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A arte e a nossa vida

Jacob Klintowitz / Foto: Bruno Leite
Jacob Klintowitz / Foto: Bruno Leite

Jacob Klintowitz, crítico e editor de arte, desenhista editorial, conferencista e jornalista, é autor de 158 livros, além de artigos e colunas em jornais do país. Recebeu duas vezes o Prêmio Gonzaga Duque, da Associação Brasileira de Críticos de Arte, por sua intensa ação cultural. Tem sido curador de dezenas de mostras de artes e exposições de cunho histórico no Brasil e no exterior. Entre os artistas brasileiros contemplados em suas edições estão Vicente do Rego Monteiro, Candido Portinari, Maria Bonomi, Israel Pedrosa, Yutaka Toyota, Claudio Tozzi, João Câmara, Ivald Granato, Aldemir Martins, Antonio Peticov, Newton Mesquita, Mario Gruber, Caciporé Torres, Alfredo Volpi, Octávio Araújo, Marcelo Grassmann, Aldo Bonadei, Victor Brecheret, Gregório Gruber, Carybé, Mario Cravo Júnior, Alberto da Veiga Guignard e Chanina.
Esta palestra de Jacob Klintowitz, com o tema “A Arte e a História Recente de Nossas Vidas”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 10 de setembro de 2015.

Há 14 anos, dei uma palestra neste Conselho e na ocasião acentuei o papel da arte e da cultura na formação da identidade nacional e de que maneira a cultura poderia criar a fisionomia de um país e transformá-lo numa nação com determinados objetivos. Continuo pensando nisso, mas hoje não daria ênfase a esse aspecto, porque me parece que estaríamos procurando para a arte uma função específica, como se ela não contivesse em si mesma seu próprio destino e sua maneira de contribuir para tornar o homem mais humano.

Um livro pouco conhecido de Jorge Luis Borges é Atlas, que ele publicou com María Kodama, sua última mulher. Esse livro contém anotações e fotos do casal percorrendo o mundo. Quem percorria o mundo na verdade era uma pessoa cega, porque Borges tinha cegueira congênita, o pai e o avô já haviam ficado cegos e esse era o destino dele desde criança. São anotações então de um homem que sentia o mundo e não o via como nós. Ele conta no livro um episódio no Deserto do Saara, onde, a centenas de metros das pirâmides, pegou um punhado de areia, deslocou-se com ela e a jogou em outro lugar, acreditando que estava alterando o deserto. Isso é um paradigma do processo da arte, aquela coisa de que um homem que é capaz de observar uma pequena alteração numa paisagem pode dizer: “Eu alterei o Deserto do Saara”.

Isso deixa como registro uma anotação de caráter poético e traz para nós uma revalorização, um reencontro com o deserto, que tem para o ser humano um caráter muito significativo. O deserto, como não contém as solicitações que as cidades oferecem, é o lugar onde o ser se encontra consigo mesmo. É por isso que os santos têm a sua iluminação no deserto. Então que este homem, que foi provavelmente o maior escritor do século 20, diga que, sem ver, alterou com uma ação o deserto é extremamente poético e artístico se levarmos em conta que o deserto é um lugar de alteração permanente. Qual é o rastro dessa ação artística? É um rastro psíquico, porque aqui a materialidade desaparece.

Temos hoje no mundo da cultura um problema triplo, que é o mesmo que altera nosso cotidiano. Nossos valores estão em xeque, porque estamos vivendo numa sociedade de produção e de consumo em massa. Essa sociedade tem ojeriza à individualidade. Na verdade, ela pretende a uniformização de todas as coisas e de todas as pessoas em um padrão médio. A segunda coisa que altera e coloca em xeque nossos valores é o fato de que estamos vivendo numa sociedade em que a tecnologia da comunicação alterou o processo de contato, de diálogo. Aquilo que era importante como valores morais, culturais, valores da nação e a própria ideia de nação entrou em xeque, porque temos uma comunicação instantânea, temos um sistema produtivo, econômico e diplomático que une todas as coisas de maneira instantânea. Então os valores nos quais fomos criados estão questionados numa sociedade que estabelece poderes acima dos poderes dos países. As grandes corporações têm um sistema de comunicação não só universal, mas simultâneo, concomitante e que estabelece uma nova relação de tempo. É a época do tempo instantâneo.

O terceiro fator que altera o mundo em que estamos vivendo é o fato de nossa sociedade ser uma sociedade do espetáculo. Todas as coisas tendem a um brilho, a um protagonismo, mesmo que muito rápido. Esse protagonismo é cada vez maior porque os sistemas de comunicação lhe permitem ser protagonista de sua própria vida. Mesmo que esse tipo de protagonismo seja de nível muito baixo e tenha um caráter narcisista, coloca seu cotidiano como um objeto de interesse geral. Cada indivíduo constrói para si mesmo um teatro e uma comunidade onde troca essa cena permanentemente com seus associados. O sistema de mídia cada vez mais procura o espetáculo, porque a mídia também é um produto e o espetáculo, mesmo que seja passageiro, é o produto a ser vendido. É por isso que em nossa época temos uma cultura da celebridade.

Forma e consciência

De que maneira a arte se coloca dentro disso? Fundamentalmente, o processo artístico leva à invenção da forma. A invenção da forma para o ser humano não só é razão da fruição de um prazer ou de um contato estético como é formadora da consciência humana. O homem é um homem dentro da linguagem. Quando vemos determinadas obras, é comum pensar que já as conhecíamos, porque é impossível que se crie uma forma que não esteja em nós. Seria impossível o contato, a comunicação e o entendimento. Entendemos a forma porque aquele processo já está em nós, só que de maneira fragmentária. Temos partes dessa forma em nossa consciência, em nossa sensibilidade, provavelmente em nosso DNA, porque a história da forma também é a história da espécie humana. Quando vemos a forma, aquilo que era fragmentado em nós se torna forma. Dessa maneira ampliamos nosso nível de consciência, que é uma consciência dentro da linguagem humana. O processo da arte, portanto, é também o processo de formação da consciência humana.

A arte se depara com uma sociedade que substituiu o símbolo pelo signo. O símbolo não só tem um caráter universal como é permanentemente capaz de nos oferecer novas interpretações, novas maneiras de pensar. Podemos ler [William] Shakespeare e a cada etapa de nossa vida o entendemos de uma maneira diferente, pelo caráter simbólico que ele tem. Nós também o entendemos diferentemente de outras gerações, porque o conhecimento que agregamos nos faz reavaliar o símbolo. Podemos ler ou ver uma peça de Sófocles e teremos uma compreensão de Édipo diferente da que tinha um grego, porque entre Sófocles e nós surgiu Sigmund Freud, que revitalizou a ideia de Édipo, mostrando o que ele significa no processo de desenvolvimento psíquico e psicológico do ser. Entre aquele período e o atual houve um longo aprendizado, que é um aprendizado de caráter sensível, cultural e científico.

Nossa sociedade, ao optar pelo caráter do sinal no lugar do caráter do símbolo, rebaixa a linguagem e todas as coisas se tornam episódicas. No caso da arte estamos lidando com um tipo de conhecimento que é perene, eterno. Podemos olhar uma escultura grega ou etrusca e temos capacidade de entendimento. O que diferencia a arte da ciência, ainda que elas se comuniquem, ainda que sejam paralelas, concomitantes e interpenetrantes, é que de certa maneira na arte não há evolução. Ela tem um caráter permanente. Com os avanços oferecidos pela ciência ou pela urbanização, ela tem novos suportes. Pode ser o laser, o muro, a holografia, pode ser o que for, mas o processo de criação e o processo formal continuam os mesmos, independentes do suporte, enquanto que na ciência o conhecimento é progressivo e a cada novidade essencial da ciência muda o paradigma.

Tínhamos [Isaac] Newton como padrão da ciência. A partir dele o padrão é que o fenômeno nas mesmas condições produz os mesmos resultados. Na arte jamais se produzem os mesmos resultados. O próprio artista quando trata de um tema o faz de maneira diferente a cada vez, e o último trabalho não invalida o primeiro, porque são independentes em si mesmos.

Nesse processo ficou comum no século 20 dizer que estávamos num trabalho de dessacralização da arte e apontavam artistas que tinham feito trabalhos com deboches ou manifestações de artistas anteriores que eram considerados ícones da cultura. Esse processo de dessacralização que se imagina para a arte está também nas outras manifestações da humanidade. Está na vida privada, na vida afetiva. No caso da arte o que ocorreu é que a dessacralização trouxe um apanágio da banalização. Imagina-se que o que é evidente é verdade, mas há várias coisas que são óbvias e absolutamente episódicas, tópicas, locais.

Sabemos que há um jornal na França, o “Le Monde”, o que é uma verdade óbvia, mas é só um sinal, não nos diz nada. Enquanto que, se contemplarmos no Museu do Louvre a escultura Vitória de Samotrácia, aquela grandeza, aquele ser alado imenso que parece estar alçando voo, toda a grandeza da civilização onde foi concebida também parece óbvia. Só nesse caso é uma verdade paradigmática, permanente. Se ela alçasse voo e nós víssemos isso, qual seria o rastro desse voo? É o mesmo processo de Borges quando altera o Deserto do Saara. Borges é simbólico para nós porque é, dos autores do século 20, provavelmente o principal escritor da transformação da literatura, que é um termômetro do mundo. A literatura de Borges é de caráter cultural, em que ele, no mesmo texto, é capaz de trabalhar com a história da cultura, com um texto de caráter ensaístico, com uma discussão filosófica. O mesmo texto tem um caráter ficcional e ainda todo esse processo se aproxima da ideia do símbolo, porque ele mostra que estamos diante de um ser extremamente complexo que é o homem de nossa época.

Crer sem ver

O que nós temos com isso? Temos que há uma mudança no mundo, independente da sociedade do espetáculo, de consumo e de produção em massa, da tecnologia de comunicação. O que caracteriza nossa época é que, para nós, o conceito de real mudou. Sempre se dizia que o conceito de real era o de São Tomé, ver para crer. Ao contrário, nós cremos sem ver. Nossa ideia de real é determinada pela matemática. Sabemos que existe uma massa escura no universo, que é escura porque não reflete a luz para nós, porque podemos calcular o nível de atração que ela tem sobre a massa clara que imaginávamos ser nosso universo.

A transformação da cultura está profundamente ligada ao conceito de real. Se fôssemos assinalar apenas como um dado cronológico, que não é exato, teríamos 145 anos de transformação da arte e poderíamos marcar a pintura do [Claude] Monet, que era a impressão do sol, que foi taxada por um jornalista, de maneira irônica e debochada, de impressionismo e se transformou, na verdade, no nome do movimento. O que era essa transformação? Era a ideia de que a realidade existe a partir da luz. Quando você não tem luz, não tem a visão do objeto. Por isso o impressionismo abdica do registro fotográfico da realidade para mostrar o mundo que é fluídico, corpuscular, um mundo que se modifica a cada hora do dia. Quando Monet faz a mesma Catedral de Rouen, várias vezes e em diferentes dias e horários, está mostrando para nós que, a cada luz, a cada inclinação do raio solar, a realidade é diversa. Desde então o que as artes visuais têm feito é expressar que existe um novo real no mundo. A ciência também é paralela a isso.

É nesse período do impressionismo que a ótica e a física desenvolvem os estudos da teoria da cor, ainda que o processo de conhecimento do artista seja diferente do do cientista e ele já utilizava a refração cromática. Sabemos que toda cor é pelo menos duas cores, ou seja, ela e a refração dela. Você pinta com pigmento, então é uma cor química, mas você vê a cor física, porque vê a cor como emissão. Essa cor química que é pintada é o pigmento, mas em volta dela há a radiação de uma cor complementar, isso é verificável hoje com aparelhos. Se você pintar o azul, há em volta um alaranjado que não é visto, mas a segunda cor vai estar em cima desse alaranjado. Por isso, quando você coloca duas cores frias, elas se esquentam ou duas cores quentes se esfriam, porque a refração é a complementar, que é o contrário. A teoria das cores e a ótica não só definiram isso com grande precisão, como o estudo da fisiologia do olho também foi desenvolvido. Sabemos qual é o mecanismo da retina, dos folículos.

O artista tem um processo de conhecimento que passa por duas coisas essenciais. Primeiro é um processo intuitivo. A intuição é saber sem passar pela dedução, é a convicção sem o caráter cartesiano da convicção. Você não deduz, você sabe. A segunda coisa no artista é que esse saber é confirmado pela ação de sua mão. Além de saber, ele tem de confirmar no fazer que aquilo funciona. Mas é curioso porque é paralelo com o que a humanidade está fazendo. A primeira teoria da relatividade, de [Albert] Einstein, é de 1905 e a retrospectiva da morte de Paul Cézanne é de 1906. Cézanne tratava da questão do espaço, da geometrização dos corpos, do contínuo que era o espaço-tempo. A primeira tela cubista de [Pablo] Picasso é de 1907, são coisas simultâneas e o cubismo não é senão o trabalho em torno do espaço e do tempo, porque o que Picasso faz é abrir o plano.

Então aquilo que estamos vendo é o que veríamos mais o que não estamos vendo, mas sabemos que existe, que é o outro lado. Isso é tão concomitante com a ciência que é espantoso. É porque há um espírito de época também. O mundo caminha, então é comum a ciência ter a mesma descoberta em mais de um lugar ao mesmo tempo. Vocês podem alegar, como eu também, que nesse momento temos civilizações que estão em outra época, são coevas nossas, mas são iconoclastas, foram destruindo símbolos culturais, porque esse era o processo tribal. Quando uma tribo derrotava outra tribo, a primeira coisa que fazia era destruir o totem, porque o totem na sociedade mítica era o centro cultural, o centro espiritual. Quando você derruba o totem, você é um iconoclasta, derruba a imagem, destrói o outro. Então isso a que estamos assistindo é um processo milenar, está cinco ou seis mil anos atrasado. Sempre temos coisas que são coevas, mas estamos em tempos históricos diferentes. No Brasil há praticamente todos os estágios da civilização, temos grupos na Idade da Pedra.

Hierarquia da compreensão

Existem dois tipos de sociedade no mundo, a mítica e a histórica, na qual estamos habitando. Nas sociedades históricas temos ainda a inclusão da sociedade mítica, porque essas coisas não desaparecem com facilidade. Na sociedade mítica a arte tem um caráter sagrado, representa todo o pensamento da comunidade. Ela é o centro espiritual da comunidade e seguidamente é uma cosmogonia na Terra da cosmogonia celeste, faz a ligação entre nós e os deuses, entre o céu e a terra. Isso é a arte numa sociedade mítica. Na sociedade histórica a arte não só representa o período que estamos vivendo como representa segmentos do conhecimento. Aquilo que emociona as pessoas letradas, cultas, com uma simultaneidade de pontos de vista, não emociona da mesma maneira o analfabeto. Não é que não seja universal, é que há uma hierarquia na compreensão.

Coevos conosco há vários níveis de desenvolvimento e isso é objeto de nossa conversa cotidiana. Na sociedade histórica, que se pretende dessacralizada, a arte perde o caráter de unanimidade, não é mais totêmica, não está no centro da aldeia, ao contrário, é uma produção cultural. No entanto, ela tem a nostalgia da ausência de legitimidade, ela almeja ser entendida, ser aceita e representar a comunidade em sua totalidade. Isso se verifica não só no discurso, porque às vezes o discurso do artista é patético. Estamos falando de artes visuais, em que o artista trabalha com a linguagem visual e o verbal para ele é muito primário. Até com a ideia de que existe uma arte contemporânea em oposição à arte moderna, eles começaram a fazer uma espécie de bula que acompanha a obra para explicá-la. Um deles, uma pessoa agradabilíssima, Artur Barrio, um artista português de vanguarda, um dia perguntou o que eu achava. Disse-lhe: “Acho que você devia aprender a escrever”. O texto era um horror, um padrão linguístico de Tarzan: Me Tarzan, you Jane. Era assustador, são patéticos quando explicam. Mas eles desejam também essa autenticidade, que não se encontra na sociedade histórica.

O que ocorre? Ocorre que toda a formação da nossa arte bebe na sociedade mítica. Hans Arp e outros beberam na arte esquimó. O maior escultor do século 20, Henry Moore, sai diretamente da civilização pré-colombiana e sua grande novidade é um vazio dinâmico, que se encontra na sociedade pré-colombiana. O cubismo, a Escola de Paris, toda essa grande modificação nasce a partir da escultura africana. Antes de Picasso pintar Les Demoiselles d’Avignon, o quadro que inicia o cubismo, ele e [Henri] Matisse ficaram noites inteiras segurando esculturas de Benin, porque não só o desenho, a integração da figura e o monolítico dessas esculturas são extraordinários, como elas têm esse caráter de autenticidade que nós perdemos.

A Renascença não é senão o processo de dessacralização. Mesmo a arte de caráter religioso não é mais sacra, porque o que é sacro permanece naquele local que é determinado, é o ponto da espiritualidade, ela não se desloca. Quando ela já está num formato menor, é um produto à venda.

Nós então na arte utilizamos fontes sacralizadas e elas formam nossa grande arte. Comenta-se muito que o surgimento do impressionismo, há 145 anos, se deve ao avanço extraordinário da pintura inglesa, principalmente de Joseph Turner e de John Constable, mas o avanço decorreu do contato com a gravura japonesa, que apresentava uma autonomia do desenho que não tínhamos. Nosso desenho era de caráter utilitário ou preparatório, um esboço. Estudávamos o contorno da figura, sua posição. Neles isso era um processo autônomo. Depois trabalhavam com uma sociedade ritualizada, que era a japonesa, e o cotidiano para eles tinha um caráter nobre. Não havia assunto preferencial, preferencial era o mundo que estava a sua volta.

[Jean-Paul] Sartre inclusive comenta isso, diz que escolher um assunto nobre é um preconceito, porque você só pode saber o valor das coisas se examinar o que está a seu lado, senão não há como estabelecer uma hierarquia. Essa sociedade japonesa ritualística, vivendo numa sociedade mítica, tem uma criação literária que até hoje é a fonte importante dos grandes poetas do Ocidente, que é a poesia que vai do século 12 ao 17, mais ou menos, os haicais. A característica básica dessa poesia é que não tem caráter descritivo nem caráter dedutivo, ela se estabelece através do contato de coisas aparentemente diferentes que produzem uma intuição.

Os poetas que faziam isso, Moritaka Mashiro e outros, eram na verdade errantes, que caminhavam, provavelmente, na maioria das vezes em direção ao Monte Fuji, como os artistas visuais também faziam. Mas eram errantes e mestres zen, então essa poesia tinha um caráter sacro. É uma poesia extremamente simples e extremamente complexa, são na verdade cinco sílabas, sete sílabas e cinco sílabas de novo. Eles propunham um dado da natureza e lhe davam um aspecto da generalidade e sentimento. Tudo isso em três linhas. Nossa leitura do haicai é diferente da japonesa, porque eles leem valorizando letra por letra. Então levam 20 minutos para ler aquelas três linhas. Nossa leitura é do alfabeto, é rápida. Mas a ideia básica influenciou toda a grande literatura do Ocidente. Inclusive a América Latina, que tinha uma mobilidade em relação ao processo cultural, porque de alguma maneira era um mundo novo, com uma quantidade enorme de poetas que beberam nessa fonte.

