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Um corpo sem identidade

Paciente com Doença de Alzheimer: mal de causas pouco conhecidas / Foto: Edgard Garrido/Reuters
Paciente com Doença de Alzheimer: mal de causas pouco conhecidas / Foto: Edgard Garrido/Reuters

Por: MILU LEITE

O que somos sem a nossa memória? Um corpo sem ligação com a vida real. Essa constatação faz da Doença de Alzheimer (DA) uma das mais temidas da atualidade. Faz dela também um dos focos de pesquisas instigantes para cientistas do mundo todo. As suas causas, contudo, permanecem pouco conhecidas, restando aos pacientes a possibilidade de tratar os sintomas, com uso de medicação que age também para retardar seu avanço.

“É uma doença multicausal, tem genética, epigenética e também várias causas relacionadas a estilos de vida, tais como, hipertensão arterial, diabetes tipo 2 e tabagismo. Sabe-se muito de biologia molecular, marcadores inflamatórios para acompanhar a doença e métodos de imagem cerebral, mas a cura ou mesmo o alívio dos sintomas estão longe”, explica o geriatra André Junqueira Xavier. O panorama é constrangedor diante das estatísticas a respeito de uma das mais fortes características da doença: a demência. Calcula-se que cerca de 35,5 milhões de pessoas vivam atualmente acometidas por algum tipo de demência no mundo. Este número irá dobrar a cada vinte anos, chegando a 65,7 milhões em 2030, segundo dados divulgados no relatório de 2012 da Organização Mundial da Saúde (OMS), realizado em parceria com a Associação Internacional da Doença de Alzheimer (ADI, na sigla em inglês). No Brasil, estudo coordenado pelo médico neurologista Emílio Herrera Júnior, em 2002 elucidou que 55,1% de tais demências são decorrentes de DA e 14,1% de DA associada à doença cerebrovascular. Estimativa divulgada pela Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz), informa que no país 1,2 milhão de pessoas sofrem deste mal.

Embora vinculada principalmente à perda gradativa da memória, a DA afeta muitas outras funções cognitivas, como a linguagem, o sentido de orientação, a atenção, o poder de decisão e de adequação social, limitando as atividades fundamentais para a vida. É uma dentre tantas outras doenças que causam a demência. Entretanto, nem toda falta de memória tem a ver com Alzheimer. Esse sintoma surge também em outras manifestações clínicas, como depressão, doença da tireoide, transtornos de ansiedade, infecções e deficiência de algumas vitaminas. “Essas situações podem cursar com queixas de memória que repercutem de maneira variada no dia a dia das pessoas acometidas, mas nestes casos não há demência e sim outras doenças, que se forem corretamente diagnosticadas e tratadas tendem a refletir na melhora da memória”, esclarece a neurologista Ana Luisa Rosas, diretora científica da regional da Abraz em São Paulo e médica assistente do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (Iamspe).

Nem por isto, entretanto, a queixa de falta de memória deve ser desvalorizada. Portanto, aos primeiros sinais de esquecimento incomum, – que normalmente começam a surgir depois dos 40 anos de idade –, o melhor a fazer é consultar um médico. O diagnóstico clínico é complexo. Primeiro é preciso descartar as outras doenças já mencionadas como causadoras de esquecimento, somando-se ainda a depressão e os transtornos de humor. Existe um questionário básico para orientar o especialista neste caminho, além de alguns exames. “O que sabemos até agora diz respeito à fisiopatologia da doença, ou seja, há um entendimento sobre os mecanismos envolvidos na patologia e os fatores de risco”, diz Ana Luisa. Os exames que podem auxiliar na composição do diagnóstico são os de imagem (ressonância, tomografia), avaliação neuropsicológica, miniexame do estado mental (Meem), Spect cerebral (tomografia computadorizada em 3D), teste do desenho do relógio (TDR), além de uma boa anamnese (análise do histórico do paciente) e de exames físicos, clínicos e neurológicos.

