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Fábio Koifman

Foto: Leila Fugii
Foto: Leila Fugii

Fábio Koifman

Professor fala sobre a história da política externa brasileira e as dificuldades Dos imigrantes durante o período da Segunda Guerra Mundial


Fábio Koifman é professor nos cursos de História e Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), instituição onde também fez doutorado em História. Entre os principais temas que pesquisa, estão a história da política externa brasileira e o controle de entrada de estrangeiros no Brasil. É autor de livros como O Imigrante Ideal: O Ministério da Justiça e a Entrada de Estrangeiros no Brasil (1941-1945) (Civilização Brasileira, 2012) e Quixote nas Trevas: o Embaixador Souza Dantas e os Refugiados do Nazismo (Record, 2002). Nesta entrevista, o historiador fala sobre temas ligados à política migratória brasileira durante a Segunda Guerra Mundial e os preconceitos étnicos, religiosos e culturais envolvidos.

 

Até a década de 1930, a imigração era considerada importante como formação de uma mão de obra no Brasil. Com a Segunda Guerra Mundial, a política migratória muda, e começa-se a tentar restringir a entrada de estrangeiros. O imigrante deixa de ser uma questão econômica para se transformar em questão política?

De modo geral, durante muito tempo, os imigrantes eram um contingente enorme, em termos de porcentagem da população, e não encontravam dificuldade. A imigração de gente branca era bem-vinda. O governo brasileiro patrocinou a vinda de imigrantes italianos, alemães, pagando estadia, navio. Enquanto as elites dirigentes e certos setores da sociedade sempre tiveram certa posição de desconfiança, de modo geral o povo brasileiro sempre foi relativamente acolhedor, por mais que houvesse preconceito contra alguns imigrantes. No Estado Novo [governo do então presidente Getúlio Vargas, que por meio de um golpe de estado em 1937 continuou no poder até 1945], as elites e o governo começaram a ter preocupação com que tipo de imigrante chegava. Aspectos negativos passaram a ser associados genericamente a certos grupos humanos, além de preocupações e discursos de concorrência econômica e até mesmo profissional com o elemento nacional. O Brasil acabou, por conta da instabilidade do mundo naquele período, tornando-se um pouco mais restricionista, preocupado com uma política de branqueamento e também com questões políticas.

 

Quais eram as principais medidas?

Buscava-se evitar que os estrangeiros tivessem o que chamavam de ideias dissolventes, ou seja, pessoas que tivessem uma proximidade com o ideário socialista ou liberal. Havia um preconceito. Mas mesmo o Francisco Campos [ministro da Justiça na época], que possuía certa xenofobia, acabou por permitir a entrada de estrangeiros que atracavam em navios. Isso demonstra que, além de um discurso sobre o branqueamento do Brasil, a questão da imigração servia para angariar poder dentro da cúpula do Estado Novo. Francisco Campos tinha ambições políticas, e Getúlio Vargas, como um bom ditador, fazia com que as pessoas de destaque brigassem entre si. A minha tese é de que a questão da imigração acabou sendo catapultada para a pauta de assuntos como se fosse uma coisa que ocupasse os principais homens do poder, mas o risco real do contingente humano que entrava no país não iria causar nenhum tipo de alteração de rumo.

 

Logo após o fim da escravidão, no século 19, começou a haver uma política de branqueamento da população brasileira. De que forma isso ocorreu?

A escolha do representante consular ou diplomático, desde o final do século 19, era feita entre as famílias mais chiques e educadas da sociedade, porque achavam que o Brasil, como cartão de apresentação, deveria ser branco, com boas maneiras. Essa foi uma preocupação constante, escondendo a herança indígena, fazendo-se representar por essa elite e buscando uma imagem de país desenvolvido, com reformas urbanas em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, que aproximasse essas metrópoles das cidades francesas, britânicas e europeias de modo geral. O negro não se encaixava nesse ideal desenvolvimentista civilizatório considerado o principal modelo. Por preconceito, nada da cultura negra poderia ser associado ao que se buscava espelhar. Interessava o modelo europeu de palácios e construções que aproximassem o Brasil da Europa, e não da África.

 

Falava-se abertamente sobre essa política de branqueamento?

Os ideólogos da política imigratória não usavam o termo branqueamento, mas esse era o objetivo. De modo geral, as elites tinham uma preocupação enorme de desassociar o país da sua formação indígena ou negra. Por exemplo, quando Oliveira Viana falava sobre superioridade de raças [em obras como Raça e Assimilação, de 1932], ele fazia uma valoração entre os diferentes grupos humanos. Quando ele estabelece que alguns são melhores do que outros, mais assimiláveis, com comportamento próprio de nascença mais apropriado, nota-se que o objetivo era esse. Quando acusa os japoneses e os judeus de inassimiláveis, o problema não era só cultural, era também étnico. Tanto é que o governo brasileiro, nesses anos, tinha restrições para a entrada de judeus, mas faziam uma vista mais grossa e facilitavam a entrada de judeus convertidos para o catolicismo.

