Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Idosos conectados

Biblioteca de São Paulo: curso de informática para pessoas  de 60 anos ou mais / Foto: Divulgação
Biblioteca de São Paulo: curso de informática para pessoas de 60 anos ou mais / Foto: Divulgação

Por: ROBERTO HOMEM DE MELLO

A médica paraibana Sonia Montenegro, 68 anos, usa computador há muito tempo. Conecta-se todo dia à internet, começando já meia hora depois de pular da cama. No seu smartphone, utiliza desde aplicativos destinados ao público geral, como o Waze (que indica trajetos por GPS), até específicos para a sua profissão, como o White Book, um guia de prescrições médicas. Participa de dezenas de grupos na rede social Facebook, entre eles alguns relacionados à apicultura, atividade a que também se dedica em Paranapiacaba, charmosa vila de arquitetura inglesa no município de Santo André, no ABC paulista. Emprega a rede no trabalho e em casa. Certa vez, perdeu acesso a um dos discos de seu PC. Pediu ajuda a um amigo programador, que aconselhou a reformatação do computador (apagar tudo que estava gravado no disco rígido). “Claro que não aceitei”, conta ela. “Tentei durante alguns dias e consegui resolver o problema”, relata em entrevista concedida, a propósito, por meio de um aplicativo de mensagens on-line.

Sonia, assim como tantos outros idosos, enfrenta o estereótipo que associa o mundo digital exclusivamente aos jovens. Certa vez, ela comprou via internet ingresso para ir ao cinema. Quando foi ao guichê imprimir o bilhete, o rapaz que a atendeu perguntou onde estava seu filho, “que fez o pedido”. Ela respondeu que resolvia sozinha os seus problemas. “Vivemos num país exageradamente preconceituoso. As pessoas acham que se você tem cabelos brancos, está caducando”, diz.

Essa familiaridade de uma pessoa de mais de 60 anos com computadores e internet é um caso cada vez menos isolado, mas ainda muito distante de ser tomado como regra no Brasil. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, de 2013 (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apesar de praticamente metade dos brasileiros (49,4%) estar conectada, a esmagadora maioria dos internautas é formada por jovens: 75% dos adolescentes entre 15 e 19 anos de idade acessavam a web na época, contra apenas 12,6% dos que têm 60 anos ou mais. Em alguns estados, a distância era ainda maior. No Maranhão, por exemplo, só 3,1% dos idosos navegavam na rede mundial de computadores em 2013. No mesmo ano, só para se ter uma ideia comparativa, 59% dos norte-americanos de 65 anos ou mais estavam on-line, de acordo com levantamento do instituto Pew Research Center.

É claro que são contextos bem distintos. “Os Estados Unidos e a Europa lidam com o envelhecimento da população há muito mais tempo. Além disso, lá os recursos tecnológicos são bem mais acessíveis”, diz a terapeuta ocupacional Taiuani Marquine Raymundo, autora do estudo “Aceitação de Tecnologias por Idosos”, um dos poucos que investiga essa questão no Brasil. Apresentada como dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo (USP), a pesquisa foi facilitada pelo contato que Taiuani já tinha com o assunto, como professora do Projeto de Inclusão Digital de Idosos (Pidi), promovido pela USP de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Aproveitando o acesso de que já desfrutava a esse público, Taiuani entrevistou cem pessoas, cuja média de idade era próxima aos 70 anos, nas cidades paulistas de Ribeirão Preto e Olímpia. Tinha dois objetivos principais: descobrir se os idosos aceitam a tecnologia e identificar quais fatores interferem no uso que fazem (ou não) dela.

“Coisas novas”

Uma das constatações foi a de que a aceitação da tecnologia é quase unânime. Mais de 90% dos entrevistados a entendem como útil e necessária e se interessam em utilizá-la. No entanto, na prática muitas vezes o contato é complicado, por vários fatores. De acordo com o levantamento, praticamente um em cada quatro idosos entrevistados relataram ter medo de utilizar as novas tecnologias. O receio de danificar o aparelho, por sua vez, foi citado por 40% deles, e 19% manifestaram sentir ambas as limitações. Instados a identificar o que exatamente os perturbava nessa relação com aparelhos tecnológicos, os idosos citaram motivos variados, que iam desde fatores mais específicos como o medo de acessar a internet, de vírus, de redes sociais ou de caixa eletrônico, até mais abrangentes, como o medo do próprio computador e de “coisas novas”.