Pintura e realidade

No começo do universo artístico há três nomes, [Vincent] van Gogh, Cézanne e [Paul] Gauguin. Van Gogh cria para o mundo a possibilidade da emoção. Toda ideia expressionista do acento na vontade, na emoção e no sofrimento vem a partir dele. Na verdade, ele cria a partir de uma estrutura clássica, o desenho é clássico. A tela Noite Estrelada, que considero emblemática, a noite com todas aquelas espirais, é talvez a imagem do universo mais forte dentro da arte ocidental. É pura emoção e ao mesmo tempo a expressão do universo que se movimenta. Se isso fosse feito hoje seria uma expressão semelhante às fotos que são feitas do universo. Parto do princípio, já que discutimos o conceito do real, de que isso é real, não o que está registrado. A pintura é um dado da realidade.

Gauguin era um francês que trabalhava no sistema bancário e aos 40 anos desistiu de seu trabalho. Não aguentava a mulher, que vivia dentro da concepção de pequena classe média francesa. Não aguentava passar todos os dias no pequeno armazém perto de sua casa para comprar o que comeriam à noite. Foi para a Polinésia, as ilhas dos mares do Sul, onde finalmente teve um destino trágico, contraiu lepra e morreu aos 54 anos. Mas criou para nós a ideia de alegoria na arte e é o precursor do movimento ecológico, é o ícone, começou com ele, nos diários de Noa Noa, que escreveu observando a cultura do indígena e de que maneira ele, que representava a França, não era superior àquela cultura. Descreveu inclusive a graça do caminhar das pessoas, de que maneira o corpo existia, o que, em sua opinião, não existia no Ocidente. Criou para nós a ideia de que o outro tem uma cultura que é tão importante quanto a nossa, ainda que diferente. Ele trabalhou com a ideia da alteridade.

Na tela de Gauguin, vemos os personagens com os quais ele conviveu. É curioso que essa placidez, essa alegoria que na época consideravam uma pintura ingênua, é muito próxima de formas orientais e de hindus. Também na cultura hindu, ainda que lá seja acentuado o caráter perecível, as mandalas são criadas seguidamente com areia para mostrar que é o mundo da impermanência. É curioso que ele, retratando uma cultura tão diferente, que se chamava então de cultura primitiva, aproxime-se tanto de culturas que são muito mais antigas que a nossa e que trabalham com outros vetores.

Vejamos a tela Les Grandes Baigneuses, de Cézanne, que foi, na verdade, quem iniciou a ideia do cubismo. Foi em cima do trabalho dele que Picasso elaborou o cubismo. A tela divide o mundo pela densidade e pelo peso geométrico do corpo. Todo o corpo que se vê nessa paisagem é geometrizado e a densidade é feita por parte. É como se a estrutura geométrica substituísse a paisagem habitual, porque a aparência não é a realidade e a arte, ao contrário, desvenda essa ilusão, desvenda e desvela na verdade.

Picasso

É muito discutível definir quem são os principais artistas. Do ponto de vista icônico, o grande artista que conhecemos, depois de Rembrandt, Goya e dos renascentistas italianos, é Picasso. Do ponto de vista da produção, não se conheceu até hoje no Ocidente outro artista como ele. O único exemplar que parece tão capaz de ser fértil e de produzir tanto é um artista do grande período japonês, chamado Katsushika Hokusai. É outro processo, mas tem o mesmo tipo de fertilidade. Picasso é icônico para nós porque fez as duas obras que determinam basicamente o mundo da cultura. Criou o cubismo, que é o estudo da forma, da estética, a visão da realidade transformadora do homem. E fez Guernica, na época da Segunda Guerra Mundial, que é o exemplo da arte engajada. Conseguiu ser o ícone nas duas pontas. A arte engajada vai do sublime ao grotesco, grotesco no sentido popular, não da arte das cavernas, porque ela vai da grande revolta, como Guernica, até obras contemporâneas de um caráter naturalístico que a arte nunca conheceu, é simplesmente colocar o objeto em si em algum lugar, como se esse objeto fosse a própria obra de arte.

Guernica é uma cidade da Espanha que foi bombardeada pela aviação alemã como se fosse um exercício militar, porque não era importante estrategicamente nem tinha armamento. Quando Paris foi invadida pelos nazistas, um general perguntou a Picasso: “Foi o senhor que fez isso?” Ele respondeu: “Não, foram os senhores”. De todos os artistas de nossa época, Picasso provavelmente foi o mais habilidoso. Habilidade é um defeito no artista, porque leva para a facilidade. Mas no caso dele levou ao aprofundamento, ao estudo detalhado.

Podemos dividir a arte de 50 maneiras diferentes. Pode ser abstrata, figurativa, geométrica ou expressionista. Mas do ponto de vista social a arte de vanguarda e a arte engajada são os dois vetores principais. A obra Les Demoiselles d’Avignon é de 1907. Reparem que o rosto de duas figuras são máscaras de Benin, africanas. Ele buscou na sociedade mítica um tipo de autenticidade. Ele desdobrou o plano, as figuras estão desdobradas e o fundo está incorporado. O quadro retrata prostitutas de uma rua de Avignon. A composição, ainda que dentro de um processo cubista, está perfeitamente ligada à tradição da arte. Podemos ver que há uma diagonal que estrutura a tela. Poderia ser um trabalho de [Sandro] Botticelli, do ponto de vista da composição. O que muda são os desdobramentos da figura em vários planos. Esse trabalho influenciou e mudou a arte sem ser exposto, porque ficou no ateliê do artista quase três décadas, e a frequência dos artistas no local mudou o processo de pensar a arte.

O caso de Picasso é curioso, porque ele determinou a arte de nossa época e é um pintor cujo acento é o desenho e não a cor. Se fôssemos citar um pintor cujo acento fosse o cromatismo, seria Matisse. Guernica tem caráter duplo, é simbólico e narrativo descritivo, pois coloca detalhadamente os processos de sofrimento. Quando nosso Candido Portinari fez os dois painéis da Guerra e Paz, que estão na ONU, ele tinha, em minha opinião, esse problema. Os murais e painéis que fez são de tal maneira detalhados e fragmentados, o que em parte se devia ao fato de que ele não podia se confrontar com a largueza de Picasso. Ele tinha de escolher um novo caminho.

Picasso faz parte da cultura hispânica que tem uma relação muito forte com a morte. A ideia da tauromaquia é uma ideia simbólica de matar um instinto que é representado pelo touro. O touro é um instinto, é vitalidade, é capacidade reprodutiva. Então a dança que se passa entre o touro e o toureiro, que começa com o enfraquecimento e o sangramento do touro até a morte, é de um simbolismo tremendo, que Picasso usa em Guernica, que também é um massacre, é a morte.

