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postado em 22/02/2021

Sempre viva

O Largo da Memória destacado em verde em foto de meados do século XX
O Largo da Memória destacado em verde em foto de meados do século XX

      


Em A Pirâmide do Piques: São Paulo narrada pelo Largo da Memória, Gustavo Piqueira aborda o que há de virtuoso e de contraditório na cidade; leia a entrevista com o autor


Por Gustavo Ranieri*

 

Mesmo quem passa diariamente nas intermediações das ruas Coronel Xavier de Toledo e Quirino de Andrade, próximo ao Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, pouca atenção dispensa a um delicado obelisco, com cerca de oito metros de altura, que figura no meio de um logradouro histórico: o Largo da Memória. Também costuma ignorar que aquele monumento, batizado oficialmente como Obelisco da Memória, mas popularmente chamado de Pirâmide do Piques, foi o primeiro erguido na capital paulista.

Inaugurado em 1814 e construído com pedra de cantaria pelo mestre de obras português Vicente Gomes Pereira, esse monumento público simboliza a importância daquela pequena porção de terras, chamada de Piques desde o final do século XVIII. O local era o ponto de chegada e de partida dos tropeiros vindos de Minas Gerais e que seguiam para o porto de Santos, promovendo ali as principais transações econômicas da época, incluindo aquelas nada nobres, como a compra e venda de escravos.

 


Dois momentos: o obelisco no começo dos séculos XIX e XXI

 

A história em torno desse obelisco reflete de muitas maneiras a própria história da cidade que o abriga, fato que levou o premiado designer Gustavo Piqueira a escrever A Pirâmide do Piques: São Paulo narrada pelo Largo da Memória, livro que se vale de vasta iconografia e de um texto livre das amarras acadêmicas para mostrar o que há de virtuoso e de contraditório na cidade.

Na entrevista a seguir, Gustavo Piqueira fala mais sobre a publicação e o que deseja para a cidade.

 

Como paulistano, de que maneira se estabelece a sua relação com a Pirâmide do Piques e com a região ao redor? E, principalmente, como surge o desejo de querer contar a história desse lugar?
O livro é um projeto extremamente pessoal. Ainda que eu, como autor, não “apareça” na narrativa, quis fazer um livro que, acima de tudo, fosse o livro que escrevi para minha cidade — lembrando que quando digo “escrever” me refiro tanto a texto quanto a imagem. E minha fascinação com o Largo da Memória vem de longe. Para mim, é um lugar que sempre resumiu São Paulo muito bem: seu percurso histórico, suas contradições, sua mania de sempre virar seus holofotes para onde reluz o novo e o dinheiro, esquecendo-se completamente do resto. Um lugar de tamanha delicadeza, escondido por arranha-céus pesadões, terminais de ônibus improvisados, vazios urbanos frutos de obras mal planejadas.

 


Vista da região do Piques: Largo da Memória, Viaduto de Chá e Terminal Bandeira 

 

Podemos dizer que o livro é um grito pela preservação e valorização da memória? Ou um suspiro diante do medo de esquecermos a importância do monumento e da história do local que o cerca?
Mais do que um lamento, o livro tenta pintar um retrato do local que não seja redutor. Que fale, como escrevi no texto de apresentação, de uma cidade ao mesmo tempo clara e imprecisa, linear e fragmentada, cosmopolita e provinciana, virtuosa e mesquinha, rica e miserável, mas, de um modo ou de outro, sempre viva.

 


Largo da Memória

 

O valor que é dado a esse primeiro monumento da cidade de São Paulo sintetiza o abandono cultural, patrimonial e histórico de tantos outros aspectos da metrópole. Ainda devemos ser otimistas por uma mudança nesse cenário?
Ultimamente tem sido meio difícil de se acreditar em muita coisa. Mas eu torço muito para uma São Paulo menos desigual, que é o único jeito de termos todo o resto que ansiamos para a cidade. Pois, sem isso, qualquer ação terá efeito limitado, não tem jeito. O largo já sofreu algumas tentativas tradicionais de “restauração”. Não é isso o que vai resolver seus problemas e nem acho que ele deva ser transformado apenas num “monumento protegido, limpinho e cheiroso”. O Largo da Memória está vivo. Precisaria de mais atenção de todos. Poder público e cidadãos? Sem dúvida. Mas ele ainda é um lugar vivo, mesmo que não palatável para o gosto do paulistano classe média mais afeito a passeios em shopping centers.

É natural que a ação do tempo e da sociedade de cada época acabe por transformar os espaços ao redor, assim como as funções e significados das cidades. Sendo assim, como combinar transformação e preservação? Como podemos dar agora passos certos que resgatem locais como o Largo da Memória?
Não acredito num “resgate” do obelisco ou do Largo da Memória. O local nunca mais terá o protagonismo do qual já desfrutou, nem será o importante local de passagem e comércio que já foi; as condições que levaram a isso já não existem mais. Mas o que tento colocar no livro é que essa impossibilidade não precisa cair no extremo de esquecermos que ele existe ou de o examinarmos como se estivéssemos admirando um cadáver. Conheço muita gente que passa pelas redondezas com frequência e nunca reparou na existência do Largo da Memória ou, se o fez, foi com um olhar apressado e sem interesse. Considerando as múltiplas riquezas do lugar, creio que é algo problemático na relação que se estabelece com sua própria cidade. Além disso, não deveria ser novidade para ninguém o quanto é importante, em diversos aspectos, conhecermos a história de como a cidade que habitamos se tornou o que ela é atualmente.

 

 

Você ficou conhecido pela inovação em projetos gráficos e por ser autor de mais de trinta livros, os quais, geralmente, misturam texto, imagens e elementos gráficos para contar uma história. Em A Pirâmide do Piques, quem é você como autor?
O conteúdo de A Pirâmide do Piques é todo não ficcional, texto e imagens. E isso se colocou como um grande desafio para que eu encaixasse minhas habituais experiências de mistura e desconstrução de linguagens. Porém, se em tese eu estava menos “livre” do que em outros livros recentes meus, mesmo assim deu pra me divertir. Bastante. Primeiro, com a cronologia: livros que tem como eixo central percursos históricos tendem a se comportar de maneira linear em termos cronológicos. Em A Pirâmide do Piques essa sequência cronológica regular termina lá pela metade do livro e, dali em diante, as histórias passam a saltar livremente pelo tempo, amarradas por temáticas das mais variadas. Também brinquei com a costura de conteúdos completamente díspares em termos de escala, mesclando importantes operações urbanas da cidade envolvendo a área, como o plano de Prestes Maia e a construção do metrô, com notícias de pequenos fatos cotidianos como o tropeção de um bêbado numa tarde qualquer ou a prisão de artistas circenses russos por arruaça. Tudo para tentar mostrar o quanto é importante compreendermos que São Paulo são muitas. Tudo o que São Paulo não precisa é de sínteses ou reduções, penso eu. Por fim, construí a parte visual de modo a criar interferências gráficas que contextualizassem, nas fotos de arquivos da cidade, os temas específicos de cada página, um recurso que ao mesmo tempo conferiu personalidade gráfica ao livro e facilitou sua leitura por entre textos e imagens sem os atravancos tradicionais desse tipo de livro, no qual o vai e vem entre texto e imagem costuma emperrar o fluxo de leitura.


*Gustavo Ranieri é jornalista e escritor.

 

 


Veja também:

 


Trecho do livro

 


Live de lançamento gravada no Sesc Pq. Dom Pedro II, em 25 de janeiro de 2021

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