Respostas recorrentes referiam-se ao aparelho como algo distante das possibilidades dos idosos. Diziam respeito tanto ao medo de não memorizar suas funções quanto ao de simplesmente não saber, não conseguir, não aprender a utilizá-lo.

O medo de errar e das consequências do erro, um dos fatores mais importantes, desdobra-se em outros medos mencionados: o de estragar ou quebrar o aparelho, o de confundir a voltagem e o de apagar documentos de outras pessoas. Por fim, houve quem atribuísse seu medo a más experiências com tecnologias.

Cristiano de Oliveira Pesso, instrutor num curso de informática para pessoas de 60 anos ou mais promovido pela Biblioteca de São Paulo, na zona norte da capital paulista, diz que esse medo do equipamento moderno torna-se claro quando os idosos ficam diante do computador. “Um exemplo é o medo de apertarem um botão sem saber o que pode acontecer. Alguns acham que o equipamento irá travar ou até explodir”, diz ele, acrescentando que ouve isso com frequência, “sempre levando com bom humor”.

“O receio é grande, você não faz ideia”, diz a aposentada Cecília Catunda, 85 anos. Ela chegou a fazer cursos de informática e a trabalhar durante anos utilizando programas de computador. Sua conquista mais comemorada no campo tecnológico talvez seja também uma das raízes da tensão que acompanha esse assunto desde então: “de paraquedas” como ela diz, com apenas os conhecimentos mais básicos de informática, Cecília teve de aprender a instalar em computadores de clientes importantes, como o Hospital Albert Einstein, de São Paulo, um aparelho de CD-rom, novidade na época, e o programa que o operava. Tudo para fazer demonstrações do produto da empresa para a qual trabalhava: uma base de dados médicos feita para essa mídia.

Era na década de 1980, época da reserva de mercado da informática, quando era proibida a importação de computadores e diversos outros aparatos tecnológicos. O leitor de CD só podia ser importado por órgãos públicos para ser acoplado ao computador de fabricação nacional disponível, que deixava muito a desejar. No fim, a empreitada foi bem-sucedida, mas não foi nada fácil. “Chegava a chorar de aflição (longe do cliente!). Eu não podia errar nada”, relata.

Posteriormente, Cecília trabalhou fazendo revisões com um processador de texto para o Instituto Oceanográfico da USP e ainda ofereceu seus préstimos à Biblioteca Regional de Medicina do Brasil utilizando um programa de planilhas. Hoje usa basicamente e-mail e faz pesquisas pela internet, além de entrar de vez em quando nas redes sociais LinkedIn e Facebook. Nem mesmo todo esse histórico de envolvimento com o assunto foi suficiente para tornar a relação com a tecnologia algo tranquilo. “Apesar de tudo que já usei do meu notebook, ainda tenho medo dele”, diz ela. Para Cecília, “esse medo é geral nos idosos”, devido a diversos fatores. Um deles seria “o esforço que a aprendizagem de todo esse ‘pacote’ de novidades exige”.

Na pesquisa de Taiuani, 54% dos idosos entrevistados consideram os aparelhos eletrônicos complicados e difíceis de serem utilizados. Para 69% deles, as tecnologias não foram desenvolvidas com foco na população idosa, e 64% relataram que o idioma dos aparelhos e dos manuais dificulta o uso. Segundo a autora, que agora realiza uma nova pesquisa para seu doutoramento, com um público um pouco mais jovem – pessoas de 50 anos ou mais com dificuldades com tecnologia – há ainda mais uma queixa, semelhante em ambos os públicos: a de que os aparelhos são muito pequenos e têm muitas funções. “Eles olham para aquilo tudo e às vezes não sabem nem por onde começar”, diz Taiuani.

