Postado em 09/04/2018
Beth Néspoli narra algumas lembranças vividas na Unidade provisória do Sesc Avenida Paulista
Eram expressões de perplexidade as que eu via no rosto de amigos ao anunciar que passaria a morar na Avenida Paulista, em meados de 2000. Parece um tempo próximo, mas essa via mudou tão radicalmente em apenas uma década que chega a ser difícil dimensionar a diferença entre o perfil cultural de hoje e o modo capital-trabalho no qual vibrava no ano de 2006, o mesmo em que o Sesc Avenida Paulista passou a abrigar teatro em suas salas.
Sim, já estavam lá há muito tempo Masp, Instituto Itaú Cultural, Teatro Popular do Sesi, a Casa das Rosas e, também, prédios residenciais, mas, ainda assim, no imaginário coletivo, a avenida pulsava no ritmo da contabilidade dos lucros da indústria e das grandes redes bancárias naqueles prédios de fachada de vidro e movimentados helipontos no topo. À noite, quando torres e luminosos se acendiam, contraditoriamente, uma atmosfera de fim de expediente tomava conta dessa parte da cidade.
Esse era o momento em que o espectador teatral entrava no Sesc Avenida Paulista, àquela época um edifício impregnado de estranha indefinição. Claramente não fora construído para abrigar arte. Seus corredores e salas de divisórias irregulares delimitavam espaços ora mínimos, ora amplos, que remetiam às salas de escritórios. Esvaziadas, porém, dessa função, produziam uma espécie de fantasmagoria da produtividade que atuava sobre a percepção, assim como a paisagem urbana que atravessava os vidros da fachada.
Tal porosidade podia ser negada ou acentuada de acordo com a proposição de cada obra. Pessoalmente, lembro-me de uma experiência que não teria vivido sem a incidência desses elementos sobre a recepção. Ocorreu em setembro de 2007, quando assistia à Canção de Mim Mesmo, trabalho vindo do Rio de Janeiro, dirigido por Alexandre Mello, uma costura de poemas diversos. Na noite em que eu estava na plateia, o público era integrado por cerca de 20 pessoas sentadas em círculo. Interativo, seria rito quase tribal, não fosse o uso da câmera a captar imagens na avenida que, projetadas em tempo real na sala, transformavam corpos, asfalto e concreto em formas abstratas sob a distorção de traços luminosos em prata e em vermelho de faróis e lanternas dos carros em movimento.
Cerca de vinte minutos depois de iniciada a sessão, um jovem espectador convidado ao centro do círculo para ouvir um poema é beijado por um ator. Visivelmente constrangido, volta ao seu lugar. Logo depois outra pessoa do público, em traje social, diz algo como “não paguei para ver isso” e sai em direção aos elevadores. Dois segundos de hesitação e um ator o segue em atitude agressiva. Num impulso, levanto e me ponho diante dele: “Ele não pode ir embora assim”, argumenta o ator. “Cabe a você ser tolerante, você é o artista”, digo. Outra pessoa do público se volta contra mim: “A mim a homofobia dele incomoda, a você não?”. E eu: “Sim, mas e aí? Vai bater nele?”
Talvez para evitar um embate na plateia, pensei eu na ocasião, o ator dá prosseguimento à sessão. E logo o “jovem beijado” ganha o centro da cena dizendo um texto. Mal termina, o rapaz que tinha ido embora volta com um poema-discurso. Só o sujeito que falara sobre homofobia era realmente um espectador. Senti-me muito tola.
Por que destacar esse fragmento de memória? O “engano” só ocorreu porque naquele teatro a presença de um espectador, digamos, desavisado e conservador não seria improvável. Esse é o ponto. Ao final, houve uma conversa, que se deu espontaneamente, sobre o acontecido envolvendo atores e público, e foram variados os pontos de vista. A lembrança dessa experiência faz pensar que, nesses tempos de sociedade dividida e ódios intensos, o teatro pode ser o território, mesmo que provisório, no qual os diferentes con-versam. Precisaria ser. E o Sesc é uma instituição capaz de reunir diversidade social e cultural em uma sala de espetáculo.
Neste texto pensado para celebrar a reabertura da unidade da Paulista teria sido possível escavar na memória muitos espetáculos ali acompanhados, poéticas que tiraram proveito da liberdade oferecida por outra característica da arquitetura: sua maleabilidade. Com os vidros vedados à luz exterior, o espaço tornava-se claustrofóbico, por exemplo, em Zona de Guerra, da Cia. Triptal, dirigido por André Garolli, e propiciava diferentes nichos de atuação às Rainha (s) Isabel Teixeira e Georgette Fadel. Na montagem em penumbra do Círculo de Giz Caucasiano, da Cia. do Latão, um telão reproduzia um debate ocorrido num assentamento do MST e atualizava a peça de Bertolt Brecht, assim como a escuridão absoluta valorizava a cena de Leitor por Horas, de Christiane Jatahy.
Não por acaso, porém, a abordagem recaiu sobre a relação com o público. O Brasil é outro. A avenida das manifestações extremas é outra. Fechada ao tráfego aos domingos, mais do que nunca atrai a multiplicidade da metrópole. É torcer para que o Sesc Avenida Paulista, em sua nova configuração, contribua e ajude a curar a cidade partida.
*Beth Néspoli é jornalista, crítica e doutora em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP)