MARIA
SYLVIA CARVALHO FRANCO
A
cientista social analisa o Brasil, seus governantes e a elite intelectual
do país
Maria Sylvia
Carvalho Franco formou-se em ciências
sociais pela Universidade de São Paulo (USP) em 1952 e foi colega
de turma do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Doutorou-se em
1964, sob a orientação do sociólogo Florestan Fernandes,
com a tese "Homens Livres na Velha Civilização do
Café", considerada por um júri de intelectuais um
dos 20 ensaios mais significativos da história do país.
Maria Sylvia dirigiu o Departamento de Filosofia da Universidade de
São Paulo (USP) nos anos mais repressivos da ditadura. Tornou-se
livre-docente em 1970 e professora titular em 1989. Aposentada na USP,
transferiu-se para o Departamento de Filosofia da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), do qual se tornou professora titular em 1999.
Até março foi colunista do jornal Folha de S.Paulo, do
qual hoje é colaboradora. A entrevistada deste mês da Revista
E falou sobre a elite intelectual no Brasil, sobre o papel das universidades
e sobre a relação entre o voto e a maturidade política
do brasileiro: "É a repetição mecânica
de um ato que vem depois de as cabeças serem infestadas pela
propaganda". A seguir, os melhores trechos.
A universidade atende à expectativa da sociedade com relação
a ela - ou seja, ela auxilia o desenvolvimento tanto técnico
quanto das idéias?
A Universidade de São Paulo tem um padrão: o teor de herança
francesa, de ordem liberal e positivista trazido por aqueles célebres
sociólogos, filósofos e cientistas políticos franceses.
Desde Bastide [Roger Bastide, 1898-1974, sociólogo francês],
que tem uma carga positivista enorme, até os que seguem a linha
de Durkheim [Émile Durkheim, 1858-1917, considerado um dos pais
da sociologia moderna]. E essa herança ficou com o peso de uma
tradição que é fortemente calcada na pesquisa -
inclusive tecnológica. Atrás dela está a Unesp
[Universidade Estadual Paulista] com outro enfoque, mas sempre na mesma
linha. E a Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], que se diferenciou
um pouco, mas que também continua com uma orientação.
Veja que na França há o CNRS [Centre National de la Recherche
Scientifique - Centro Nacional de Pesquisa Científica, numa tradução
literal], e aqui temos o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico], que tem mais ou menos as mesmas
funções do CNRS. Ou seja, temos os centros de estudo,
que são centros de pesquisa. Além disso, há também
as escolas especializadas muito tradicionais, como a Faculdade de Agronomia
de Piracicaba [da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da
USP]. Enfim, você tem escolas mais especializadas de acordo com
o desenvolvimento que ocorreu no país. Isso já vem como
projeto de um grupo que, em parte, seguia de forma explícita
o modelo republicano, liberal, e que lutava sempre contra a tendência
positivista do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, que é de
uma centralização muito maior. Essa centralização
acabou ganhando, porque o nosso governo central congrega uma soma de
poderes muito grande.
Você acredita
que esse modelo de pesquisa da universidade esteja em uma encruzilhada,
diante das demandas sociais, que muitos acham necessário que
sejam incorporadas por lá? O que vai ser daqui para a frente?
Eu acho que está tudo muito mal aparado. Existe mesmo essa exigência
no que diz respeito ao trabalho tecnológico. Mas acho que a universidade
não serve só para a tecnologia, porque não há
país no mundo que possa sobreviver se não tiver uma reflexão
sobre si mesmo, não há país que viva só
de tecnologia. Certa vez eu estava pensando nisso. Por que os Estados
Unidos têm uma capacidade crítica que você não
encontra aqui? São um país centralizado também.
São um país que tem o Bush com um aparato ideológico
fortíssimo, um projeto claro de poder internacional - de poder
para um determinado grupo, o do petróleo. Lá existe essa
gente que lida com política internacional e que se instalou no
Pentágono, botando a CIA para fora e o FBI à margem. Eles
estão mentindo para poder declarar uma guerra do interesse deles.
Ou seja, um país desse tipo, mas com um povo que vota contra,
que expõe a mentira e renova o Congresso. Um povo com tudo que
tem de consumismo, de repetição, que está morrendo
à toa porque os governantes estão fazendo política
em benefício próprio, e eles votam contra. Você
não tem isso aqui.
Você acha
que somos mais contemporizadores ou tolerantes?
