Postado em 01/11/1998
Como se leu acima, é mais fácil conceituar arte naïf utilizando negativas - dizer o que o estilo não é. Porém, embora as definições apareçam de maneira pouco precisa (ou muito abrangente) no discurso de quem a produz e aprecia, é uma arte aprendida sozinha, sem escolas e que flui de forma espontânea. A melhor explicação fica por conta das imagens que ilustram esta matéria: elas dizem tudo.
Todos os elementos - as multidões, as festas, a tristeza e a alegria de um povo, temas recorrentes em quadros deste estilo - juntam-se em um mesmo espaço há oito anos. Já na quarta edição, a Bienal Naïfs do Brasil, hoje com mais de uma centena dessas obras, agita a cidade de Piracicaba, no interior de São Paulo, precisamente na área de convivência da unidade do Sesc na cidade. "Eu idealizei o trabalho em 1986", explica Antonio do Nascimento, gerente-adjunto do Sesc Piracicaba. "Era uma mostra pequena, cerca de quarenta trabalhos, que acontecia dentro de um evento chamado Cenas da Cultura Caipira". A idéia da mostra em sua primeira versão nasceu das particularidades entre a proposta da arte naïf e a própria cultura da cidade. "Nós temos muitas festas típicas, como a Festa do Divino e outras", conta Nascimento. "Há ligação até com o jeito arrastado do piracicabano falar", brinca. Para a cerimônia de abertura, o evento contou com a Banda de Pífanos de Caruaru. Na solenidade ainda estavam presentes a Secretária de Cultura de Piracicaba, Aparecida Abe, e o Diretor Regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, que entregou o prêmio de destaque ao pintor Francisco B. Ramos e um prêmio especial a Iracema Arditi, artista naïf homenageada com uma sala especial. Miranda ressaltou a importância do evento, da abertura que o Sesc proporcionou ao movimento naïf e elogiou o número e a qualidade das obras expostas.
Um Estilo Simples
Segundo os artistas e apreciadores da arte ingênua, seus atrativos aparecem no modo descompromissado e "caipira" de ver os lugares e a gente que mora neles. Caipira, evidente, não no sentido pejorativo que remeta a atraso e ignorância, mas sim na acepção que diga respeito às raízes e à fidelidade de nunca esquecer o lugar onde se nasce e se cresce. Caipira que não vem do interior do estado ou do país em termos geográficos simplesmente, mas do interior de quem pinta. Lélia Coelho Frota, antropóloga e especialista em cultura popular, descreve o primitivo como sendo "proveniente em geral de estratos populares, com uma visão altamente pessoal através da cultura que recebeu (o primitivo), mas deslocando-se desta. Difere-se também do artista erudito por não ter um conceito intelectual da arte e da natureza, formadas por valores elitistas da civilização ocidental".
Como um filtro da teoria, as ruas ainda calmas e ensolaradas de uma cidade do interior parecem o cenário perfeito para o desfile de tamanha singeleza. "Recebemos mais obras que na edição passada", retoma Nascimento. "Da última vez foram 392 obras. Nesta edição, 480, das quais o júri selecionou 153." O júri composto por críticos e professores de arte optou por formar uma mostra em "estado cru, e não cozido", como colocou o professor de História da Arte, Romildo Sant'Anna, um dos três jurados convidados. "Vivemos num mundo tão automatizado e fragmentado que esta Bienal nos colocará de frente com os signos e símbolos de nosso idêntico", conclui.
Momentos de Criação
A exposição acontece como atração principal de um evento que reúne oficinas de arte, teatro adulto e infantil, espetáculos de danças folclóricas da Paraíba e do Espírito Santo, shows musicais, exibição de documentários e palestras. Toda essa programação está voltada para a cultura popular. No ateliê aberto de pintura Momentos de Criação, quatro artistas de renome e com experiência em arte primitiva proporcionam um contato direto entre o público e o artista durante a criação de uma obra de arte. "A didática é simples", adianta Dirceu Carvalho, pintor do interior de São Paulo que há 31 anos se dedica a expressar seus sentimentos por meio da arte ingênua. "Começamos como qualquer artista: de cima para baixo, respondendo a eventuais dúvidas das pessoas que estiverem acompanhando", explica de maneira simples, no melhor estilo naïf.
