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Os estigmas da linha de trem

Abate: o ambiente é de crédito restrito. Precisamos  encontrar alternativas / Foto: Divulgação
Abate: o ambiente é de crédito restrito. Precisamos encontrar alternativas / Foto: Divulgação

Por: CARLOS JULIANO BARROS

Nas últimas duas décadas, o setor ferroviário praticamente duplicou sua capacidade de transporte de cargas; todavia, ainda está longe de contemplar as necessidades logísticas do Brasil. Apesar das dimensões continentais do país, os 30 mil quilômetros de linhas férreas respondem por apenas 25% da carga escoada ao longo do território nacional. Para efeitos de comparação, nos Estados Unidos essa proporção chega a 43%, além do fato de que lá, a malha ferroviária é muitas vezes maior do que a nossa. Na tentativa de correr atrás do prejuízo, o governo federal lançou, no ano passado, um ambicioso programa de concessões à iniciativa privada no valor total de R$ 86,4 bilhões com o objetivo de construir novas ferrovias e de incrementar as já existentes.

Para entender melhor os desafios desse setor-chave para a economia do país, Problemas Brasileiros ouviu Vicente Abate, 65 anos, presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer), o ramo empresarial que produz o que as linhas de trem precisam, desde locomotivas, vagões e componentes, a sistemas de sinalização e comunicação, materiais para vias permanentes e serviços de engenharia. A entrevista aconteceu na sede da entidade, no prédio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), na Avenida Paulista. Descendente de italianos e “palmeirense verde, não roxo”, como ele se autodenomina, Abate é engenheiro metalúrgico e divide seu tempo entre o trabalho na capital paulista e os fins de semana no município de Cruzeiro, no Vale do Paraíba. Quando perguntado sobre as urgências do setor ferroviário, Abate cita duas frentes: “equacionar o gargalo logístico do centro-oeste brasileiro e desestrangular a cidade de São Paulo com a construção de um Ferroanel”.

Problemas Brasileiros Ainda em 2015, na esperança de reanimar a economia, o governo federal anunciou a segunda etapa do Programa de Investimentos em Logística (PIL). No caso das ferrovias, o Planalto espera levantar R$ 86,4 bilhões para a concessão de um total de 18,5 mil quilômetros de trilhos à iniciativa privada. Como o senhor avalia esse programa?
Vicente Abate – O PIL 2, apresentado em junho de 2015, é uma nova versão do programa – que não é só para o setor ferroviário, mas também para o rodoviário, portuário e aeroportuário. Em 2012, na primeira etapa do PIL, o governo pretendia conceder a investidores 11 mil quilômetros de ferrovias, mas nada saiu do papel. Agora, no PIL 2, são mais 7,5 mil quilômetros. Do volume total de R$ 86,4 bilhões, o aporte mais imediato diz respeito a R$ 16 bilhões que as concessionárias vão investir na malha já existente, corrigindo gargalos e comprando locomotivas e vagões novos. Mas as concessionárias têm uma preocupação: as concessões terminam entre 2026 e 2028, e, nos últimos 20 anos, elas já investiram mais de R$ 40 bilhões. Então, como a expectativa é que as concessões tenham apenas mais dez ou 12 anos pela frente, fica difícil convencer alguém a investir R$ 16 bilhões sem a contrapartida de que elas tenham continuidade. Desde o ano passado está sendo negociada com o governo federal uma renovação das concessões, e as três maiores concessionárias – VLI, MRS e Rumo ALL – já fizeram sua solicitação de extensão de prazo ao governo. Esperamos que ao longo deste ano as concessionárias consigam a renovação por mais 30 anos, viabilizando os R$ 16 bilhões em investimentos.

PB Em 2012, na primeira etapa do PIL, o governo tentou licitar 11 mil quilômetros de ferrovias, mas ninguém apareceu. O que deu errado?
Abate – No setor rodoviário foram sacramentadas seis concessões. Também foram concedidos cinco aeroportos. O governo até teve sucesso no PIL 1, o que ficou para trás foram as ferrovias e os portos. O que deu errado no PIL 1 no caso das ferrovias? O governo pensou em mudar o modelo de concessão. O modelo vigente é vertical, ou seja, a concessionária detém a ferrovia como um todo: além de fazer a manutenção da infraestrutura e o controle operacional, ela também faz o transporte das cargas. No PIL 1, o governo tentou modificar o modelo para o horizontal, também chamado de open access [a empresa que controla a ferrovia é uma; a que faz o transporte é outra]. Ele fez isso se inspirando em países europeus e na Austrália, esquecendo-se que o nosso transporte de carga é baseado no modelo norte-americano: grandes distâncias, commodities e baixo valor agregado.

