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O sucesso das “magrelas”

Números da indústria desmontam a ideia de que se trata de  modismo / Foto: Fernando Piovesan
Números da indústria desmontam a ideia de que se trata de modismo / Foto: Fernando Piovesan

Por: ROSA SYMANSKI

Um fenômeno sobre duas rodas se espraia pelo país, mudando radicalmente a forma de locomoção das pessoas e introduzindo novos hábitos na rotina dos brasileiros. Mais do que apenas uma efêmera onda de modismo, o gosto pela bicicleta se traduz em números gigantescos que está estimulando até mesmo a criação de um polo industrial constituído por linhas fabris de porte com planos ambiciosos de expansão.

Não é para menos. Calcula-se que a frota nacional de bicicletas seja de 70 milhões de unidades e a produção anual superior a 4 milhões de bikes, total que coloca a nação no 4º lugar entre os maiores do setor em escala global. Com a oferta anual de 85 milhões de unidades novas, a China é a maior desse ranking, seguida pela Índia, com 12 milhões, e Taiwan, com 4,5 milhões.

A avidez dos consumidores e a euforia de fabricantes não impediram, no entanto, que o cenário recessivo de 2015 afetasse o desempenho do setor, segundo dados da Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo). “Foram fabricadas 3,6 milhões de bicicletas no período de janeiro a novembro, correspondendo a uma redução de 10% em relação a 2014”, observa o vice-presidente da associação, Eduardo Musa.

O diretor executivo da Abraciclo, José Eduardo Gonçalves, chama a atenção, no entanto, para o fato de que o número de unidades fabricadas vem caindo desde 2009, mas que os produtos tornaram-se mais sofisticados, e mais caros, sustentando, portanto, as receitas dos fabricantes. Ele observa que há uma mudança no perfil dos compradores de bicicletas nos últimos anos, que estão optando por modelos mais onerosos. “Há dez anos, os consumidores pertenciam a uma classe social menos endinheirada, ao contrário de agora, em que a demanda parte de compradores interessados em produtos de maior valor agregado. Ou seja, estão à procura de bicicletas mais sofisticadas, arrojadas e dotadas de equipamentos eletrônicos”, relata Gonçalves.

A retração nos negócios do mercado em geral, todavia, não abala o otimismo dos produtores de “magrelas”, que têm no incremento das ciclovias nas grandes cidades um forte aliado, assim como a adesão cada vez maior de ciclistas à novidade. Um estudo encomendado pela Abraciclo junto à consultoria Rosenberg Associados, divulgado em abril de 2015, intitulado “O Uso de Bicicletas no Brasil: Qual o Melhor Modelo de Incentivo?”, demonstrou que a melhor forma de promover o uso da bicicleta como efetiva alternativa de mobilidade urbana é por meio de políticas direcionadas à ampliação da infraestrutura dedicada a elas.

O estudo realizado foi o primeiro sobre esse ramo empresarial e trouxe importantes revelações sobre o mercado brasileiro de bicicletas. Com base em projetos internacionais e analisando o comportamento e perfil do consumidor nacional, a pesquisa fez uma verdadeira radiografia do uso desse veículo de duas rodas no país.

Mountain bike

O frisson que desencadeou o interesse nesse meio de transporte altamente sustentável também deixou marcas indeléveis na forma de sua produção, demonstrou o levantamento. Essa onda de novos adeptos trouxe consigo consumidores cada vez mais exigentes, condição que acabou mudando até o tradicional formato da bicicleta, obrigando os fabricantes a produzirem modelos tecnologicamente avançados. Costumeiramente dividido em quatro grandes frentes – recreação/lazer, esporte/competição, brinquedos e transporte básico, o mercado local de duas rodas ganhou uma nova divisão denominada mobilidade urbana, que engloba bicicletas desenvolvidas com tecnologia, componentes e design específicos. “Este segmento é pequeno, pois se trata de um fenômeno recente no país e muitos ainda usam produtos destinados ao esporte/competição e recreação/lazer para circular nas cidades”, mostra o estudo da Rosenberg Associados.