Dirceu foi levado ao universo primitivo pelas mãos de Edgar Calhado, considerado um dos grandes nomes do naïf brasileiro. Desde então nunca mais se curou dessa paixão. "Eu achei que entrar para uma escola iria me tornar um artista, foi o Edgar quem me ensinou que o primitivo também era arte, era a pintura brasileira", recorda. O artista não se incomoda com as associações negativas que alguns possam fazer ao termo ingênuo ou primitivo, pois para ele tratam-se de palavras "universais". Quanto às críticas, simplesmente não vê problemas: "Alguns gostam, outros não. O importante é que eu gosto, não só faço como também consumo o primitivo", enfatiza. Edilson de Araújo, outro artista participante do Momentos de Criação, pinta há dezoito anos e em seus quadros apresenta sua terra, Ouro Branco, que fica no Rio Grande do Norte - um Nordeste que muitos não conhecem. "Comecei pintando a seca, a vegetação, a caatinga e seus animais e pássaros. Mas quando chove aquilo fica lindo, de um verde muito fértil", explica Edilson. "Hoje, porém, eu estou pintando coisas mais urbanas, embora já tenha pintado festas juninas, casamentos caipiras, laranjas e cajus." Para Edilson, participar da Bienal Naïfs de Piracicaba e do Momentos de Criação tem um significado muito especial: é sua primeira aparição depois de cinco anos longe dos ambientes de arte, devido a problemas de saúde. "Estou nervoso. Não inseguro, nervoso. Dá aquela tensão de artista, mas acho que isso é natural."
A exposição conta com uma sala especial dedicada à pintora naïf Iracema Arditi, que compareceu para transmitir um pouco de sua experiência de 47 anos em arte primitiva. Entre outras coisas, Iracema explicou que arte naïf não se aprende, "se é ou não", como radicalizou. Foi humilde ao revelar a complexidade de uma arte considerada de simples execução e ao declarar que, por mais que se fale a respeito do primitivo, sempre haverá perguntas, "perguntas que eu mesmo ainda me faço", admitiu. Iracema teve participação efetiva na evolução da arte naïf do Brasil por participar de salões internacionais, como o de Lyon, na França, e por fundar o Museu do Sol, o primeiro espaço dedicado ao estilo em 1972, posteriormente doando seu acervo à cidade de Penápolis, interior de São Paulo, onde se encontra até hoje. Autodidata, como a grande maioria dos artistas naïfs, Iracema encantou os presentes com seu jeito natural e espontâneo, temperamento que parece comum entre esses pintores, e atribuiu o valor de uma obra à assinatura de seu criador, à sua história e à sua tradição. "A arte naïf está no recado que Deus me manda através do pincel", definiu.
O Mercado Naïf no Brasil
Tão confuso quanto definir a fórmula de uma obra primitiva é se estabelecer no mercado naïf no Brasil. Antonio Nascimento considera-o pequeno e árduo. "Em São Paulo existem pouquíssimas galerias que trabalham com esse tipo de arte", lamenta. "As casas de arte mais conceituadas não trabalham com naïf, a não ser que o artista já tenha um nome e currículo consideráveis". Antônio explica que, na maioria dos casos que têm espaço em locais de exposição convencionais, o artista projetou-se por conta própria, fazendo com que os galeristas fossem atrás de seu trabalho. "Os primitivos acabam expondo muito em coletivas ou em espaços alternativos como praças e feiras", analisa. Um desses exemplos é o próprio Edilson Araújo. Em dezoito anos de carreira expondo na Praça da República, Edilson calcula ter vendido toda sua produção, que contabiliza cerca de três mil obras. "Eu tive sorte na vida, não é fácil viver de pintura no Brasil", confessa. "Os dois filhos que tenho, criei com o dinheiro de quando expunha na Praça da República." Edilson aponta a praça como a "melhor galeria do Brasil" para arte naïf e lamenta que a feira que sustentou muitos artistas tenha acabado. Sua maior reclamação sobre a situação do artista primitivo e do mercado da obra naïf no Brasil é que, independentemente de casos isolados, o movimento não é valorizado. "No exterior, a arte naïf é muito mais valorizada que aqui", comenta Nascimento. "Os principais compradores de arte naïf no Brasil são estrangeiros que moram aqui." A prova disso é que Edilson Araújo se diverte ao lembrar de um cliente nipobrasileiro que ainda no avião ansiava em comprar de seu "amigo da República", e que Dirceu Carvalho tem documentos que comprovam a existência de suas obras no acervo do Palácio de Buckingham, na coleção pessoal do Príncipe Charles. Mas o movimento parece estar tomando rumos mais tranquilos quando se pensa nas quase quinhentas pessoas por dia que têm visitado a exposição, interessadas em descobrir, além da arte, seu próprio país.