Somos mais malformados. Os Estados Unidos têm uma consciência
crítica mais aguçada. Existe uma capacidade de crítica
no cinema, por exemplo. Eles sabem denunciar, tudo isso junto com o
entretenimento. Veja esse [O Segredo de] Brokeback Mountain, a história
de dois caubóis homossexuais que não é a história
de dois homossexuais. É um retrato mais profundo da gente mais
pobre, sem perspectiva, que tem um emprego que é uma droga. Os
dois rapazes vão para aquele lugar para cuidar de ovelhas, um
emprego péssimo. A vida sexual é péssima também.
Eles se encontram e têm uma chance de vida amorosa, mas destroem
isso em função do preconceito que carregam. Casam-se de
um jeito desastroso, o rapaz que é mais aberto e mais simpático
se casa com uma família que é um horror, que vai ficando
cada vez mais rica e pior. O outro se casa mal também e tem uma
personalidade que ficou muito enrustida, amarga. Enfim, é um
filme com uma crítica feroz ao estilo de vida americano lá
do Texas. É uma capacidade crítica muito grande e muito
fina.
E por que você
acha que não temos essa crítica aqui? Ou nós tínhamos
e a perdemos?
Nunca tivemos. É meio velha essa interpretação
- que é do Caio Prado Júnior [1907-1990, historiador,
geógrafo e escritor] - de que aqui nós somos a colônia
de postos comerciais onde se despejou uma porção de gente
desinteressada e de bandidos. E lá [nos Estados Unidos] não.
Em parte ele tinha razão, mas acho que a diferença está
no projeto colonial dos dois lugares. Quem é que foi para lá?
Harvard é do século 16, formada por um grupo de puritanos.
Era gente que estava estudando grego, latim, Platão e Aristóteles.
E nós estávamos fazendo o que aqui? Não tínhamos
um éthos [conjunto de costumes e hábitos fundamentais,
no âmbito do comportamento e da cultura, que vão caracterizar
determinada coletividade, época ou região], uma cultura
de pensamento, de reflexão, de crítica, de imposição
da própria vontade política aqui no Brasil. O que existia
era uma feroz repressão colonial. Para escrever meus artigos
na Folha [de S.Paulo], às vezes levanto uma grande quantidade
de material. Nessas pesquisas, deparei com duas datas engraçadíssimas:
1789, época da Revolução Francesa e que aqui teve
a Inconfidência Mineira; e 1848, quando ocorreu também
uma série de revoluções na Europa, e aqui teve
a Praieira, em Pernambuco. Duas datas realmente simbólicas de
revolução mundial. Mas aqui, essa gente lia as mesmas
coisas, tinha os mesmos ideais, buscava saídas importantes e
foi simplesmente esmagada. Entre essas duas datas você tem inúmeras
revoltas, eu contei dez, e todas esmagadas pelo governo, pelo poder
central. Seja na época de dom João [1767- 1826, rei de
Portugal], seja depois, no Império. Enfim, o que o Brasil não
tem é isso: um éthos, a capacidade de formar gente capaz
de refletir sobre a própria existência, sobre o próprio
país.
E a República
não conseguiu sanar isso?
Não, foram os liberais que realmente fizeram a República.
A primeira Constituição foi feita por Rui Barbosa [1849-1923,
político, diplomata e jurista], mas o peso do positivismo foi
enorme. E fez este país centralizado.
Dos anos de 1930
a 1950 falava-se muito de um "projeto Brasil". Houve tentativas
de implantá-lo, mas em parte foi considerado subversivo, esquerdista,
e não saiu. Hoje a nação se vê na falta de
perspectiva sobre que país é esse. Por que essa incapacidade
do Brasil de pensar em si?
Existiu quem tenha pensado. Você tem aí o Gilberto Freyre
[1900-1987, sociólogo, antropólogo e escritor], que tem
sua teoria sobre o Brasil, mas sempre com muitos pontos de vista unilaterais
e "ideologizados". Não é dizer que não
tenha havido intelectuais que tenham pensado no Brasil. É que,
se você não consegue ter esse processo de reprodução,
a coisa não muda. Você tem lá o Gilberto Freyre
que pensou do jeito dele e ficou nisso. Existem os seguidores dele,
e outros que o criticam. Mas o que você não tem é
um processo de reprodução da capacidade de pensar para
formar uma ética mesmo. Você não chega nisso.
E por que não?
Eu acho que é falta de educação no sentido completo
da palavra. Usei o exemplo dos Estados Unidos porque são um país
que começou, mais ou menos, na mesma época que o Brasil.
Você não pode pensar na Inglaterra ou na França
porque eles têm um peso enorme de tradição. Agora,
um país como os Estados Unidos ficou dono do mundo - e isso nem
é bom -, mas tem ao mesmo tempo esse volume de gente que é
capaz de defender suas posições, de brigar, de discutir.