 

Como acontecia essa distinção entre os judeus que eram bem-vindos e os que eram impedidos de entrar no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial?

Isso não quer dizer que bastava o judeu ser convertido ou se batizar para conseguir um visto, mas, entre os judeus que conseguiram visto para o Brasil, havia um grande contingente que tinha religião católica. Em 1939 e 1940, o Estado Novo também acerta com o Vaticano a emissão de 3 mil vistos para católicos não arianos. O governo Vargas sinaliza que irá conceder visto para 3 mil pessoas que estavam na Europa e eram católicas, mas que os alemães identificavam como judeus porque tinham descendência. Mas, na prática, os controles eram tão arraigados que só conseguiram emitir 800 desses vistos. Um dos que conseguiram visto foi Otto Maria Carpeaux [ensaísta, crítico literário e jornalista austríaco naturalizado brasileiro], que também era judeu, converteu-se e veio com visto emitido na Antuérpia.

 

Por que a conversão era tão importante?

Na verdade, não era só uma questão de conversão. Era um sinal que mostrava para o Estado Novo que a pessoa estava aberta a se miscigenar e assimilar. Quando falavam “inassimilável”, estavam falando de casamento. A preocupação é que o povo brasileiro, com toda a miscigenação, era considerado etnicamente ruim e por isso queriam que as pessoas se casassem com os imigrantes. A assimilação que se buscava nos imigrantes não era questão de sociabilidade, até porque as elites dirigentes tanto de São Paulo quanto do Rio eram compostas de um certo número de famílias que não eram abertas nem ao imigrante italiano.

 

No caso do Getúlio Vargas, você diria que ele era um antissemita?

Getúlio não tinha uma visão positiva dos judeus, mas ele achava que, se não fossem comunistas, não teria problema de convivência. Tanto que, no segundo governo Vargas, houve muita proximidade dele com Samuel Wainer [jornalista e empresário de origem judaica]. Se o Brasil tivesse instalado o antissemitismo, como alguns pensam, esses imigrantes não entrariam no país sob nenhuma condição. Se a matriz ou a raiz fundamental do Estado Novo fosse o antissemitismo, eles não poderiam entrar, mas se permitia a entrada de parte desses imigrantes e os que já estavam aqui não eram perseguidos.

 

Pode-se dizer, então, que a política imigratória brasileira da época da Segunda Guerra não se espelhava na Alemanha nazista, e sim nos americanos?

A política imigratória não tinha nada a ver com a Alemanha, e sim com a política imigratória dos Estados Unidos. A partir de 1920, começa-se a selecionar os imigrantes, com todo um discurso eugenista para justificar a seleção. O governo buscava o que considerava melhores elementos para a formação do país. Então, quando o Francisco Campos e a turma dele vão buscar inspiração para fazer a legislação imigratória do Brasil, não procuram isso na Alemanha. Os referenciais eram todos norte-americanos, dizendo que, se queriam chegar ao nível de desenvolvimento dos Estados Unidos, era preciso fazer isso. A eugenia na qual o Brasil bebeu e que buscou tropicalizar tinha origem norte-americana. Muita gente, quando vai explicar o que aconteceu naqueles anos, coloca na conta do Vargas uma aproximação com o Eixo e diz que tinha um monte de nazistas ou integralistas no governo que eram antissemitas.

 

Como se dava a propagação dessa ideia da miscigenação?

O Estado não chegava a ponto de propor os casamentos, mas esperava-se que as coisas acontecessem naturalmente. Por exemplo, os portugueses não precisavam passar pelo serviço de visto. O visto vinha naturalmente. Nas pesquisas para os livros, entrei em contato com a história de uma senhora que tinha sobrenome judeu, Cohen, e o processo ia para lá e para cá, e no fim das contas ela era portuguesa casada com um britânico, então o Ministério das Relações Exteriores retirou o processo e ela recebeu o visto. Essa facilidade acontecia porque se esperava que os portugueses, como a história do Brasil já demonstrava, chegassem aqui, casassem com não brancos e que o casamento ocorresse naturalmente. Era algo fantasioso, não tinha estudo nenhum sobre isso. Tanto é que o Francisco Campos, quando faz o parecer dele, diz que: naquele momento, no mundo, todas as imigrações eram ruins. Segundo ele, os portugueses eram ignorantes, fixavam-se nas cidades, não contribuíam para nada, muitos voltavam para Portugal com dinheiro e não eram diferentes dos judeus. Ele advogava que se deveria restringir totalmente a imigração para o Brasil naquele momento de pré-guerra, porque não existiam bons imigrantes vindo para o Brasil.

 

E qual a visão de Getúlio Vargas sobre isso?