PB Então, o PIL 1 “fracassou” porque, basicamente, o governo tentou introduzir o modelo open access?
Abate – O problema do PIL 1 não foi apenas uma questão de marco regulatório. Também pesou a falta de projetos executivos, de engenharia mesmo. Quando o governo pensou em conceder 12 trechos, que perfaziam o total de 11,5 mil quilômetros, o mercado verificou que a grande maioria não tinha projeto de engenharia. Só para um trecho, entre Lucas do Rio Verde [Mato Grosso] e Campinorte [Goiás], que é parte da Ferrovia de Integração do Centro-Oeste [Fico], havia um projeto básico pronto para ser licitado. Mesmo assim, acabou não acontecendo. Depois do PIL 1, o governo passou para a iniciativa privada a execução dos projetos que não existiam. E isso foi muito bem-sucedido: em julho de 2014, mais de 20 empresas se manifestaram interessadas nesse desenvolvimento. Os projetos foram concluídos em outubro de 2015, influenciando diretamente o PIL 2.

PB Basicamente, os investidores tinham receio de arrematar a concessão de uma ferrovia cujo custo de construção era desconhecido?
Abate – Exatamente. Por exemplo, na definição desse único trecho em que havia projeto, o governo falava que a obra custaria R$ 6 bilhões, o Tribunal de Contas da União [TCU] falava em R$ 5 bilhões e as empreiteiras falavam em R$ 7 bilhões. Essas diferenças são até esperadas. Mas pelo menos havia um projeto de engenharia como referência. Agora, imagine quando o projeto sequer existe: um pode afirmar que custa 10 e o outro garantir que custa 20. Não havia condições mesmo.

PB Nos Estados Unidos vigora exatamente o mesmo modelo adotado no Brasil?
Abate – Lá é um pouco diferente porque, na década de 1980, o governo americano fez uma privatização de fato e vendeu a propriedade das ferrovias. Aqui no Brasil foi sacramentada somente uma concessão, ou seja, a propriedade ainda pertence ao governo. A concessionária usa, mas – nesse modelo vertical – ela é responsável por tudo. O que o governo tentou mudar, até justificável por um aspecto, é a prática de as concessionárias não permitirem a utilização de sua ferrovia por outras empresas de transporte de cargas – o chamado “direito de passagem”.

PB Que é o tema mais controverso do setor ferroviário...
Abate – É isso mesmo. Não é que não exista o direito de passagem. Ele até existe, só é muito pouco praticado, em torno de uns 10% [do volume total da carga transportada]. Então, o que o governo pensava fazer? Ao admitir o open access, ele tiraria a prerrogativa da concessionária de também controlar o transporte de cargas. Então, abriria o mercado para diversas transportadoras, geraria em tese uma competição entre elas. E, além de garantir o direito de passagem, estimularia a redução do frete. Tudo isso, teoricamente falando. Como já havia frisado, é um modelo que funciona em alguns países europeus, já em outros não deu tão certo. Com o PIL 2, no ano passado, foi restabelecido o modelo vertical. Mas o governo decidiu atuar mais fortemente, o que representa dizer que vai existir regras mais efetivas para exercer o direito de passagem.

PB Por que é tão difícil desatar esse nó do direito de passagem?
Abate – Porque cada ferrovia tem uma capacidade de transporte de cargas teoricamente utilizada pela concessionária que detém o controle sobre o negócio. Vamos supor que uma determinada ferrovia tenha capacidade anual de 30 milhões de toneladas e que a concessionária tenha demanda para transportar esse volume. Ela não tem por que dar o direito de passagem, não tem capacidade física para fazer isso porque já opera no limite. Então, em primeiro lugar, é preciso checar esse limite. A Agência Nacional de Transportes Terrestres [ANTT] tem como verificar se as tais 30 milhões de toneladas estão sendo de fato transportadas ou se existe espaço para oferecer o direito de passagem. Quando não há espaço, é necessário investir no aumento da capacidade de transporte.