O Brasil é um país sui generis. Quando aqui surgiu um desenhista notável, Aldemir Martins, que usou os signos de seu universo – o cangaceiro, a mulher rendeira –, as pessoas disseram que era um trabalho primitivo. Queriam que ele fizesse o touro de Picasso? Ele retratou seu mundo e é tão provinciano quanto foi Picasso nesse caso. O que você pode julgar é a qualidade do trabalho.

Guernica é um grande e extraordinário mural que não tem cor. É branco, cinza e preto. Evidentemente, os tons cinza apresentam gradações, podem ser esquentados e esfriados, têm n misturas, mas não aparecem as cores primárias – azul, amarelo e vermelho. É porque há também um caráter narrativo ligado à mídia, é como se fosse uma denúncia num jornal. Na época jornais eram impressos em preto e branco. Ele tinha essa atenção ao universo da comunicação.

Homem e solidão

Vejamos alguns outros artistas. [Alberto] Giacometti altera a ideia da escultura como uma massa contínua tridimensional. Ele reorganiza uma visão do homem e da solidão em nossa época. É em cima do trabalho dele que depois teremos tantos artistas, inclusive o mais importante deles, Francis Bacon. A escultura do Caminhante é provavelmente a sua obra mais significativa, um símbolo de nosso século, quando vemos cada vez mais massas enormes que migram de um lugar para outro, que é também a ideia desse homem e dessa solidão. Curiosamente, a figura filiforme de Giacometti é semelhante ao que se encontra na pré-história da humanidade.

O escultor provavelmente de presença mais importante no século 20 é Henry Moore. A vitalização da figura através do vazio, os semicírculos, a figura que dança, ainda que esteja estabilizada, é uma lição que nos vem dos pré-colombianos. Então o mais erudito de nossos escultores está fundado numa cultura mítica. Sabemos que às vezes a escrita desaparece e o que sobra para nós são as pedras. Também é interessante notar que a cultura do vazio dinâmico que encontramos nos pré-colombianos é a mesma que temos na cultura hindu, o vazio como aquele lugar que vitaliza o mundo.

A Romênia é um lugar extraordinário, tão pequeno e deu para nós Mircea Eliade, Saul Steinberg e Constantin Brancusi, um artista extraordinário que saiu de seu país e foi para Paris a pé. A escultura O Beijo é um bloco só unido, que influenciou a escultura no mundo inteiro, inclusive nosso Victor Brecheret tem uma série de beijos cuja referência é Brancusi. Ele tem um passado ligado à escultura clássica e depois saiu para essa escultura que tem um caráter simbólico, mas trazendo esse ofício de conhecimento quase único.

Houve um momento em que a vanguarda foi assumida por um francês chamado Marcel Duchamp. Ele surgiu após os trabalhos de Picasso. Picasso em determinado momento traz o mundo do signo para criar um símbolo. Duchamp usa coisas do mundo concreto, ele não altera, ele desloca o objeto que é industrial para o universo da arte. De alguma maneira talvez denunciando que essa validação do que é ou não a obra de arte entregue aos museus é uma coisa artificial. Ele é então o pai dessa gente que vemos, ainda que haja um grande equívoco sobre ele. O próprio Octavio Paz escreveu um livro que opõe Picasso a Duchamp, como aquele que faz e aquele que não faz. Mas é um equívoco, porque ele fazia, mas demorava muito.

O Grande Vidro é uma autobiografia, você não entende bem a história da vida dele ali, mas para ele é a biografia de suas emoções. Levou oito anos fazendo esse trabalho. A obra mais famosa é um sanitário invertido, que assinou com um pseudônimo e mandou para um salão de arte.

A autonomia da arte americana surge quando Jackson Pollock cria um expressionismo corporal de grande vigor, inclusive utilizando o acaso na elaboração cromática. Ele tem um passado que explica isso, porque conviveu com tribos indígenas americanas, com xamãs, que tinham um processo mágico de apreensão do mundo. Então essa é uma incorporação de caráter mágico, ainda mais se considerarmos que antes disso ele tem dezenas e dezenas de desenhos que têm um caráter xamânico, tratando de entidades.

Quando toda essa ação energética mágica ocorre, não lembra de repente Van Gogh? Lembra aquele céu, aquele movimento, porque está dentro do mundo do expressionismo, da emoção. Ele é o extremo, ele chegou no nível absoluto da emoção, tudo estava jogado ali, inclusive a possibilidade do acaso, daquelas coisas que a razão não domina.

Da geração mais nova, Bacon é o mais dramático, o mais forte dos pintores que surgiu após os gigantes Matisse, Brancusi e Picasso. Como todas as grandes coisas que ocorrem na Inglaterra, ele é irlandês, como Oscar Wilde. Tem essa densidade da matéria que parece em decomposição e ao mesmo tempo ele tem uma influência ou parte de Giacometti. Mas imprime de tal maneira uma percepção de nosso mundo, da dissolução do indivíduo e do apodrecimento da carne, que há uma tragédia nele. Seu ateliê é quase um açougue, pela maneira que ele vê o mundo humano como perecível. Não se iludam, é um homem extremamente letrado, porque a grande influência de sua obra é a tragédia grega, do ponto de vista da literatura. A figura do Papa [Estudo do Retrato do Papa Inocêncio X, de Velázquez] é uma coisa extraordinária.

E sempre há o grito mudo do homem, porque é o homem num universo incompreensível, num mundo que não se explica, onde ele está sempre em permanente diálogo com a contingência de que é um ser perecível. O homem se defronta com a morte o tempo todo, é sobre a morte que ele faz a reflexão, sobre a possibilidade de significação da vida ou não.

O universo pop americano se inicia como uma espécie de hegemonia da arte do país mais forte, em que eles reverenciam o cotidiano e o objeto cotidiano. Seguidamente o objeto está no universo pop americano de maneira reverencial e não crítica. Jasper Jones é entre eles o mais visual. Richard Serra é o escultor que concebe um universo do grande espaço e da grande construção, traz a escultura como um processo urbano.

Termino com um único artista brasileiro. Não é Portinari, nem Brecheret, nem Milton DaCosta. É um menos conhecido, mas é artista vivo e é quem traz uma reflexão sobre a cor em nosso mundo, provavelmente a mais profunda reflexão da cor em qualquer lugar do nosso planeta hoje. É Israel Pedrosa, que tem um livro notável, Da Cor à Cor Inexistente. Cor inexistente é o nome que deu à refração. Ele faz o trabalho usando a refração, a modificação da cor através do tipo de organização geométrica. Isso é na verdade o grande exemplo da teoria das cores nos séculos 20 e 21. É a mesma referência.