De olho nessa promissora fatia de mercado, fabricantes do ramo começam a se movimentar. A Houston, pertencente ao grupo econômico do empresário João Claudino Júnior, do Piauí, a segunda maior fabricante de bicicletas do país, produz desde janeiro último, em Manaus, modelos com estruturas em aço carbono, alumínio e fibra de carbono. As instalações próprias da Houston na capital amazonense, com 185 mil metros quadrados de área total, no Polo Industrial de Manaus (PIM), recebeu investimentos de R$ 65 milhões em obras físicas, maquinário e equipamentos industriais. A capacidade total de fabricação dessa linha de produção é de 400 mil unidades anuais, a segunda do setor.

Pode-se dizer que a empresa espelha o crescimento do segmento premium. “Há 15 anos a categoria representava 1% das unidades comercializadas. Hoje acreditamos que essa participação seja de 6% e expectativa de crescimento anual da ordem de 20% a 30%”, diz Claudino Júnior, que pretende disputar a liderança das vendas com marcas internacionais como a Cannondale e GT (ambas da canadense Dorel, dona da Caloi), Scott e Trek.

Outra empresa de destaque, a Sense Bike, braço do Grupo Lagoa, sediado em Belo Horizonte, que estava direcionada principalmente à fabricação de bicicletas elétricas, diversificou sua linha de produção recentemente. Fundado em 1981, o grupo, em 2011, iniciou os preparativos para a produção de modelos elétricos, que começaram a ser fabricados em julho de 2014. No mesmo ano, no entanto, passou a fabricar, também, bicicletas convencionais. Atualmente, a Sense Bike, que investiu R$ 35 milhões em suas instalações (área construída de 8 mil metros quadrados) tem capacidade de produção de 150 mil unidades anuais. “Não é um volume grande, pois queremos trabalhar com esmero. Nosso compromisso é conceber bicicletas cada vez mais aprimoradas para os brasileiros”, sustenta Gustavo Ribeiro, diretor do grupo.

O apetite da empresa pelo mercado é enorme. No ano passado, ela ingressou, também, no nicho da categoria MTB, uma modalidade de ciclismo que tem por objetivo percorrer trilhas com obstáculos, conhecida mundialmente por mountain bike. E fez isso apostando nos modelos com quadro de alumínio. “Inicialmente, foram lançadas duas versões, uma com aro 29 – a Sense Impact –, outra com aro 26 – a Sense Extreme. Nos próximos meses serão apresentados ao mercado os modelos com quadro de carbono, resultado de um investimento forte em tecnologia, com vistas ao atendimento dos consumidores efetivamente exigentes”, declara o executivo.

Maior valor agregado

Na busca por caminhos menos tortuosos para escapulir da crise também está a Mormaii Bicicletas que resolveu dar uma curva mais radical com o lançamento de novas linhas de duas rodas. “Apostamos na Aro 29, em aço carbono, com um preço acessível aos públicos C e D, algo que não tínhamos no portfólio. E também lançamos a bicicleta Aro 20 com design inovador e dupla suspensão, e que ainda tem alto desempenho e estabilidade, ou seja, é ótima para ciclismo radical”, revela Alcides Masiero, diretor administrativo da empresa.

Sem se apoiar em números, o executivo afirma que os negócios da empresa ficaram estáveis em 2015. “Agora, com esses lançamentos, teremos um novo posicionamento da marca diante da crise política e econômica”, afirma Masiero.

Em operação desde 2006, a divisão de bicicletas do grupo Mormaii produz 20 mil unidades de duas rodas anualmente e conta com 150 funcionários.

