Tom Zé, nosso professor
Por Patricia Palumbo*
Tom Zé é um grande leitor, desde sempre se assombra com o poder das palavras. É só uma das inúmeras qualidades pouco usuais desse artista, dessa pessoa, que eu tanto admiro. Por isso fico imaginando sua alegria ao ver sua história tão bem contada no livro de Pietro Scaramuzzo: Tom Zé, o último tropicalista.
A narrativa corre como um rio, descreve cenas, faz de Tom Zé um personagem por quem nos apaixonamos ainda mais a cada nova aventura ali contada. Sim, porque essa trajetória é uma linda história para se contar. Um menino curioso, tímido de sofrer, que descobriu sozinho suas ferramentas para chegar onde queria – fosse esse desejo um só acorde ou respostas para as tantas perguntas que, eu sei, ele ainda se faz. A curiosidade é seu motor. A arte é seu alimento.
De um móbile de Calder, da mitologia grega, dos poemas provençais, da vivência em Irará, Salvador, São Paulo ou Nova Iorque, nascem suas músicas. Ainda que ele diga que não é um especialista em fazer canções, Tom Zé tem uma bela coleção nascida dali, daquele coração impressionável.
Scaramuzzo é nosso comandante na viagem por essa vida longa e fértil. Sabemos que sem tempestades não se faz bom marinheiro e nosso amigo enfrentou umas boas. Há passagens engraçadas, emocionantes, tensas, é um longo caminho. No momento em que o país se vê na sombra de uma tragédia, um italiano apaixonado por nossa música traz luz para essa obra fundamental.
Foto: acervo pessoal
Ele nos chama a atenção para a maravilha que é a formação autodidata de um brasileiro com os recursos de sua imaginação e inteligência. Fala do encantamento do menino com as palavras e seus significados, com os sons. Uma criança que dormia com a orelha colada na parede separando os sons graves e agudos, criando ali seu próprio repertório e método. Descubram nessa leitura o “acordo tácito”, “o professor de palco”. As delícias e agruras da infância formadora quando a mágica se dá nas descobertas, na leitura de Os sertões, na metáfora gritada num jogo de futebol, o contraponto numa canção de Joubert de Carvalho tocada pelo amigo, as possibilidades harmônicas infinitas.
A complexidade do universo Tom Zé vai além da música, filosofia e literatura, ele é um erudito popular. Nos capítulos em que estamos com ele jovem, em Salvador, na universidade, o autor segue contando como o garoto curioso se transforma no inventor, no artista de palco.
Nada na obra de Tom Zé é só uma canção. É uma teia de pensamentos, de relações entre as artes e conhecimentos diversos, do bumba meu boi ao dodecafonismo, das invenções de Smetak (e as dele próprio) aos agudos que o ouvido humano é capaz de perceber. A música é um desafio intelectual. Ele chama de estruturas.
Jogos de armar. Foto: Laura Rosenthal
A passagem pelo tropicalismo é contada em detalhes deliciosos. O chamado de Caetano, o fusca azul, a chegada em São Paulo, a paixão e o assombro pela cidade grande.
Aqui peço licença pra citar como ilustração um trecho do meu livro (Vozes do Brasil: entrevistas reunidas) em que Tom Zé fala de uma manchete de revista que virou música: “... virei na Alameda Barros e vi numa banca de jornal: prostitutas invadem o centro da cidade! Eu que estava tremendo de frio, comecei a tremer de emoção. Aquela manchete me deu tal entusiasmo que tentei fazer uma melodia cantável, que é São Paulo, meu amor.” E que música! Esse é o gênio criativo desse brasileiro de Irará, um pensador, um crítico, um cronista, um poeta.
O livro biografia/cinema/romance/música vai além das descrições detalhadas da construção de seus discos e ideias – e essa parte, aliás, é um deleite. A edição é primorosa. Uma bela seleção de fotos e um prefácio de Luiz Tatit, outro mestre, que nos presenteia com um excelente texto a partir de sua escuta muito arguta sobre a fecundidade artística de Tom Zé.
Foto: Edelson de Freitas
A passagem fundamental que abre o livro e que descreve o começo de uma grande virada na vida de nosso herói nunca foi tão bem contada. Uma matéria no jornal, um pedaço de papel perdido numa foto, um dia que corria tenso em 1988. Viramos a página para 1936 e nunca mais largamos o livro.
Já entrevistei Tom Zé muitas vezes, mas foi só agora com esse lindo trabalho de Pietro Scaramuzzo que entendi completamente o que ele tenta me dizer há anos sobre as semelhanças, as intersecções, os mistérios do encontro da tradição oral do Nordeste e da Europa Medieval. Tom Zé é nosso professor. De música e de vida. Obrigada, Scaramuzzo, pela belíssima cartilha.
* Patrícia Palumbo é apresentadora e entrevistadora do projeto Instrumental Sesc Brasil desde que ele passou a ser transmitido pela TV, em 1990.