Vargas aceitou várias das opiniões do Francisco Campos, mas esta ele não aceitou e quis que continuassem entrando portugueses. Eles queriam que entrasse só quem iria contribuir em termos de grana. Pessoalmente, Vargas quis que entrassem portugueses. Espanhóis não. Havia um preconceito em relação à guerra civil espanhola e às ideias dissolventes, como chamavam as ideias comunistas, anarquistas etc. Tudo o que valia para os outros na política imigratória não valia para os portugueses, exceto a questão eugênica de que havia um controle para não entrarem pessoas com deficiência.

 

A questão de solidariedade humana, portanto, não existia. O que havia era uma visão econômica?

Sim, havia uma visão econômica tecnicista. Não queriam trazer gente que pudesse produzir ônus para o Estado por ter alguma deficiência física, ou que deixassem descendência com deficiências físicas e que, por sua vez, iriam trazer mais ônus para o Estado. Não havia uma questão humanitária, de modo algum. Houve um caso de uma família alemã cujo filho havia nascido com as mãos mais curtas, e ele foi barrado no porto em 1941. Foi uma comoção regional, no Rio, e no fim liberaram excepcionalmente o garoto porque ficaram com pena.

 

Como eram os jornais da época em relação a essa questão?

Na época, todos os jornais eram controlados pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Os jornais Amanhã e A Noite tinham sido encampados pelo Vargas e eram quase jornais oficiais, chapa branca, e havia também muitas notas que eram iguais em todos os jornais, então você sabia que eram notas vindas do DIP. Claro que uma vez ou outra acabava saindo algo que não era para sair. Não havia apoio aos refugiados estrangeiros publicamente. Até porque as comunidades, principalmente a judaica, eram mal organizadas. As próprias comunidades internacionais diziam que não havia uma liderança que pudesse negociar com Vargas.

 

A partir das pesquisas e materiais reunidos em seu livro Quixote nas Trevas: o Embaixador Souza Dantas e os Refugiados do Nazismo, você catapultou para a história o Souza Dantas, embaixador brasileiro que salvou centenas de refugiados do nazismo. Qual o papel dele naquele momento?

Ele salvou em torno de mil pessoas, mas o próprio Souza Dantas não saberia dizer esse número exato. Eu consegui levantar em torno de 500. A ideia é associar o nome do Souza Dantas como embaixador a um momento de dificuldade – com gente insensível ou que estava ignorando as pessoas –, a alguém que tinha sensibilidade à ajuda humanitária. Ele merece esse reconhecimento. Ele era tão desprendido de certas vaidades que escondeu isso e não falava sobre esse assunto com ninguém. Ele achava que tinha feito o que deveria ter sido feito, e não guardava arquivos nem nada, tanto que ficou esquecido esse tempo todo. É muito fácil você ser bom quando não tem nenhuma adversidade. Quando a situação é adversa, você arriscar carreira e tudo sem nenhum interesse é que é relevante.

 

No livro O Imigrante Ideal: O Ministério da Justiça e a Entrada de Estrangeiros no Brasil (1941-1945), você coloca em foco um personagem que não costuma aparecer na nossa historiografia, o Ernani Reis, que trabalhou no Serviço de Visto na época e negou muitos pareceres. Qual foi o papel dele?

Era de uma família muito humilde, e nos anos 1920 chegou a fazer concurso para oficial de justiça, passou em outros concursos e foi preterido por gente que tinha pistolão. Ele era um técnico, e o que se esperava dele era que criasse regras e controles que seguissem o que o Francisco Campos e todos a partir daí queriam que acontecesse, ou seja, que o estrangeiro fosse devidamente controlado no Brasil, sem ficar clandestino, mas também evitar que entrasse alguém com quem eles não concordavam. Você não pode condená-lo por coisas que ele não sabia. Ele era a pessoa que tinha características para dar o respaldo jurídico e técnico que aquele grupo de pessoas queria. Você não podia estabelecer a legislação de controle com base em algo que não fosse formalmente organizado. A cabeça dessas pessoas todas era positivista, e acreditavam que ele era a pessoa correta para dar esse respaldo.

 

No momento em que se começa a selecionar os pedidos de visto, muitos intelectuais e escritores foram rejeitados? Você se lembra de algum caso?

Um dos mais famosos foi o Claude Lévi-Strauss [antropólogo, professor e filósofo francês], que já havia trabalhado na Universidade de São Paulo entre 1934 e 1938, além de outros acadêmicos com currículo enorme. Os motivos eram os mais variados, mas às vezes a pessoa responsável por dar o visto achava que se tratava de um judeu ou algo assim e negava.

 

Apesar de haver uma seleção de quem deveria entrar no Brasil, não se permitia preconceito após a imigração?

O Ernani Reis dizia: “não nos interessa importar esses preconceitos”. Dizia isso o tempo todo. Os jornais também diziam isso, que não deveríamos importar essa intolerância. Primeiro, porque não era da índole brasileira, e também porque havia a ideia de não reproduzir preconceitos, já que isso dificultava os casamentos e a integração desses imigrantes.