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Literatura também é espaço para o protagonismo feminino

Com vinte e poucos, a mulher cearense que era filha e neta de cordelistas sentia algumas angústias crescerem. Ela temia o fim da arte popular que simbolizava suas origens. A mulher de cabelos crespos também se incomodava com a falta da presença de mulheres – principalmente as negras -  como protagonistas na história ensinada na escola e na ficção.

Foi munida destes sentimentos que Jarid Arraes escreveu, num fôlego só, seu primeiro cordel. Os vinte minutos que a conduziram da primeira letra ao derradeiro ponto final marcaram o início de um trabalho prolífico. Três anos depois, já são mais de quarenta cordéis escritos: “Desde o começo a minha proposta era trazer protagonistas mulheres, negras, falar sobre questões sociais e contra as diversas formas de preconceito e discriminação”, contou a escritora, em entrevista à Eonline.

A seguir você lê a íntegra da entrevista com a escritora que também é autora do livro As Lendas de Dandara e colunista da Revista Fórum.

Eonline: Quando escreveu seu primeiro cordel? Ele já trazia os temas que aborda hoje?
Jarid Arraes: Escrevi meu primeiro cordel em 2013, depois de conversar com meu pai sobre minha preocupação com a continuidade da tradição da nossa família. Estava angustiada imaginando que um dia o cordel morreria com meu avô e meu pai e queria muito conseguir manter essa tradição viva; ele me encorajou a escrever e na primeira tentativa, em cerca de 20 minutos, terminei meu primeiro cordel. Desde o começo a minha proposta era trazer protagonistas mulheres, negras, falar sobre questões sociais e contra as diversas formas de preconceito e discriminação, porque acreditei - e ainda acredito, agora atestando todos os dias - que o cordel tem esse potencial transformador maravilhoso, por ser uma literatura acessível, lúdica, que dialoga diretamente com as pessoas e é tão fácil de compartilhar. 

Eonline: Quais são seus desejos como escritora ao abordar temas como a história de mulheres inspiradoras?
Jarid Arraes: Eu desejo honrar minha ancestralidade negra e também nordestina; quero contar as histórias de tantas pessoas, principalmente mulheres, que fazem parte do meu passado e do passado do nosso país, e que contribuíram com grandes lutas, conquistas e transformações sociais. Mas não quero falar somente dessas heroínas como Dandara dos Palmares ou Tereza de Benguela, quero contar as histórias das mulheres desconhecidas, muitas vezes anônimas, mas que fazem parte das nossas raízes. E eu espero que com isso seja feito alguma reparação histórica e também na autoestima e no sentimento de pertencimento das pessoas, pois assim como eu cresci sem essas referências na escola, na mídia e na minha formação pessoal, muitas crianças e adultos estão passando por esse mesmo vácuo. Enxergar as mulheres, e especificamente as mulheres negras, como protagonistas da história do Brasil e das suas próprias histórias é algo impactante, que traz muitos resultados positivos. Para todos. Tanto para a garotinha negra que começa a perceber suas semelhantes como exemplos maravilhosos quanto para os homens, por exemplo, que podem também ajudar a transformar a visão racista e machista ainda dominante em nossa sociedade.


 

Eonline: Qual a personagem histórica que mais te inspira e por que?
Jarid Arraes: Tereza de Benguela me inspira muito. No Brasil, o dia 25 de Julho é um dia que a homenageia e eu a considero incrível, digna de toda memória, pois foi uma grande líder e esteve a frente de um quilombo forte, muito desenvolvido, que não apenas produzia suas próprias armas, mas cultivava diversos tipos de alimentos, fazia tecidos e tinha um sistema política organizado e de sucesso. Acho que ela é um exemplo mandatório para as escolas. Mas também tenho um amor profundo por Dandara dos Palmares, porque a sua existência é controversa, muitos estudiosos dizem que ela não existiu, que é confundida com a própria Tereza e outras líderes que lutaram contra a escravidão, mas é exatamente esse fator que mistura lenda e fato que me inspira, é como se Dandara unificasse todas as figuras de líderes quilombolas e guerreiras que existiram. Por isso que ela virou a protagonista do meu primeiro livro.

Eonline: Sobre o trabalho feito no livro As Lendas de Dandara, como tem sido a recepção desta obra?
Jarid Arraes: A recepção tem sido maravilhosa. É uma publicação independente e que precisa ser comprada diretamente comigo ou em pequenas livrarias, não conto com nenhuma divulgação paga, tudo sou eu que faço sozinha usando as minhas redes sociais, então o retorno é incrível. Muitas pessoas já compraram meu livro, tanto na versão física quanto na versão digital, e eu já estou com a tiragem chegando ao fim. Também fico muito feliz porque grande parte dos leitores é formada por educadores, todos interessados em repassar a história nas escolas ou de maneira educativa, seguindo esse princípio que mencionei da reparação, de apresentar mulheres negras como dignas de memória e reconhecimento. Isso é muito gratificante, é exatamente o que desejo. Pela internet também é possível encontrar várias resenhas, o que me deixa muito grata.

Eonline: Qual a leitura que você faz do cenário atual das questões políticas e sociais relacionadas à gênero?
Jarid Arraes: Acho que vivemos um momento em que esses temas estão conseguindo entrar na grande mídia de alguma forma, mas principalmente devido a quantidade enorme de conteúdo que tem sido produzido online. Acho esse movimento interessante, pois muitas jovens estão pautando o que tem sido mostrado na mídia e com isso há uma maior atenção para as reivindicações dos movimentos sociais. Ainda é cedo para extrair uma conclusão disso tudo, mas eu espero que muitos jovens tenham acesso a isso e consigam dar continuidade às pesquisas e estudos sobre esses assuntos, sobretudo para que apliquem isso em suas vidas e ajudem a transformar o meio em que vivem.

Eonline: Qual o poder transformador da literatura neste contexto?
Jarid Arraes: A literatura sempre serviu como ferramenta para olharmos para nós mesmos e para nossa sociedade de maneira crítica e aprofundada. Grandes clássicos já falavam disso, já retratam a época em que estavam contextualizados, já provocavam e mostravam a hipocrisia de certos grupos, ou as contradições da cultura, das relações entre as pessoas e também da política. Então o potencial transformador e desafiador da literatura é inegável. E o mais incrível é fazer isso de uma forma tão imersa nos sentimentos e percepções das pessoas. Acredito que mesmo quando uma obra não tem o objetivo de levantar reflexões políticas, isso ainda é possível, o conteúdo a se discutir ainda está ali. Um romance juvenil serve para isso, uma trilogia de aventura serve pra isso, uma poesia de quatro linhas serve pra isso. Então podemos falar sobre isso com mais profundidade, basta que estejamos dispostos a extrair daquelas histórias algo profundo e significativo não apenas individualmente, mas socialmente. Isso porque eu ainda nem falei da importância da representatividade, de vermos personagens diversos, que quebram estereótipos, que mostram grupos discriminados de uma maneira positiva e importante. Aí, nossa, a literatura tem força demais!

+ sobre literatura e gênero: Leia a entrevista com a escritora e ilustradora Aline Valek, que ilustrou o livro As Lendas de Dandara e que participará do bate-papo no Sesc Taubaté.

o que: Bate-papo Literatura e Gênero
quando:

Dia 19/3, às 14h30

onde:

Sesc TaubatÈ | Avenida Engenheiro Milton de Alvarenga Peixoto, 1264 | 12 3634-4000

quanto: Grátis