PB Como fazer isso?
Abate – Com sinalização mais eficiente com a finalidade de aproximar mais os trens. Antigamente, trabalhava-se com uma distância de 15 quilômetros entre um trem e outro. Hoje, pode-se trabalhar com uma distância de três quilômetros e com uma sinalização melhor. E esse espaço você ganha colocando mais trens. Além disso, a indústria está dando maior capacidade aos vagões e mais eficiência às locomotivas. Para se ter uma ideia, na Vale, os vagões de minério de ferro na época em que a empresa era estatal transportavam 95 toneladas. Hoje carregam 128 toneladas. Os vagões de açúcar deslocavam 80 toneladas, hoje levam 100 toneladas. Antigamente, os vagões de açúcar demandavam 45 minutos para serem descarregados. Atualmente, isso é feito em 1 minuto. Tudo isso é aumento da produtividade que a indústria oferece à concessionária para que possa ter mais competitividade.

PB Existem problemas técnicos aparentemente simples que atrapalham a interligação entre ferrovias administradas por diferentes empresas – como tamanhos variados de bitolas. Como resolver isso?
Abate – São dois os tamanhos de bitola no Brasil: uma de 1 metro e outra de 1,6 metro. É um problema, sem dúvida. Se a nossa rede ferroviária operasse com bitola única, como é na América do Norte (1,435 metro), claro que haveria uma interoperabilidade muito maior. Essas ferrovias de bitolas diferentes têm interligação, mas quando elas se conectam o trem não passa. Então, a carga tem que mudar de trem. É um entrave? Sim, mas é superável, e isso pode ser feito de duas maneiras: trocando-se o contêiner de um trem para outro com o uso de guindaste (é a mais eficiente); ou empregando a técnica de tombo de carga, principalmente no caso de produtos a granel. Mas o fato de haver duas bitolas não torna o transporte ferroviário inexequível. O Chile tem quatro bitolas e, a Argentina, três. Na Europa, dentro de um mesmo país, as ferrovias se utilizam de diferentes tipos de bitolas, como na Espanha. Dos 30 mil quilômetros de linhas férreas que cortam o território brasileiro, dos quais 23 mil estão em operação de fato, 6 mil quilômetros têm bitola de 1,6 metro. Nos outros 24 mil quilômetros ela mede 1 metro. Com a expansão das linhas, a tendência é ter um equilíbrio entre os dois tipos. De qualquer maneira, é sempre possível aumentar a produtividade.

PB De acordo com um estudo da Confederação Nacional do Transporte [CNT], existem 2.659 passagens de nível críticas, em que os trilhos das ferrovias cruzam rodovias ou avenidas urbanas. Além de construir novas ferrovias, é urgente recondicionar a malha já existente?
Abate No total, há 12 mil passagens de nível no Brasil, das quais cerca de 2.600 são críticas. Construir passagem de nível é resolver o cruzamento da ferrovia com rodovias, avenidas e ruas, fazendo com que o trem passe de um lado e os pedestres e os carros, de outro. Como se resolve isso dentro de uma cidade? Por meio dos chamados contornos ferroviários. É um trabalho que o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes [DNIT] tomou para si, com um programa de R$ 7 bilhões. Já foi feito um contorno ferroviário em Araraquara [interior de São Paulo]. A ferrovia, que vai de Rondonópolis [Mato Grosso] em direção ao porto de Santos [litoral paulista], passava no centro da cidade e hoje passa ao largo. Os contornos de Joinville e de São Francisco do Sul, em Santa Catarina, também estão sendo construídos. Mas não dá para dizer que a concessionária é a única responsável. O envolvimento do governo federal e das prefeituras é essencial, controlando o crescimento da mancha urbana. Há casos de famílias que se instalam muito próximas aos trilhos, e não se trata de removê-las, mas de realocá-las. E também tem que murar, para evitar novas invasões. Esse trabalho está sendo feito pela MRS em Santos. Enfim, há vários gargalos. Uma boa parte será resolvida com o investimento de R$ 16 bilhões previstos no PIL 2.

PB Quais são as obras que merecem prioridade?
Abate – Dos R$ 86,4 bilhões previstos no PIL 2, cerca de R$ 30,4 bilhões serão investidos a médio prazo. Para mim, são dois pontos prementes: equacionar o gargalo logístico do centro-oeste brasileiro e desestrangular a cidade de São Paulo com a construção de um Ferroanel – não faz sentido passar com vagão de carga na estação da Luz [no centro da capital paulista]. Para atender o centro-oeste, é preciso concluir a Ferrovia Norte-Sul, que atravessa Goiás e Tocantins, e fazer a linha que vai de Lucas do Rio Verde [Mato Grosso] a Miritituba [Pará]. Não podemos esquecer que a maior produção de grãos do país, como soja e milho, fica justamente no centro-oeste. O grande problema é o custo de frete. A safra produzida naquela região segue para os portos de Santos [São Paulo] ou Paranaguá [Paraná], percorrendo 2 mil quilômetros de rodovia numa carga de baixo valor agregado. Trata-se de uma carga tipicamente de ferroviário, e, por caminhão, os preços dos fretes vão lá para cima. E há perdas no caminho; já o vagão é hermeticamente fechado. Na região Norte existem portos capazes de escoar a produção: São Luís [Maranhão], Barcarena [Pará], Santarém [Pará], Itacoatiara [Amazonas]. Se o destino é a China, é possível encurtar a distância pelo Oceano Pacífico através do Canal do Panamá. Se o destino é a Europa ou os Estados Unidos, também é mais fácil sair pela região Norte. Ainda no tocante aos R$ 30,4 bilhões, a expectativa é que em 2016 tenhamos algum leilão: já existe projeto, não tem por que não acreditarmos nisso. E aí serão de três a cinco anos para construir.