Em um mercado com tantas opções, o interesse pelas categorias de maior valor agregado, como são chamadas as bicicletas para recreação, esporte e mobilidade urbana, cresce a olhos vistos. Somados, esses segmentos, que representavam 26,6% do mercado em 2006, em 2013, já participavam com 40,6% das vendas. Os modelos que se encaixam na categoria mobilidade urbana são desenvolvidos especialmente para o trânsito nas grandes cidades. “São leves, com pneus próprios para asfaltos e adequadas para integração com outros modais de transporte, como o metrô. Há cinco anos, o segmento era praticamente inexistente. Hoje, ainda que represente apenas 0,3% do mercado, é o que tem maior potencial para ajudar o trânsito e a vida nas cidades”, descreve o diretor executivo da Abraciclo, José Eduardo Gonçalves.

A pesquisa da Rosenberg Associados revela ainda que a fabricação final de bicicletas é composta por uma cadeia relativamente extensa: 32 fabricantes de peças e acessórios, 6 empresas listadas como prestadoras de serviços, 14 fabricantes de freios, cubos de freios ou suas partes, e 9 produtores de aros ou raios para bicicletas.

Quanto ao mercado de trabalho das montadoras de bicicletas sabe-se que o setor injeta na economia cerca de R$ 129 milhões, anualmente, na forma de salários, R$ 24,8 milhões na forma de contribuições à previdência oficial. A pesquisa aponta que houve uma evolução no número de empresas ativas no segmento com mais de 30 pessoas empregadas, que passaram de 42, em, 2000, para 65, em 2012.

Os dados da pesquisa também demonstram que o mercado ascendente, o de bicicletas de maior valor agregado, tem boa parte de sua origem no Amazonas. Ou seja, das mais de 1,7 milhão de unidades vendidas, cerca de 750 mil saíram do Polo Industrial de Manaus, enquanto 600 mil são produzidas legalmente em outras partes do país e 250 mil são importadas. “É neste segmento, portanto, que as compras externas são mais relevantes, competindo com o produto nacional legal, já que o grau de informalidade, neste segmento, é relativamente pequeno”, observa Gonçalves.

Definitivamente, a pesquisa da Rosenberg Associados levantou preciosas informações sobre esse segmento empresarial. Detectou, por exemplo, que a bicicleta é o veículo mais utilizado nos pequenos centros urbanos brasileiros (cidades com menos de 50 mil habitantes) e que representam mais de 90% do total das cidades do país. Elas dividem com o modo pedestre a esmagadora maioria dos deslocamentos nesses locais. Nas cidades médias, segundo o levantamento, “o que muda em relação às pequenas cidades é a presença eventual de linhas de transporte coletivo, às vezes em condições precárias, pois a exploração dos serviços só se torna economicamente viável quando a demanda é concentrada e as distâncias são grandes”.

Os dados, no entanto, apontam que há muito para crescer em termos de infraestrutura para as bicicletas. Para se ter uma noção exata do que estamos afirmando basta citar que no Brasil, apenas 1% do total da malha viária das capitais é composta por ciclovias, com a cidade do Rio de Janeiro liderando com mais de 25% do total da quilometragem existente no país. Segundo dados do Ministério das Cidades, em 2007 havia apenas 279 municípios dotados de planos de incentivo à utilização de bicicletas, totalizando meros 2.505 quilômetros de ciclovias no país. Além da ausência de infraestrutura, a violência do trânsito, a falta de políticas educacionais adequadas (que insiram a bicicleta como meio alternativo de transporte), entre outros, explicam, em parte, a baixa popularidade no uso das “magrelas” como opção para a mobilidade urbana.

Rapidez e praticidade

Entre as iniciativas de sucesso ao incentivo da adoção da bicicleta, a capital fluminense é um exemplo. Lá, ciclovias, ciclofaixas e faixas compartilhadas somam 240 quilômetros de extensão, da mesma forma que bicicletários surgem como peça importante da infraestrutura requerida para esta modalidade de transporte. Mais: na capital fluminense foi Solução Alternativa de Mobilidade por Bicicletas de Aluguel (Samba), que até 2010 contava com 19 estações para aluguel na zona sul. Hoje, o sistema fechou parceria com o banco Itaú para o sistema de locação de bicicletas.