Uma coisa boa da minha coluna da Folha é que entrava em contato
com as pessoas, dos mais loucos até os mais ponderados. Quando
me escreviam dizendo: "Eu não entendi direito, mas o que
entendi deu para ver que é um assunto sério sobre o qual
quero saber mais. A senhora, por favor, me indique as fontes que usou,
os livros que eu poderia ler", só isso já valia a
pena. Tem gente que faz isso. Isso é uma coisa é gratificante
porque dá um parâmetro de quanto um intelectual pode fazer
uma intervenção pública mais ampla.
Você
acha que a nossa elite intelectual faz uma coisa apenas corporativa,
no sentido de manter seus privilégios?
Eu acho que você tem toda razão nisso. O Roberto Romano
escreveu um artigo uma vez no qual ele diz que não há
nada mais flexível do que a espinha do intelectual brasileiro.
Ele está sempre pronto para colher as vantagens. Mas acho que
isso também é herança desse mundo autoritário
em que a gente vive. Acho que a desgraça do Brasil é o
autoritarismo, que vem lá da colônia e que não cessou
nem um minuto. As pessoas ficam muito presas a grupos que são
até meio que fanatizados. Não é que sejam oportunistas,
acho que é porque realmente acreditam naquilo, e são capazes
de fazer absurdos. Acho que entra um auto-engano para poder, por exemplo,
aceitar as coisas do Lula. Por exemplo, acreditar que o Bolsa-família
vai mudar a estrutura do Nordeste - isso é propaganda pura e
as pessoas acreditam.
Você disse
em certo momento que o projeto da USP acabou redundando, em parte, na
criação de uma esquerda bastante autoritária. Eu
gostaria que você falasse que esquerda é essa. Como esse
autoritarismo se concretiza no cotidiano brasileiro?
No cotidiano brasileiro eu não sei, sei dentro da universidade,
na qual, se você pensa diferente, já é posto de
escanteio. No tempo em que fiz meu doutoramento, estava começando
a aparecer uma certa resistência ao tipo de sociologia e de história
que se fazia, que era muito vindo lá dos franceses - aquela coisa
bem positivista do Durkheim. Começava-se a ler Marx, e isso muito
em torno do Florestan [Florestan Fernandes, 1920-1995, sociólogo].
Mas a leitura do Marx era extremamente ortodoxa. Fernando Henrique [Cardoso],
Octavio Ianni [1926-2004, também sociólogo] e o próprio
Florestan produziram livros dentro da leitura ortodoxa do Marx. Quer
dizer, eles diziam que não houve propriamente um capitalismo
na formação do Brasil e das colônias devido ao modo
de produção escravista. Então, eu escrevi contra
isso em várias situações. Resultado: quase não
defendo minha tese, porque o Florestan era muito autoritário.
Ele foi um intelectual íntegro e coerente, reconheço isso
tudo. Mas era autoritário também.
Mas essa articulação
não faz com que a capacidade de crítica desapareça?
Exatamente, ficam todos pensando igual, e de acordo com certos interesses.
Por exemplo, o Fernando Henrique saiu da USP e foi lá para o
Chile, entrou nos circuitos sul-americano e norte-americano de ciências
sociais. Se abrir a história daquela escola latino-americana
de ciências sociais, você vê como aquilo tudo se agrega,
há uma articulação de todos aqueles intelectuais.
E, para o bem ou para o mal, como não tenho nenhuma afinidade,
também não tenho capacidade de ler os trabalhos deles
e criticar. Há uma certa forma de pensamento que é feita
com exclusividade, que entra no circuito de citações -
um fica citando o outro. Até escrevi uma vez para a abertura
de um congresso de coordenadores da pós-graduação.
E uma das coisas que estavam no auge era a questão de como fazer
a avaliação, e uma das formas que subsiste até
hoje é a publicação em revistas - que tem núcleo
de decisão. Bom, isso tudo domina, você aceita as publicações
e você cita aquele grupo determinado. Aí o sujeito tem
90 citações em tal revista, ou 50 citações
em tal lugar, tudo isso entra na forma de avaliação das
agências de pesquisa. Isso é um fenômeno mundial.
Só que aqui é muito mais restrito. Nos Estados Unidos
e na Europa, você tem aquele tanto de publicações,
então isso acaba se diluindo. Mas aqui não, você
tem núcleos pequenos.
Você acha
que se perpetua uma maneira de evitar a crítica e aumentar a
dependência?
Sim, em todos os setores realmente se impede que as pessoas pensem.
Gostaria que você comentasse dois pontos levantados em seus artigos
para a Folha. Um sobre a questão do sonho, da esperança,
da não-desilusão política. Você acredita
que vivemos um desencanto com a política como forma de transformação?