“Um grande tabu”

A dona de casa Anísia Nakamura, 60 anos, procurou o curso da Biblioteca de São Paulo porque, ela se sentia mais ou menos assim, embora já se aventurasse nos e-mails e em mais alguns recursos. “A gente tem uma dificuldade que não sei nem explicar. Mas não me sinto sozinha porque todos nós dessa geração passamos por isso”. Ela chegou a pensar se lhe faltava “alguma esperteza”, segundo suas palavras. “Diante de qualquer problema eu já fico insegura, não sei solucionar”. Quando algo estranho acontece, ela logo desconfia que possa ser um vírus de computador. “Muitas vezes eu desligo, achando que preciso de um antivírus. Então, são coisas simples assim que eu gostaria de dominar, saber o que eu estou fazendo, o que está acontecendo.” Anísia resume sua sensação com uma imagem que encontra eco em outros idosos: “É como se nós fôssemos analfabetos. Se saíssemos na rua sem conseguir ler as placas, sem saber onde está. Eu me sinto assim”.

Zita Bressane, 90 anos, começou a usar o computador quando já havia passado dos 70. Ela concorda com Anísia: “Quem começa nessa fase da vida é como se estivesse sendo alfabetizada de novo”, diz. Ela não fez nenhum curso. Duas amigas, mais velhas que ela, resolveram fazer um curso no colégio paulistano Mackenzie, e estavam entusiasmadas. Não levou uma semana, todavia, elas desistiram com o argumento de que “o professor explicava, mas, mal ele saía da sala de aula, esquecíamos tudo”. Afirmam que “aquilo é uma novidade tão grande e só entrou na nossa vida quando já éramos idosos que acabou se transformando num grande tabu para nós”. Apesar das dificuldades, Zita diz nunca ter sentido receio de mexer no aparelho, porque para ela “tudo que era novo era uma aventura”.

Como é comum ocorrer, no início Zita utilizava o computador como uma máquina de escrever com recursos privilegiados e com que fez um livro como ghost writer de uma amiga. “Primeiro me encantei com o tal do Ctrl+c e Ctrl+v (comandos para copiar partes de um documento e colá-las em outro local)”, conta. “Que facilidade! Você não precisava rabiscar, apagar. Aquilo me encantou”, completa. Muitos anos mais tarde, ela descobriu os fascínios da internet. Primeiro, assistindo aos vídeos do programa humorístico Porta dos Fundos. “Achei uma coisa extraordinária, tão inteligente o humorismo deles”. Depois, entrou no Facebook. “Foi uma descoberta, porque reencontrei pessoas”. Ao contatar um colega da faculdade, “de repente ele pôs assim: ‘Ziiiiiiiiita!’, com não sei quantos iis! Para ele foi uma surpresa do tamanho de um bonde!”, lembra. Trocaram endereços e em pouco tempo ele tocou a campainha. “Você acredita? Eu não o via há mais de vinte anos! O hardware e o software estão me proporcionando coisas incríveis!”, entusiasma-se.

O alcance comunicativo da internet pode mesmo propiciar momentos afetivos muito importantes para os idosos. Luzia Rodrigues, 80 anos, mora sozinha no Itaim Paulista, na zona leste da capital paulista. Há quatro anos perdeu o marido. Já foi convidada a morar com a filha, que montou um quarto para ela em seu apartamento, mas Luzia não poderia levar sua cadela, então passa no máximo uma semana na casa da filha e depois volta. “Fico muito sozinha”, ela diz. O que vem acontecendo com milhões de pessoas, ocorreu com Luzia: ela começou a comunicar-se via smartphone com os parentes. “Converso no WhatsApp com meus filhos, com minha neta, com meus vizinhos”, relata. “Aprendi agora, há quatro meses. Eu achava que seria muito difícil, e estou achando, pois tem muita coisa que ainda não sei”, comenta. Sem esse recurso tecnológico, no entanto, dificilmente estaria em contato com a única neta, que mora no Canadá. Costumam conversar à noite, mas, com a diferença do fuso horário, às vezes fica tarde para Luzia. “De manhã cedo eu levanto e já vou ver se tem alguma coisa para mim”, conta. “Fico sabendo como ela está, ela já fica sabendo como eu estou e a gente vai se comunicando assim”.