Biópsia cerebral

Não há, pois, um diagnóstico totalmente conclusivo da doença, a não ser que se recorra a uma necropsia de tecido do cérebro. “O diagnóstico definitivo precisa de biópsia cerebral e não faz sentido in vivo, pois não há nada terapêutico para fazer. Então todos os casos são suspeitos ou prováveis”, explica Junqueira Xavier. Ele lembra que a DA representa cerca de 50% das demências, as outras mais comuns são demência dos corpos de Lewy (DCL), vasculares, mistas e demência frontotemporal.

A dificuldade de compreensão acerca das causas do Alzheimer tem levado cientistas a se debruçarem cada vez mais sobre estudos que podem render a descoberta de novos medicamentos. Grandes novidades neste setor não surgem há anos. O tratamento tradicional tem duas frentes de atuação: os inibidores de acetilcolinesterase para o déficit colinérgico e a memantina, que é um modulador do receptor glutamatérgico – sabe-se que o glutamato tem um papel importante também na cognição assim como a acetilcolina. No início de outubro último, contudo, notícia divulgada pela Agence France-Presse (AFP), em Washington, lançou novas luzes sobre este cenário lúgubre. Uma proteína chamada GPR3 foi identificada por cientistas, que afirmam que ela parece fundamental para o desenvolvimento do Alzheimer. De acordo com os pesquisadores, a GPR3 desempenha um papel importante na redução do acúmulo de placas amiloides no cérebro, um fenômeno essencial para o desenvolvimento da doença. O estudo foi publicado na revista especializada “Science Translational Medicine”.

As placas de amiloides foram observadas pela primeira vez em necropsia realizada por Alois Alzheimer, o médico que descobriu a DA, em 1906. Ele estudou e publicou o caso da sua paciente Auguste Deter, uma mulher saudável que, aos 51 anos, desenvolveu um quadro de perda progressiva de memória, desorientação e distúrbio de linguagem. Após a morte da paciente, Alzheimer examinou seu cérebro e descreveu as alterações que hoje são conhecidas como características da doença. As duas principais, que se apresentam até hoje no cérebro de pacientes com DA, são as placas senis decorrentes do depósito de proteína beta-amiloide (anormalmente produzida), e os emaranhados neurofibrilares, frutos da hiperfosforilação da proteína tau. Outra alteração observada é a redução do número das células nervosas (neurônios) e das ligações entre elas (sinapses), com redução progressiva do volume cerebral. A completa identificação da GPR3 é, portanto, um avanço a ser comemorado.

As novas pesquisas sobre esta proteína, feitas em camundongos com quatro variedades distintas de demência, demonstraram que “apagar” geneticamente a GPR3 resulta numa melhora cognitiva e numa redução dos sinais da doença no cérebro. As razões para os festejos estão no fato de que cerca de metade dos medicamentos disponíveis no mercado atacam este tipo de receptor, conhecido como proteína acoplada G. Quando se leva em conta que estudos conhecidos há poucos anos demonstram que as alterações cerebrais mais comuns na DA estariam instaladas antes mesmo do aparecimento de sintomas demenciais, a luz no fim do túnel se faz, de fato, mais brilhante. Atualmente, quando surgem as manifestações clínicas que permitem o estabelecimento do diagnóstico, diz-se que teve início a fase demencial da doença.

Memória musical

As perdas neuronais ocorrem de modo desigual. As áreas comumente mais atingidas são as de células nervosas (neurônios) responsáveis pela memória e pelas funções executivas que envolvem planejamento e realização de funções complexas. Outras áreas podem ser gradativamente atingidas, ampliando as perdas. O conhecimento sobre essa heterogeneidade em relação às perdas neuronais permitiu que grupos de cientistas se empenhassem em mapear e explorar as zonas onde tais perdas demoram mais a acontecer.

E foi justamente daí que resultou uma descoberta revolucionária que trouxe em seu bojo um tipo de tratamento coadjuvante incomum, com resultados surpreendentes: a musicoterapia.