Tudo foi despolitizado, é verdade. A respeito desse artigo, recebi
uma carta interessante, na qual o leitor dizia que não votava
mais por fadiga eleitoral. Até citei esse comentário na
Folha. Pensei "fadiga" como realmente um esgotamento diante
dessa coisa. Você tem uma esperança durante um dia, no
outro dia ela já acabou. A carta dizia que o balanço na
política brasileira arrebenta com qualquer um, não tem
cabeça nem corpo que agüente. Então pensei na relação
entre o medo e a esperança, que é o foco de todo um pensamento
de crítica política. A política, inclusive, se
faz com o uso do medo e da esperança. A igreja usa isso: o medo
do inferno e a esperança do céu. Não só
isso, mas também o medo de castigos e a esperança de salvação.
E a política opera com isso também, não só
opera como a gente se deixa levar. E, de repente, vem uma desilusão
muito grande. Olha, durante todo o tempo em que o Lula representava
uma forma de oposição, fui eleitora dele. De repente,
ele se viu no poder, mas continuou com a política econômica
ortodoxa. O Lula é uma bolha de propaganda, em cima dessa bolha
está uma figura carismática. Esse é o governo brasileiro.
O outro artigo
fala da mentira. Parece que, no mundo contemporâneo, ela se tornou
um valor relativo. Sempre foi assim ou é uma tática de
dominação hoje?
Sempre foi uma tática de dominação. Eu citei lá
um texto de A República, de Platão, em que ele usa uma
palavra que eu ainda não investiguei bem: pseudos. Essa palavra
normalmente é traduzida como mentira. Platão está
tratando da educação do jovem guardião, que é
quem vai se encarregar da organização da cidade para que
ela se mantenha. Ele dizia que estava tudo errado, que precisaria começar
de novo. Então teria de iniciar com as coisas absolutamente necessárias:
habitação, comida etc., o mínimo necessário
para a sobrevida. Conforme a cidade vai se ampliando, desperta o interesse
de outras cidades, e vai haver um conflito entre elas. Então,
o que aparece? A guerra. E se aparece a guerra, o guerreiro é
necessário, que é o guardião da cidade. Mas ele
tem de ter uma índole boa. Há um velho provérbio
ético que diz: "Seja gentil com os amigos e agressivo com
os inimigos". E esse jovem guardião tinha de ter a alma
e o corpo modelados. Então vem toda a educação
da ginástica, da música etc. Chega um determinado ponto
em que ele [Platão] faz aquela célebre censura à
poesia, que é preciso tirar algumas partes da poesia. Por exemplo,
Homero mostrou que Aquiles estava absolutamente desolado com a morte,
chorando e fazendo absurdos. Porém, nada disso convém
ao guerreiro, que precisa ter atenção e coragem. Aí
é que entra o negócio da mentira: é preciso que
as mães contem histórias para os meninos, e que os poetas
selecionem histórias que são formadoras dessas personalidades.
Então, entra o que Platão chama de mentira nobre, que
é aquela que você conta para um determinado grupo de pessoas
- jovens e crianças -, quando a racionalidade ainda não
foi desenvolvida.
Você acredita
em evolução e maturidade política? Por exemplo,
há quem diga que as eleições estão provocando
uma maturidade política. Você acredita nisso?
Absolutamente não. Não é a eleição
que vai trazer maturidade política, e sim a formação
de pessoas para pensar, refletir, decidir, ordenar sua vontade de uma
maneira autônoma. Porque, se não houver autonomia, não
há política. Sessenta por cento dos votos que o Lula teve
não significam autonomia da vontade, significam sujeição
da vontade de uma massa miserável. O fato de repetir um ato não
dá maturidade a ninguém. O fato é que a Câmara
está aí, com tudo o que aconteceu de mais desastroso -
aquela exposição lamentável e vergonhosa que foram
as CPIs, mentindo daquele jeito... E você acha que a repetição
do ato pode dar maturidade a alguém? Um ato que é antecedido
por propaganda e por mentira de todo jeito, que é controlado
por essa propaganda? A maturidade tem de vir de uma formação
de independência, de autonomia. Mas não há nem independência
nem autonomia. Logo, não há condições de
uma vida decente. E eu me refiro à condição de
trabalho mesmo, para você manter dignamente sua família.
Mas precisa de tudo isso junto com o pensamento. Você não
pode dar só comida... Como você vai prover uma pessoa de
condições para ela ser autônoma, se você não
dá condições materiais para essa autonomia? Se
você não dá emprego, como ela vai ter essa autonomia?
Vai ficar dependente eternamente ou então vai cair no crime organizado.
A falta da eleição é muito ruim, mas ela por si
só não dá maturidade nenhuma. É a repetição
mecânica de um ato que vem depois de as cabeças serem infestadas
pela propaganda.
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