a Paz e no ano seguinte passou a integrar o júri internacional da instituição, que escolhe e premia as melhores experiências de alfabetização do mundo. Em 1990, seu livro lançado em 1982, A Importância do Ato de Ler em Três Artigos que se Completam (Editora Cortez), recebeu o Diploma de Mérito Internacional, concedido pela International Reading Association, na Suécia.

Vítima de infarto em 1997, Freire foi casado duas vezes e pai de cinco filhos. Numa vida pública que se projetou sobre a vida pessoal, concebeu uma teoria e uma prática que se multiplicam toda vez em que são discutidas por educadores e educandos. “Para Freire, educar é conscientizar no sentido de que os sujeitos possam entender que a realidade é forjada historicamente, por homens e mulheres, e, por isso mesmo, pode ser transformada”, relata Fernanda, ao falar do professor visionário, criador do método de alfabetização de jovens e adultos que leva seu nome.