A memória de quem sofre de Alzheimer é bastante comprometida, mas a memória musical dessas pessoas é em grande parte conservada, mesmo nos estágios mais avançados da doença. Isso ocorre porque a música é armazenada em áreas cerebrais diferentes das comumente utilizadas pela memória. O armazenamento da música não está restrito à área da memória auditiva do nosso cérebro (esta, sim, uma das primeiras a ser devastada pela DA), e é por causa dessa particularidade que um paciente com Alzheimer incapaz de lembrar de seu nome consegue cantar, por exemplo, a sua música favorita da juventude.

O experimento, levado a cabo por neurocientistas do Instituto Max Planck de Neurociência e Cognição Humana de Leipzig, na Alemanha, foi baseado na hipótese de que ouvir música é, para o cérebro, diferente de lembrar dela. As áreas que evidenciaram maior ativação no ato da lembrança de uma canção foram o giro cingulado anterior, localizado na região média do cérebro, e a área motora pré-suplementar, localizada no lobo frontal. Segundo o estudo, o giro cingulado anterior mostra uma conectividade aumentada nos pacientes de Alzheimer, o que poderia significar que ele funciona como uma região compensatória na perda de funcionalidade das outras.

Apesar do enorme avanço representado por essa descoberta, os cientistas recomendam cautela, uma vez que o estudo foi realizado em pessoas saudáveis, não em pacientes de Alzheimer. Há, portanto, ainda aspectos nebulosos e não elucidados. Na prática, contudo, é possível comprovar as consequências dessa diferença de armazenamento. No documentário Alive Inside, realizado em 2014, o diretor norte-americano Michael Rossato-Bennett acompanha o périplo de Dan Cohen, fundador da organização não governamental Music & Memory, por casas de repouso para idosos nos Estados Unidos, munido de iPods para distribuir aos doentes. O seu objetivo é provar que a música é capaz de transformar a vida de pessoas com demência, conectando-as com sua identidade através da recordação.

No filme, premiado pelo público no último Sundance Festival e acessível no Youtube, familiares, médicos e pacientes falam de que forma se sentem tocados pela música. Há casos exemplares, como o de um homem de 94 anos que não interage com quase ninguém, totalmente fechado em seu mundo, incapaz de responder a simples perguntas como qual o seu nome, onde você está, e que, ao ouvir nos fones de ouvido uma de suas canções prediletas, sorri, arregala os olhos e põe-se a cantar imediatamente. Minutos depois da audição, perguntas são refeitas e o homem as responde, lembrando inclusive do nome do cantor. O neurologista Oliver Sachs (morto em agosto do ano passado), é um dos entrevistados do documentário e resume enfaticamente assim esta experiência: “A identidade de Henry foi temporariamente devolvida a ele”. Casos semelhantes ao de Henry complementam o restante do filme.

Estimulação cerebral

“Atividades musicais podem melhorar o comportamento, particularmente a agitação, o humor e a cognição como um todo”, afirma a médica Ana Luisa. Segundo ela, a música teria efeitos positivos na diminuição ou até mesmo na melhora da agitação dos pacientes, porém, limitações metodológicas desses estudos com musicoterapia indicam a necessidade de mais pesquisas. O geriatra Xavier, por sua vez, é um entusiasta da experiência. Coordenador do Ambulatório da Memória na Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), ele tem se dedicado a estudos e pesquisas sobre o tema há alguns anos. “A música é um grande tratamento”, comemora ele.

No que tange aos tratamentos medicamentosos, algumas pesquisas apontam para um futuro melhor, mas em longo prazo. Atualmente estão sendo estudados anticorpos monoclonais, resveratrol e a geração de vacinas. Todos eles, por enquanto, não se mostraram efetivos, necessitando de mais estudos. Recentemente, um composto de nutrientes descoberto por um grupo de pesquisadores em neurociências do Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, tem sido utilizado em pacientes com DA em estágio inicial. “É um suplemento comercializado pela Danone Medical Nutrition chamado Souvenaid, porém os efeitos são bem modestos”, informa Ana Luisa. Mas o suplemento não age sobre outros sintomas da doença, como por exemplo, nos distúrbios de comportamento. “Os inibidores da acetilcolinesterase continuam sendo as melhores opções de tratamento para Alzheimer”, diz ela.

A técnica de estimulação cerebral profunda, desenvolvida por especialistas da Universidade de Toronto, no Canadá, e testada com sucesso em seis pacientes, em 2013, também parece promissora. A DBS (Deep Brain Stimulation) é, atualmente, usada em neurologia como uma opção de tratamento para distúrbios do movimento (Doença de Parkinson e distonias). “No estudo canadense há a hipótese que a DBS poderia ser testada em pacientes com DA modulando a atividade de circuitos cerebrais disfuncionais se posicionado no fórnix, uma área envolvida na memória”, esclarece Ana Luisa. Após um ano, estruturas como o próprio fórnix, o hipocampo e os corpos mamilares (outras áreas sabidamente envolvidas na memória) foram estudadas com ressonância nuclear magnética para avaliar o volume dessas estruturas. “Os resultados foram satisfatórios, mas ainda temos um longo caminho pela frente, pois mais pesquisas terão que ser feitas para concluirmos a eficácia deste método”, salienta a neurologista.

Enquanto a cura não vem e é modesta a atualização dos medicamentos, fica a recomendação de que o melhor tratamento, por ora, é a prevenção da doença. Sabe-se que a atividade física, o hábito de não fumar, de beber pouco e de exercitar o cérebro são aliados no combate à DA, podendo-se evitar até um terço dos casos com estas medidas de bem viver. Além disso, uma alimentação do tipo mediterrânea, rica em peixes (ômega 3), legumes, oleaginosas e cereais podem ajudar na prevenção. Quanto aos fatores de risco não modificáveis, como idade avançada, história familiar, Síndrome de Down, nível educacional baixo, algumas mutações cromossômicas, depressão e pertencer ao sexo feminino, não há o que fazer, mas certamente, quando se melhora a qualidade de vida, obtêm-se ganhos preciosos para a saúde.

Uma boa maneira de começar é informando-se mais sobre doenças degenerativas, já que a leitura e a reflexão são altamente estimulantes para o cérebro. O livro 100 Dicas Simples para Prevenir o Alzheimer e a Perda de Memória, da jornalista Jean Carper, traz uma lista de atitudes que podem ser tomadas no dia a dia rumo a um envelhecimento saudável.

 


 

Os sinais da Doença de Alzheimer

• Perda de memória recente com repetição das mesmas perguntas ou dos mesmos assuntos.

• Esquecimento de eventos, de compromissos ou do lugar onde guardou seus pertences.

• Dificuldade para perceber uma situação de risco, para cuidar do próprio dinheiro e de seus bens pessoais, para tomar decisões e para planejar atividades mais complexas.

• Dificuldade para se orientar no tempo e no espaço.

• Incapacidade para reconhecer pessoas e objetos.

• Dificuldade para manusear utensílios, para vestir-se e em atividades que envolvam autocuidado.

• Dificuldade para encontrar e/ou compreender palavras, cometendo erros ao falar e ao escrever.

• Alterações no comportamento ou na personalidade: pode se tornar agitado, apático, desinteressado, isolado, desinibido, inadequado e até agressivo.

• Interpretações delirantes da realidade, sendo comuns quadros paranoicos ao achar que está sendo roubado, perseguido ou enganado por alguém.

• Alucinações visuais (ver o que não existe) ou auditivas (ouvir vozes) podem ocorrer, sendo mais frequentes da metade para o final do dia.

• Alteração do apetite com tendência a comer exageradamente, ou, ao contrário, pode ocorrer diminuição da fome.

• Agitação noturna ou insônia com troca do dia pela noite.

Fonte: Abraz