A
SOCIEDADE E O ESPELHO
por
Olgária Matos
Em seu livro
mais recente, Discretas Esperanças (Editora Nova Alexandria,
2006), a filósofa Olgária Matos reuniu uma série
de artigos e palestras que, entre outros assuntos, tratam da relação
entre a sociedade e as reviravoltas do mundo contemporâneo. Da
luta dos estudantes franceses contra o Contrato de Primeiro Emprego
(CPE), manchete dos jornais de todo o mundo no início do ano
passado, aos males causados pelo rompimento de laços sociais
- provocado, segundo ela, pelo modelo capitalista vigente -, a professora
titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP)
analisa os desdobramentos do modelo mundial de gestão que, "salvo
raríssimas exceções", como explica, decapitou
a política e colocou a economia no trono. "Hoje, a própria
sociedade é entendida como uma empresa", afirmou em encontro
com o Conselho Editorial da Revista E. Ainda na ocasião, Olgária
Matos falou das origens da ética, da função formadora
da educação e da importância da arte e da cultura
na construção da identidade de um povo. A seguir, trechos.
Walter Benjamin
[filósofo e ensaísta alemão, 1892-1940] data o
nascimento do capitalismo no ano de 1855, quando aconteceu a 2ª
Exposição Internacional da Mercadoria, em Paris, ocasião
em que mais de 55 milhões de trabalhadores passaram por esse
evento de exibição das mercadorias. Benjamin mostra que,
como no reinado de Luís Felipe [rei da França de 1830
a 1848], as leis são discutidas no parlamento, mas as verdadeiras
decisões são tomadas nos corredores; ele "decreta
à noite e aplica de dia". Esse capitalismo é o que
se chama de estado de exceção e que, para Benjamin, tem
caráter permanente - pela própria natureza do acúmulo,
acréscimo e reposição do capital, tudo o que for
um limite à superacumulação é destruído.
E isso, no caso de hoje, quer dizer os direitos sociais, trabalhistas,
civis etc., na medida em que limitam essa "cleptomania" do
capital. Isso é estado de exceção: significa insegurança
jurídica.
O capitalismo é uma forma de estado de exceção,
só que mais perversa. Conhecemos o capitalismo clássico,
aquele que Marx [Karl Marx, 1818-1883, filósofo alemão]
estudou e no qual o proletariado era explorado pelo patrão ou
pelo empresário. Logo, essa exploração se definia
pela produção. Hoje, a perversão se dá porque
quem está explorando o trabalhador são os desempregados
estruturais. Diferentemente da "mão-de-obra de reserva",
que garante salários deprimidos, os desempregados estruturais
forçam o deslocamento do trabalho produtivo para o desemprego,
na forma das Bolsas-família, Bolsas-escola, de tal modo que as
taxações e impostos nunca são considerados suficientes.
As origens da
ética
Nesse meu livro [Discretas Esperanças], trabalhei um pouco também
a questão da ética e quais as suas origens. A palavra
ética, na verdade, provém de três palavras gregas
pertencentes a um mesmo campo semântico, que designam disposição
de caráter, hábito, e caráter adquirido. Então,
a idéia é a de que o grego não era educado para
a ética, ele era educado na ética. Portanto, essa idéia
contemporânea de que existem várias éticas - a médica,
a econômica, a escolar, a familiar etc. - é o sinal mais
definitivo de quanto não temos a menor noção do
que possa ser a ética. Ser educado na ética era decorrência
de a pólis perguntar-se, antes de mais nada, sobre a destinação
ética do homem, questão que desapareceu no mundo moderno,
no qual predominam as relações de meios e fins, adaptabilidade
ao mundo, eficácia nas ações etc. A idéia
grega supõe que cada um de nós tem um temperamento: um
é colérico, outro é sanguíneo, o outro melancólico
etc. Quer dizer, há disposições de caráter,
disposições anímicas. Então, a idéia
da ética pressupõe necessariamente um autoconhecimento:
eu tenho de conhecer qual é o meu caráter, qual é
minha disposição natural para saber em quais objetos posso
encontrar satisfação. Por exemplo, o melancólico
encontra satisfação no estudo solitário, provavelmente
o sanguíneo, que é mais empreendedor, gosta mais do público.
No mundo grego, tudo tem uma finalidade. A ciência grega pergunta
pelos fins últimos. Por exemplo, o grego pergunta por que existe
a flauta. Nós responderíamos que a flauta existe para
ser tocada. Para eles não, a flauta existe para ser tocada bem.
Claro, é um mundo otimista, onde tudo existe para o melhor e
tende para o sumo bem. Mas é o sumo bem que leva à coesão
social e à felicidade de pertencer a uma coletividade.
Educação,
cidades e revolução
Aristóteles perguntava-se por que os homens se reuniam para viver
em uma cidade. E respondia que era para viverem bem e cada vez melhor.
Essa é a função de uma cidade. E como é
que os homens faziam para se sentir bem? Era por meio da educação
formadora, entendendo a ética, a política, a moderação,
a prudência. E como é que transformo um prazer em um desejo?
Quer dizer, como é que se elabora a passagem de um impulso à
sublimação desse impulso? A Grécia sabia, era pela
educação formadora. Depois, na Revolução
Francesa, e em todos os exemplos que se espelharam nos valores dessa
revolução, ficou definido também que seria por
meio da educação que se daria a transformação
de uma população em povo. Pois uma população
está dispersa, está em um espaço comum, mas não
tem valores comuns que reúnam o coletivo, não tem uma
identidade coletiva de auto-reconhecimento que proporcione satisfação,
prazer de pertencer a esses valores comuns. Tudo isso se dá pela
educação. Tanto que, em francês, a educação
eleva o estudante e sublima a sociedade. Estudante em francês
se diz élève, porque é uma situação
na qual se eleva o indivíduo. A palavra aluno, diversamente,
significa sem lume, sem luz e é, portanto, alguém considerado
em sua passividade. Ao passo que, quando eleva um indivíduo,
você sublima a sociedade, pois sublimar significa elevar. A educação
foi concebida como produtora de coesão social porque não
havia a cisão ideológica entre cultura de elite e cultura
popular. Havia uma só definição, e todos tinham
direitos iguais para participar dessa cultura. A Revolução
Francesa se mirou no exemplo da primeira forma de educação
da Grécia Antiga, que foi a Academia de Platão e o Liceu
de Aristóteles, precursores das universidades modernas. E a democracia
francesa e a educação como fonte do fortalecimento espiritual
da democracia foram estabelecidas a partir do ensino da língua
e da literatura, que, desde o século 17, havia sido decretado
por Luís 14 [rei da França de 1643 a 1715] bem de utilidade
pública. A literatura era entendida como um laço social,
promovia a elaboração. Sendo assim, a arte e a cultura
não eram supérfluas. A escola facultava isso, passar da
espontaneidade da língua falada, e que não depende de
escolaridade, para o sujeito consciente e autônomo,
"Aristóteles
perguntava-se por que os homens se reuniam para viver em uma cidade.
E respondia que era para viverem bem e cada vez melhor. Essa é
a função de uma cidade"
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