Outro grande centro brasileiro que figura como um exemplo nesse aspecto é Porto Alegre, que se consagrou como um lugar que realmente motiva o uso de bicicletas como meio de transporte, culminando com a aprovação do Plano Diretor Cicloviário Integrado (PDCI), tendo por meta a construção de 495 quilômetros de ciclovias e de ciclofaixas apenas no município. De forma parecida à pesquisa decenal praticada pelo Metrô em São Paulo, a prefeitura do município gaúcho realizou um levantamento de origem-destino, concluindo que uma rede completa de ciclovias e a existência de bicicletários poderiam elevar para 10% o número de viagens realizadas com as bikes pela população.

Na capital paulista, a Pesquisa Origem/Destino realizada pelo Metrô apontou que, na região metropolitana, houve elevação de 176% nos deslocamentos com bicicleta entre 1997 e 2007, verificando-se 345 mil viagens por dia, evolução que não é acompanhada da instalação de infraestrutura para tal modalidade de transporte urbano. Outra pesquisa, conduzida pelas organizações não governamentais Observatório das Metrópoles e Transporte Ativo, demonstrou que a maioria dos ciclistas de dez regiões metropolitanas do Brasil usa a bicicleta como transporte para ir ao trabalho (88,1%) e pedala cinco dias ou mais por semana (71,6%), conforme o estudo denominado de “Perfil do Ciclista Brasileiro”, divulgado no final de 2015 depois ter ouvido 5 mil pessoas.

O levantamento revelou que 61,8% dos entrevistados usam a bicicleta para o deslocamento urbano há menos de cinco anos e 26,4% dos ciclistas combinam o veículo com outro meio de transporte (ônibus e metrô). A maior parte (56,2%) leva entre dez e 30 minutos em suas viagens, tem entre 25 e 34 anos de idade (34,3%) e renda entre um e dois salários-mínimos (30%).

O trabalho indicou ainda que a principal motivação para começar a utilizar a bicicleta, como modo de transporte nas cidades, é a rapidez e a praticidade (42,9%). Entre as capitais com o maior índice de utilização está Recife, com 89,6%; Rio de Janeiro, com 81,2%, e Manaus, com 77,8%. Do total de pessoas ouvidas, 34,6% apontaram a educação no trânsito como principal problema para os ciclistas. Metade dos entrevistados afirmou que o incremento da infraestrutura cicloviária estimularia as pessoas a pedalarem mais.

Esse retrato do mercado abordou usuários que adotam a bicicleta como modal de transporte pelo menos uma vez por semana em Aracaju, Belo Horizonte, Brasília, Manaus, Niterói, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. Nesses locais as pessoas que pedalam mais de cinco dias da semana compõem a grande maioria: 73,6%. Nesse quesito, o porcentual mais alto pertence ao Rio de Janeiro, onde 81,4% das pessoas entrevistadas afirmaram pedalar 5, 6 ou 7 dias por semana.

O sexo masculino apresenta propensão maior para pedalar; 30% dos homens entrevistados disseram utilizar a bicicleta todos os dias; enquanto que entre as mulheres, apenas 18,7% são praticantes diárias do ciclismo. Essa diferença é ainda superior no Rio de Janeiro, onde mais de 41% dos homens afirmaram pedalar todos os dias contra 22% das mulheres. Segundo Juciano Rodrigues, pesquisador do Observatório das Metrópoles, “esse levantamento pode gerar evidências empíricas importantes e inéditas sobre como as pessoas utilizam a bicicleta para seus deslocamentos diários e que papel esse modo de transporte desempenha no sistema de mobilidade local e no acesso ao sistema de mobilidade urbana em cada cidade”.