Postado em 22/10/2004
Emoção em estado puro
Maior evento do gênero na América Latina, a Bienal Naïfs do Brasil 2004 põe em destaque uma produção que ainda sofre preconceito por não ser vista como ‘arte culta’
Pergunta clássica: como se definem os diferentes tipos de pintura? Entre os critérios tradicionais estão a escola a que um artista pertence, a época em que viveu ou mesmo a cultura do país em que concebeu sua produção. O espanhol Pablo Picasso, por exemplo, é um dos maiores expoentes da pintura cubista, escola que surge em Paris no início do século 20. Já seu conterrâneo, o pintor Salvador Dalí, é obrigatório quando se fala em surrealismo, movimento que chegou às artes plásticas por volta de 1920. Muitos outros artistas que cravaram marcas eternas na história da arte vêm à mente em instantes se soubermos a escola que o “acolheu”. Vale lembrar, no entanto, que esse tipo de avaliação alia o talento e veia artística ao conhecimento erudito, adquirido nas academias, liceus, universidades ou na efervescência dos movimentos artísticos. Nesse contexto, qual seria o papel da arte produzida a partir da pura e simples percepção do homem, ingênua, como diriam alguns? O assunto é polêmico e a intenção não é alimentar discussões. Mas alguns conceitos podem ajudar na empreitada. Naïf, ingênuo em francês, refere-se à produção também chamada espontânea ou primitiva. Segundo explica o francês Lucien Finkelstein, fundador do Museu Internacional de Arte Naïf do Brasil (Mian), localizado no Rio de Janeiro, em seu livro Arte Naïf: na Origem das Origens, o termo nasceu com a própria vontade do homem de se expressar. “Esse tipo de arte está presente na origem mesma da arte”, escreve. “Pode-se dizer que ela nasceu com o primeiro ser humano que se arriscou a deixar seus traços nas grutas e cavernas pré-históricas. Os cervos, bisões e mamutes desenhados nas grutas de Lascaux, na França, e na de Altamira, na Espanha, são emocionantes. Lá está a arte em estado puro, o homem transcendendo o biológico para criar a cultura, inventar o social, a comunicação”, completa. Também de acordo com Finkelstein, é justamente dessa emoção “em estado puro” que brotam, ainda hoje, os artistas que podem vir a ser considerados representantes do estilo, e é esse o maior valor. “Suas telas podem ser também as tábuas de barracos”, continua Finkelstein. “O couro de lhama esticado em tambores festivos, o papel tirado da casca de árvores, o pano, o pergaminho ou o vidro. Como os pré-históricos, eles buscam as técnicas, as cores, o modo de fazer dentro de si mesmos.”
Bienal ingênua?
Trata-se, no entanto, de uma estética menos badalada pelos críticos e acadêmicos, e até mesmo por alguns artistas plásticos. “Existe um certo pé atrás em relação a essa espontaneidade, a essa maneira simplória de retratar as pinturas”, explica Jacqueline Finkelstein, diretora do Mian e filha de Lucien. Mas, quando o assunto é arte, a máxima do dramaturgo Nelson Rodrigues que dizia que toda unanimidade é burra é particularmente eficaz. Países como França, Itália, Iugoslávia, Haiti e Brasil têm uma grande produção naïf. Mesmo aqui no Brasil, o reconhecimento ganhou espaço com um exemplo concreto e bem-sucedido, uma bienal que, além de expor os trabalhos, tem a função de descobrir novos talentos. A Bienal Naïfs do Brasil 2004, realizada pelo Sesc Piracicaba desde 1992, chega neste ano a sua sétima edição. O evento – que segue até 12 de dezembro – continua como o maior do gênero na América Latina, fiel ao propósito de valorizar os artistas e suas obras. Entre as novidades deste ano está a mudança na curadoria. Depois de seis edições sob a responsabilidade do técnico da unidade de Piracicaba Antonio do Nascimento, hoje aposentado, a função foi assumida pelo jornalista e crítico de arte Paulo Klein, tendo como curadores adjuntos Osmar Pisani, Zé Tarcísio e Janete Costa. “Esta Bienal quis encontrar a ingenuidade do pensamento mestiço e mostrá-la em forma de arte”, explica o atual curador, que tem no currículo a exposição Pop Brasil – A Arte Popular e o Popular na Arte, realizada em 2002 no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo. “É uma mostra extremamente importante porque dá espaço para uma produção que é excluída do contexto da arte contemporânea.”
O evento deste ano tem como tema da mostra competitiva o Pensamento Mestiço. Compõem a exposição 106 trabalhos selecionados entre os 849 enviados por 283 artistas de todo o Brasil. Além dela, foi idealizada uma mostra especial chamada Mistura Fina – A Arte da Necessidade, com obras de grandes artistas da escola naïf (veja boxe Nossos naïfs). Outra grande novidade é a inclusão de esculturas. “Arte naïf não é necessariamente pintura”, continua Klein. “Pode ser escultura, cerâmica... Sempre que há um elemento criativo que não se caracteriza pela produção em série e tem o toque de um artista, eu defendo que passa do artesanato para obra de arte. Como se exclui do meio das artes cultas, chama-se de arte popular.”