PB O governo também anunciou uma parceria com a China e o Peru para a construção da Ferrovia Bioceânica com vistas à ligação do Atlântico ao Pacífico. Críticos consideraram o projeto uma espécie de “delírio faraônico”. Qual é sua avaliação?
Abate A terceira parte do orçamento de R$ 86,4 bilhões, que monta a R$ 40 bilhões, é reservado à Bioceânica. É uma ferrovia que vai da fronteira do Acre com o Peru ao porto do Açu, no Rio de Janeiro, com 4.400 quilômetros de extensão. Por enquanto, o governo está se concentrando no trecho compreendido entre Campinorte [Goiás] e Lucas do Rio Verde [Mato Grosso] – e, de lá, até a fronteira com o Peru. Depois, aquele país deverá levar a ferrovia até um porto. É um projeto de longo prazo. Os chineses, quando estiveram aqui, no ano passado, falaram muito desse projeto porque eles têm interesse em levar a carga do centro-oeste para o Pacífico. É uma questão geopolítica: eles não querem depender do Canal do Panamá, cujo maior controle é dos Estados Unidos. E prometeram para maio deste ano um projeto. Vamos aguardar.

PB Como o senhor avalia a política industrial para o setor ferroviário?
Abate O governo tem apoiado o setor ferroviário. Isso é um fato. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social [BNDES] é fundamental para o setor, não só para a indústria, como para as concessionárias. Existem financiamentos para a indústria fabricar e para as concessionárias comprarem. Claro que, no atual ambiente de ajuste fiscal e de escassez de recursos, as ações ficam limitadas. Os bancos privados podem ajudar, assim como outros bancos públicos e organismos multilaterais. Mas, aqui entre nós, não adianta falar em banco privado com os juros atualmente praticados. Enfim, estamos num ambiente de crédito restrito e precisamos encontrar alternativas. Como fazer isso? Essa é a pergunta do milhão.

PB E em termos de incentivos tributários à indústria ferroviária?
Abate A desoneração da folha de pagamento da indústria foi comprometida pelo ajuste fiscal. Na verdade, a desoneração da folha continua, mas a alíquota foi aumentada. A indústria pagava 0,5% sobre o faturamento e hoje a alíquota é 2,5%. Enquanto essa desoneração ocorreu, por uns três anos, foi importante para nós. Além disso, nosso setor já é isento de Imposto sobre Produtos Industrializados [IPI]. Claro que uma reforma tributária nos ajudaria, assim como a todo o país.

PB Quais são as necessidades mais urgentes da indústria ferroviária?
Abate Reunir condições para renovar a frota existente (110 mil vagões e 3,5 mil locomotivas), que é baixa em relação à extensão do país e tem mais de 40 anos. A China e os Estados Unidos têm entre seis e sete vagões para cada quilômetro. Temos que chegar a um nível de pelo menos 4 vagões por quilômetro, que é o mesmo da Índia. A frota nacional está obsoleta e ineficiente, os vagões são muito pesados e lentos para descarregar. Concebemos um programa de renovação da frota, trabalhando por mais de um ano com o governo e as concessionárias no sentido de promover a substituição de 40 mil vagões obsoletos e ineficientes por 18 mil novos. Também é preciso trocar 1,4 mil locomotivas antigas por 600 novas. Assim, a concessionária vai ter uma frota mais eficiente e poder melhorar a sua produtividade. Potencialmente, pode haver redução do valor do frete e criação de mais empregos. E o governo acabará se beneficiando porque vai arrecadar mais impostos. Enfim, é um círculo virtuoso. Este programa, também em função do ajuste fiscal, acabou paralisado. Mas já retomamos as conversas e esperamos que, nesse contexto de renovação das concessões, ele possa ser, enfim, executado.