Sensação de independência

O escritor João Carlos Marinho, 80 anos, autor do sucesso infantojuvenil O Gênio do Crime, também mora sozinho no bairro paulistano de Pinheiros. Praticamente todos os dias conversa com seus leitores por e-mail ou pelo Facebook. “Consegui me adaptar do meu jeito, sem me viciar nele, não faço bate-papo, coloco apenas o que acho que meus leitores se interessam. Só aceito amigos que gostam de ler. Com alguns evidentemente cresce uma simpatia maior. Eu gosto de colocar fotografias ou capturar imagens do Google e ilustrar com elas minhas postagens”, diz ele por e-mail.

Marinho usa o Google para muito mais que procurar fotos. “Minha Enciclopédia Barsa, como a de outras pessoas, foi aposentada”, diz. Dá exemplos: “informações sobre escalações antigas da seleção brasileira, uma documentação incrível em vídeo sobre Marcel Proust e as miudezas, como aquela poesia que é só escrever um pedaço que vem o resto”, destaca. Quando está escrevendo um livro, passa muito tempo no computador. Poder deletar partes do texto sem precisar jogar o rascunho fora foi “uma vitória”, assim como arquivar textos e mandar rascunhos de livros direto para a editora e poder acompanhar toda a revisão e ilustração pelo computador. “Isso foi sensacional para quem começou escrevendo à mão e depois à máquina”, diz.

Lahir Miori, 81 anos, faz questão de manter-se ativa e atenta ao que acontece à sua volta. Sai de casa com frequência, faz hidroginástica, caminha, visita os amigos. “Algumas pessoas acham que já viveram bastante, que não têm de fazer mais nada, mas não é o meu caso. Gosto de ficar sempre atualizada. Leio jornal todo dia e estou sempre querendo saber mais coisas. Com o celular, melhorou muito, especialmente agora que entrei no Facebook”, diz. Lahir aprendeu a usar um pouco o computador em casa, com os filhos. Mas se acostumou mais com o celular. “Fico sabendo de muita coisa sem ter de ficar perguntando. Eu mesma descubro”, afirma.

Em seu dia a dia de estudos e nos projetos de inclusão digital de idosos, a terapeuta ocupacional Taiuani conhece mais casos de conquistas como esses. Por exemplo, ela se recorda de uma senhora de Ribeirão Preto que teve aulas para aprender a usar a câmera digital. Um dia, ela chegou contando, com muita alegria, que a orquídea dela tinha florido e não precisou esperar pela filha para fotografá-la. O significado de aprender essas coisas funciona como uma sensação de independência, diz Anísia Nakamura sobre seu impulso de procurar aulas para dominar mais o computador. Ou, como afirma Taiuani, utilizando um jargão em voga, “a tecnologia proporciona esse empoderamento para as pessoas”.

Também aproxima as gerações, segundo ela. “Os idosos nos diziam que quando visitavam a casa dos netos, sentiam que não estavam mais pertencendo àquele meio, porque só falavam de tecnologias disso e daquilo. A partir do momento que aprenderam, passaram a participar mais daquele assunto”, ela enfatiza, acrescentando mais um termo: “trocas intergeracionais”. Uma das consequências desse fenômeno seria a de mudar o olhar dos jovens sobre os idosos. Eles ficariam mais propensos a vê-los “como pessoas realmente capazes de aprender”, que podem ser ativas e autônomas. “O que se percebe é que cada vez mais as pessoas idosas vêm procurando recursos que facilitem sua vida e os façam se conectar com o mundo”, diz Sueli Motta, diretora de bibliotecas do projeto SP Leituras, responsável pelos cursos destinados a idosos na Biblioteca de São Paulo.

Há muito a percorrer, todavia. Diante disso, cursos voltados para idosos e pessoas com dificuldades com a tecnologia em geral são bem-vindos, na opinião de vários entrevistados. Zita faz uma sugestão: o professor deveria ser idoso também, “porque ele sabe as nossas limitações”, diz. E conclui, com a experiência acumulada em seus 90 anos: “É um mundo novo, a gente não pode prescindir. Acho uma pena quem perde isso. É uma necessidade atual estar por dentro, participando desse mundo”.