Está lá nas origens
Se a arte naïf é concebida sem regras e técnicas fixas e compreende expressões que ganham vida somente a partir da emoção do artista, essa definição, quando levada ao extremo, toca, de fato, nas mais remotas figuras pintadas pelo homem em cavernas. Dando um salto das cavernas para o século 19, chegamos ao primeiro pintor naïf reconhecido na modernidade européia, o francês Henri Rousseau (1844-1910), um funcionário da alfândega cujas obras foram admiradas por pintores como Picasso, Matisse e Kandinski.
No Brasil, porém, o movimento aparece bem antes, ainda no século 17. O primeiro artista a despontar foi Leandro Joaquim, um carioca que retratava o cotidiano e as belas paisagens do Rio de Janeiro. Suas obras estão hoje no Museu Nacional de Belas Artes e no Museu Histórico Nacional. “Apesar de todos os esforços de submissão aos modelos europeus de arte, com o passar dos séculos, confirmou-se a originalidade e a autenticidade da nossa pintura naïf”, escreveu Lucien Finkelstein. “São essas as qualidades que fazem dela o que existe de mais autêntico na arte brasileira e a tornam nossa porta-bandeira. No exterior, ela é louvada, mas o descrédito dos brasileiros (...) ainda é grande.”
Não faltam passagens marcantes de nossa produção lá fora. O único pintor brasileiro a receber menção honrosa na categoria de Pintura da Bienal de Veneza foi Chico da Silva, em 1966, um autêntico naïf. Outros exemplos: durante a conferência Eco-92, a carioca Lia Mittarakis teve sua paisagem do Rio de Janeiro impressa na capa da revista Time, e a paulista Aparecida Azedo estampou a capa do catálogo da Trienal de Arte Naïf, de 1994, na Eslovênia, com um de seus quadros. Como se vê, os artistas estão fazendo sua parte.
Nossos naïfs - Conheça alguns dos mais consagrados pintores naïfs brasileiros com obras a ser conferidas na mostra Mistura Fina, pertencente à 7ª Bienal Naïfs do Brasil, no Sesc Piracicaba
José Antonio da Silva (1909-1996) – Trabalhador rural do interior paulista, consagra-se como artista plástico em meados da década de 40. Em 1956, cria polêmica ao pintar uma série de quadros cujo tema era o enforcamento do júri da 4ª Bienal Internacional de São Paulo, em protesto à sua exclusão do evento. Participa da Bienal de São Paulo, em 1987, e da Bienal de Veneza, em 1952 e 1966. Permanece no campo durante toda a sua vida, temática que está sempre em suas pinturas. Além das artes plásticas, dedica-se também à literatura e à música. Em 1980, é fundado o Museu de Arte Primitiva José Antonio da Silva, em Assis, interior de São Paulo.
Cardosinho (1861-1947) – Nasce em Coimbra, Portugal, e chega ao Brasil aos 3 anos de idade, depois de perder toda a família em um naufrágio. Torna-se padre e, até os 70 anos, leciona latim e francês e trabalha como inspetor escolar. Começa a pintar como hobby, quando se aposenta. Pinta cerca de 600 quadros e chega a expor com Candido Portinari. Uma de suas obras é adquirida pela badalada Tate Gallery, de Londres.
Ranchinho (1923-2003) – Portador de doença mental, cresce desamparado. Para se proteger, refugia-se em ranchos próximos às estradas, daí o apelido. Na década de 70 começa a pintar e já em 1971 consegue menção honrosa na Exposição de Artes Plásticas de Assis, cidade do interior de São Paulo onde cresceu. Possui obras no Museu de Arte Moderna e na Pinacoteca do Estado, ambos na capital paulista.
Heitor dos Prazeres (1898-1966) – O primeiro contato com as artes foi pela música. Foi compositor, instrumentista e letrista – sendo parceiro de Noel Rosa na marchinha Pierrô Apaixonado. Começou a pintar em 1937, sem compromisso. Mas em 1951 participou da 1ª Bienal Internacional de São Paulo, e recebeu um prêmio do crítico inglês Herbert Read. Em 1959, realizou a primeira exposição individual, na Galeria Debret, em Paris. Sobre ele, escreveu Rubem Braga: “Ele não faz pintura do partido-alto, para deleite dos ricos, nem traz para a tela as cenas de macumba e candomblés que freqüentou. Apenas conta essa vida solta e heróica de cavaquinho na mão, cachaça e mulata, sua vida de seresteiro e trovador de muitas conquistas”.