Comecei falando de Borges no deserto e seria interessante contar uma experiência que ocorreu com ele em outra viagem. Um dos temas de Borges é o tigre e o desenho do tigre. Inclusive ele coloca a hipótese de que o desenho do tigre é um código de conhecimento e que o sacerdote diante daquilo pode desvendar o universo. Nessa viagem ele é colocado em confronto com um tigre de verdade, domesticado, num zoológico aberto, e se senta ao lado dele. Pela primeira vez ele sente a língua, a pata, o peso, o cheiro do tigre. O comentário que faz é um comentário de arte. Ele diz assim: “Esse último tigre é de carne e osso. Com evidente e aterrada felicidade cheguei a esse tigre, cuja língua lambeu minha cara, cuja garra, indiferente ou carinhosa, se demorou na minha cabeça. Como diferença de seus precursores (aqueles da literatura dele), tinha cheiro e peso. Não direi que esse tigre que me assombrou era mais real que os outros, já que uma azinheira não é mais real que as formas de um sonho”.

Como comecei com ele na história do deserto, onde mostra que no universo da cultura o sonho é uma realidade, acredito que essa simetria deve lhe agradar lá no paraíso.

Debate

NEY FIGUEIREDO – Jacob, gostaria que você dissesse alguma coisa sobre a produção do Brasil atual no campo da música, pintura e arte. Como é que estamos? Segundo: o Brasil, nesses 500 e tantos anos de vida, criou um padrão cultural? Finalmente, você acha que no mundo da tecnologia ainda há lugar para a arte?

JACOB – Tivemos um grande momento na década de 1960, quando o Brasil conseguiu conjuminar um tipo de catálise que fazia as coisas acontecerem e tivemos músicos brilhantes que, depois de Villa-Lobos, foram liderados por Tom Jobim, que reuniu uma corte fantástica e cujas letras subiram muito de padrão com Vinicius de Moraes. Nesse mesmo período o Brasil iniciou uma grande pesquisa num mundo que é uma verdadeira montadora cultural, o cinema, porque reúne literatura, música e tanta coisa. Mas isso não foi adiante. Na França, por exemplo, os roteiros são escritos por Robbe-Grillet, por Marguerite Yourcenar. Nos Estados Unidos por Fitzgerald, Faulkner, as grandes figuras que estavam ligadas à produção audiovisual. Aqui isso foi interrompido.
Do ponto de vista da arte houve um momento em que nossa produção foi superior a toda produção daquilo que se chama Terceiro Mundo. Portinari era na verdade o grande pintor do Terceiro Mundo, infinitamente superior aos muralistas mexicanos. Orozco, Siqueiros e Rivera encaravam a ideologia de um ponto de vista primário, de tal maneira que isso comprometeu sua obra. Aliás, no caso de Siqueiros comprometeu até sua vida, houve um momento em que ele pessoalmente tentou matar Trotsky.
Parecia então que íamos deslanchar e nossa cultura literária incorporou de repente autores extraordinários, como Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, autores superiores ao que se fazia na maioria dos outros países, inclusive superiores ao realismo fantástico da América Latina. Considero Graciliano infinitamente superior a García Márquez. Houve uma preocupação muito grande com o Estado autoritário e as coisas não foram feitas. O que temos hoje em parte é a herança que sobrou, Carlinhos Lira, Caetano, Gil, gente que veio daquela época. Na literatura, talvez eu não conheça tudo, mas sinto falta hoje de uma grande figura. Não temos um Elliot, um Thomas Mann, um Guimarães Rosa. Há autores muito bons, mas segregados. No Rio Grande do Sul temos Sergio Faraco, que considero o melhor contista brasileiro, com uma literatura que parece Tchekhov, uma coisa de alto nível.
E outros têm uma predominância graças à mídia, mas nossa mídia enfraqueceu muito, porque tínhamos grandes jornalistas, como Agripino Grieco, Otto Maria Carpeaux, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, figuras que davam um padrão ao Brasil e foram substituídos por cronistas que usam a ideia da crônica no sentido mais vulgar, que é o do chrónos, eles se repetem. O pior é que se repetem nos assuntos e a preocupação permanente com a política enfraquece muito a possibilidade de a crônica ter um caráter literário.
Na pintura temos Israel Pedrosa ou Octávio Araújo, que morreu há pouco tempo, pessoas que trabalharam com Portinari na confecção de murais. Vieram dessa tradição e não se criou outra, inclusive o ensino da arte no Brasil é fracassado, porque ensina modos de ser e não como ser. Ensina a promoção, como se relacionar com a mídia, como bolar uma ideia. São coisas muito superficiais na arte, porque só é possível a liberação do processo criativo se você esquecer o ofício, desde que você domine o ofício.

HUGO NAPOLEÃO – Concluí de sua fala que Picasso, quando participa do cubismo, abre o plano do outro lado. Qual a sua concepção, a esse respeito, de Portinari?

JACOB – Considero Portinari o mais importante pintor de um determinado período do universo não inteiramente desenvolvido. Ele está no mesmo nível dos grandes artistas, logo abaixo de Picasso, porque aí a comparação seria impossível. É o artista mais conhecido do Brasil e é vítima de uma desinformação extraordinária que começa com a família. A família, na intenção de exaltar Portinari, chega a usar como slogan “pintor social”, seja lá que diabo for isso, como se houvesse pintor antissocial. Penso que querem dizer que ele lutava pelos famélicos. Não é verdade, ele era um homem que se comovia, mas a pintura dele não tem nada a ver com isso.
Ele tem cinco telas que registram os migrantes, porque é um tema dramático brasileiro. Enterro na Rede é uma pintura de alcance universal. A maior parte de sua produção tem um caráter lírico, são as crianças, que ele põe em balanço e diz que quando elas estão no ar lembram anjos. O maior pintor sacro brasileiro é Portinari, pois tem a maior quantidade de obras sacras, como a feita em sua terra, Brodowski, dedicada à avó, uma imigrante italiana que todos os dias ia à missa às seis da manhã. Quando ela ficou com reumatismo e não podia mais caminhar, ele lhe disse: “Não se preocupe, nona, vou trazer a capela para cá”. Pegou um puxado da casa e pintou uma série de santos e de cenas bíblicas, uma coisa extraordinária.
A insistência é mercadológica. Portinari inclusive não tinha um pensamento social. A conferência que ele deu no Uruguai, quando exilado, em que pretendia explicar a arte a partir da necessidade de suprir ideologicamente os pobres, é de uma fraqueza extraordinária. Custa crer que um homem com sua visão dissesse tanta bobagem sobre o que são a arte e o público. Então ele de pintor social tem apenas o fato de ter registrado os migrantes. É um grande artista extremamente mal representado, inclusive pelo Projeto Portinari, que apresenta uma organização matemática extraordinária, mas insiste no pintor social. Causa deformação, parece que é um sujeito que estava a serviço de não sei o quê, quando na época ser comunista era uma expressão de pessoas que tinham solidariedade humana.

PAULO LUDMER – Minha pergunta é a seguinte, me alinhando com Ferreira Gullar e outros: se tudo é arte e nada é arte, estamos num momento de uma banalização tal que eu, sinceramente, me sinto perdido em minhas apreciações e sensações em torno da arte.

EDUARDO SILVA – Artistas somos todos, é alguma coisa plural, todo mundo tem aptidão para alguma coisa. Então será que ser artista não significa algo diferente do que esse aspecto especial e singular?

ÁLVARO FURTADO – Você mencionou Vinicius de Moraes e outros, um momento muito especial para a música brasileira. Pergunto: qual é hoje a tendência da música popular brasileira? Vejo uma mistura de hip-hop, funk, rock, música sertaneja e outras coisas mais elementares. Em minha opinião, chegamos ao fundo do poço, com uma falta total de criatividade, não só musical como também na letra. Existe alguma saída para voltarmos a ter uma música brasileira de qualidade?

JACOB – Penso que apresentar tudo como arte ou todos como artistas é um equívoco. A arte é forma e a forma, quanto mais inovadora, quanto mais capaz de expressar uma individualidade, mais arte será e será menos signo. O artista começa dizendo não para a banalidade da vida, ele tem de se libertar de tudo que aprendeu, de todas as convenções, para começar a ver o mundo a seu modo. É obrigado a começar com uma negação.
Foi feito um estudo numa universidade da Inglaterra sobre o olhar humano, chegando-se à conclusão de que são dois estágios. Há o primeiro olhar, que é um oval, chamaram de olhar selvagem, e o segundo olhar faz uma leitura cultural. O oval, o primeiro olhar, o olhar da criança tenra, o olhar selvagem, curiosamente é o mesmo oval que encontramos na pintura do Matisse, o mesmo oval que vemos em algumas composições de Van Gogh. Então o que esses artistas fazem é recuperar a primeira condição humana. Aqueles que repetem o universo das convenções, que não chegam nessa impressão digital de si mesmos, eles fazem uma crônica de costumes, eles contam a vida.
Temos no Brasil casos assim, por exemplo, no teatro, Nelson Rodrigues, que era pouco entendido, as pessoas bem postas o achavam pornográfico, as de esquerda o consideravam um homem de direita e na verdade ele era um homem que tratava com as coisas viscerais, primevas. Ele foi o grande trágico da literatura brasileira e a pequenez das pessoas não permitiu entender isso, inclusive diziam que ele fazia a crônica dos costumes cariocas. Meu Deus do céu, o homem podia ser comparado a Sófocles, a Eurípedes, um grau abaixo, mas era o padrão pelo qual ele teria de ser julgado. Era o homem que não estava adornado na convenção.
Outro exemplo, Mário Gruber conseguia no auge de sua fantasia, que tinha um lado delirante, chegar de alguma maneira numa alma brasileira que nunca tinha sido revelada, a alma do transformista, da revalorização do cotidiano. Esse é o artista, mesmo que, como no caso de Gruber, o contato pessoal seja quase impossível, porque ele delirava. Uma vez ele me confidenciou ser vítima de uma perseguição e eu nunca descobri que perseguição era, quem era o perseguido e por que eu. Era um delírio, mas esse é o artista.
Só é arte, na verdade, a forma e tem muitas e enormes gradações. Penso que se banalizou a palavra criatividade, até um gato é criativo hoje. Bancário é criativo, em qualquer atividade burocrática dão cursos para estimular a criatividade. Virou uma palavra de tal maneira desgastada que, no final, não é nada. A palavra ficou desmoralizada, uma espécie de sinônimo inclusive de reverência, de atitude emocional, como se a emoção fosse a arte. A arte não é emoção, a arte é a memória da emoção.
Se você está emocionado, não consegue trabalhar. Se você sai na rua e dá um soco numa pessoa é um ato emocional, mas não é arte. Se o artista expressar a emoção, sai um borrão. Ninguém consegue trabalhar de pileque por causa disso. No Brasil temos um registro extraordinário, Flávio de Carvalho registrou a morte da mãe naqueles desenhos magníficos. Olhando para aquilo, percebe-se que ele está distanciado. Fiz uma entrevista com ele e lhe disse: “Só você consegue olhar para a morte da mãe com essa frieza”. Ele respondeu: “Se não, eu não ia desenhar”.
A respeito da música, acho que somos provavelmente o segundo ou terceiro povo mais musical. O povo mais musical do mundo é o dos Estados Unidos, pelo menos era o que o Tom Jobim dizia. O italiano é extraordinário, tem DNA musical. Citei Tom e Vinicius porque os dois elevaram nosso padrão e depois saíram deles os afro-sambas, surgiu Baden Powell, mudou a batida do violão, porque o violão da bossa nova é um violão introvertido com pequenas notas. O violão do Baden é um violão com toque duplo, é amplo.
Depois veio o tropicalismo, injustamente atribuído ao Gilberto Gil e Caetano Veloso, quando na verdade começou com Hélio Oiticica. Só que o trabalho de Oiticica, como se passa em museu e galerias, é de público mais restrito. Hoje penso que nossa música está muito vinculada ao produto, é feita para ser tocada na TV e no rádio. Em arte o produto pode existir, mas não é o principal, o principal é o processo do artista. Muita coisa que ele faz parece inútil, fica no ateliê, mas é o processo de formação que ele mesmo se dá.
O que falta hoje é considerar que é um processo cultural. Você não faz música para tocar no Faustão, faz mesmo que seja para ficar na gaveta, aquilo é o seu processo de desenvolvimento, que depois pode resultar num produto. É essa característica que está faltando no Brasil e deixa tudo muito confuso.

MARCOS AZAMBUJA – Tenho um grande amigo, Alberto da Costa e Silva, que detesta música sertaneja. Ele diz que a arma de dois canos foi inventada para abater dupla sertaneja. Fiz uma viagem com você nessa palestra, todas as citações são extraordinárias. Acho que o Brasil está numa grande entressafra cultural. No momento não há ninguém que impressione muito, não leio há muito tempo algo do Brasil que me deixe comovido. A minha adesão ao que você disse é quase integral, mas achei você um pouco injusto com os mexicanos. Frida Kahlo também devia ser incluída. Os três muralistas viveram uma grande paixão e é uma linguagem, eles têm uma maneira de ser reconhecível, pois um dos grandes traços da arte que perdura é a reconhecibilidade. Creio que no momento o Brasil não está participando dessa elite de pensamento, de criação, de inteligência. Tenho a impressão de que a decadência do Rio de Janeiro teve um pouco a ver com isso. O Rio tinha certo fulgor cultural, era uma cidade aberta para a Europa, para o mar, era um porto e depois um aeroporto. Perdeu espaço e Brasília não tem nenhuma capacidade de substituir. De modo que estamos vivendo uma entressafra de cultura. Mas não quero dizer que não haverá um renascimento, um renascer brasileiro. Eu não sei se estarei aqui para assistir, mas não tenho dúvida de que virá.

JOÃO TOMAS DO AMARAL – Você apontou um triplo problema da cultura, que são os valores, a tecnologia e a sociedade do espetáculo. E levantou duas questões ao fazer uma dupla polarização entre arte e ciência. Ficou claro que existe uma disjunção entre a produção artística e a formação escolar, porque sempre se procura dar uma visão de que a arte talvez seja uma coisa de menor interesse na formação. Como você vê um movimento de aproximação da arte junto ao grande público, como uma trajetória importante para a ampliação da cultura geral das pessoas e da nação?

LUIZ GORNSTEIN – Existe um contencioso com as obras do Volpi que teriam origem duvidosa. A coleção do casal José e Paulina Nemirovsky é objeto de disputas na Justiça. Gostaria de saber sua opinião sobre isso. Como proceder após a morte dos artistas?

JACOB – Realmente, embaixador, fui ligeiro demais com os mexicanos, falei rápido sobre eles. João Tomas, há duas coisas diferentes. Uma é a produção ou a invenção da arte e outra a difusão. Penso que cabe aos estados, aos municípios e aos indivíduos propiciarem o convívio. Em alguns países esse convívio é permanente. Estive num templo importantíssimo no Japão, um lugar de referência inclusive pelo uso da madeira. Estavam comigo turmas de crianças de 4 a 5 anos com os professores. Esse convívio faz parte da qualidade de vida. As pessoas não são animais aos quais você só dá comida. Aliás, nem isso dão direito. O mundo psíquico, o lírico, o mundo da cultura fazem parte da qualidade de vida. É como o conhecimento básico da ciência. Não é possível viver no mundo sem saber essas coisas básicas. Quando se pergunta o que o homem está fazendo aqui, essas coisas que ninguém sabe, uma vertente religiosa ou uma vertente sociológica impõem um dever. Para mim, o homem está fazendo aqui um trabalho muito sério que é tentar se tornar humano. Então é fundamental esse contato.
Luiz se refere à questão jurídica, das famílias dos artistas. Estamos vivendo um problema que é nacional, as pessoas são muito imediatistas, querem lucro imediato. O movimento das famílias após a morte do artista não é em defesa do acervo, da linguagem, mas no sentido de torrar aquilo rapidamente, uma atitude primária. Na verdade não ligo para o mercado de arte, mas o valor de uma obra é o conceito do pintor. Picasso é entendido como um gênio inovador, então vale US$ 10, US$ 20, US$ 50 milhões. O sujeito que está expondo na Praça da República é entendido como homem de retaguarda que não faz nada, uma paisagem vale R$ 400. A tela é a mesma, as tintas são as mesmas. É o conceito.
Um exemplo: Rubens Gerchman pediu-me que fizesse uma exposição para ele. Estava doente, com câncer e comecei a pensar na exposição, mas ele morreu. Falei com os amigos dele, Claudio Tozzi, José Roberto Aguilar, Roberto Magalhães, pessoas de sua geração. Consegui o patrocínio de um banco e, quando estava tudo arrumado, falei com a filha dele, que eu conheço desde pequena. Expliquei para ela o conceito da exposição e ela disse duas coisas notáveis. Primeira: “Pode dizer para eles que eu escolho as obras”. Ela é completamente despreparada para isso, não é genético. Fiz que não entendi. A segunda coisa foi que ela cederia as obras escolhidas por US$ 100 mil. Disse para ela que ia falar com o pessoal do banco. Dei um tempo e no outro dia liguei para ela: “Eles não querem”. Ela disse: “Mas você acha que não vale”? Eu disse: “Vale milhões, mas não consigo convencer o presidente do banco a lhe dar os US$ 100 mil”.

AZAMBUJA – A família no caso de Guimarães Rosa tem sido um obstáculo extraordinário. Criou-se para ele uma espécie de área de silêncio, não se consegue publicar nada, a família não permite.

JACOB – A de Cecília Meireles também. Tem de diferenciar a área conceitual da área mercadológica.

JOSEF BARAT – Tivemos luzes que nos mostram a possibilidade de caminhos melhores e também tivemos sombras dessa decadência, desse rebaixamento. O curioso é que os jornais se preocupam muito com o rebaixamento do Brasil pelas agências de risco, mas ninguém se preocupa com o rebaixamento cultural, intelectual e artístico. O Brasil está em franca decadência, não precisa ir muito longe, 40 anos atrás era outro panorama. Então isso nos preocupa, não sabemos como é que se retoma a vitalidade cultural.

OZIRES SILVA – Diante do panorama que foi traçado aqui, cabe uma pergunta: há um denominador comum em tudo o que está acontecendo? O que foi descrito na área da arte vemos em outros setores no Brasil. Vou contar uma historinha que vivi e me parece que está na raiz de tudo isso. Numa viagem à Escandinávia, tive a oportunidade de estar presente numa conversa com três membros da secretaria que faz a escolha do Prêmio Nobel. Perguntei a eles por que o Brasil não tem nenhum Prêmio Nobel. Depois de uma interlocução entre eles em sueco, que eu não entendi coisa nenhuma, um deles falou o seguinte: “Vocês, brasileiros, são destruidores de heróis”. Esclareceram dizendo que todos os brasileiros indicados pela secretaria foram destruídos pelos próprios brasileiros, ao contrário dos Estados Unidos, onde, quando um nome americano surge, há um movimento nacional de apoio. Tenho a impressão de que, por não darmos valor às pessoas, deve estar morrendo gente muito talentosa que não reconhecemos, porque prevalece a crítica. Qualquer pessoa que se apresente no cenário nacional é criticada imediatamente como não tendo valor.
Tempos depois fiz uma palestra num hospital e alguém me perguntou: “O senhor teria quem indicar agora para o Prêmio Nobel?” Respondi: “Um nome que me surge agora de repente é de Adib Jatene”. Imediatamente um médico perguntou por que ele.
Quem é líder aqui neste país? Ninguém. E quem constrói o líder? A sociedade. A sociedade se recusa a aceitar brasileiros como líderes.