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postado em 07/05/2021

"Uma sociedade precisa de teatro"

Ensaio de <i>Romeu e Julieta</i>, em 1992, em Morro Vermelho, distrito da mineira Caeté. Foto Arqui
Ensaio de Romeu e Julieta, em 1992, em Morro Vermelho, distrito da mineira Caeté. Foto Arqui

      


Um dos fundadores do Grupo Galpão, o ator e diretor Eduardo Moreira fala sobre a importância do livro que registra 38 anos de história do coletivo de Belo Horizonte

Por Gustavo Ranieri

 

Quando Eduardo Moreira, junto com outros amigos também atores, fundou o Grupo Galpão em 1982, na capital mineira, existiam algumas certezas dentro dele: entre elas a de que o teatro é um ato político com enorme poder transformador e, por isso mesmo, precisa alcançar o maior número de pessoas possíveis, sem distinção de classes econômicas e sociais.

Quase quatro décadas depois e mais de 25 espetáculos realizados, essa certeza permanece inalterada. É ela que continua a movimentar o coletivo, que, ao longo de sua trajetória, já encenou para mais de 1,7 milhão de espectadores de 18 países. Como registro desse importante legado, chega às mãos do público o livro Grupo Galpão: tempos de viver e de contar, reunindo artigos, análises e fotos de 38 anos de história, de 1982 até 2018.

A publicação, com organização do próprio Eduardo Moreira, é, em suas palavras, um tipo de presente para a posteridade, para aqueles que um dia irão abraçar o teatro e poderão encontrar na história do grupo um estímulo para trilhar seus próprios caminhos. Confira a seguir uma entrevista com Moreira:

 

Qual é o elemento que liga cada espetáculo realizado ao longo de tantas décadas do Grupo Galpão?
O Galpão tem uma característica curiosa que é a de trabalhar com diferentes diretores convidados. Por isso, a linha do grupo é bastante heterogênea, pois acaba que os trabalhos são bastante variados entre si. Se você pegar um dirigido pelo Gabriel Villela, um dirigido pelo Marcio Abreu, um pelo Cacá Carvalho ou pelo Paulo José, verá muitas variações entre si no sentido da linguagem. Além de alguns espetáculos que são dirigidos por próprios membros do grupo, quando a gente faz uma autoanálise, olhando para dentro. Mas, de fato, mesmo assim, acho que existe algo que liga nossos trabalhos. A formação do Galpão que está aí tem 12 atores, os quais estão juntos há 25 anos e isso faz com que haja uma trilha, um caminho formado. Lembro que uma vez a gente estava no Rio de Janeiro e uma espectadora veio falar com a gente depois do espetáculo. E ela disse que o que achava de mais bonito no Galpão era ver um grupo de atores envelhecendo em cena juntos. E acho que essa característica realmente está muito presente na nossa história.

Podemos apontar o teatro de rua como uma das principais características do Galpão?
O Galpão sempre teve uma linguagem muito próxima do público, sempre fez um teatro popular, um teatro de rua. E essa é uma linguagem muito forte nessa trajetória de quarenta anos, o que nos deu uma linguagem muito próxima do público. Acho que essa é uma característica bem marcante do teatro do Galpão, seja fazendo Romeu e Julieta, Um homem é um homem, Pequenos milagres ou Nós. Por mais diversos que sejam esses espetáculos, eles sempre tiveram essa pegada de uma comunicação muito direta com o público.

 


Bastidores de Os gigantes da montanha e cena de Romeu e Julieta, na Praça do Papa, em Belo Horizonte. Fotos: Guto Muniz e Magda Santiago

 

Falando deste momento que vivemos, que análise você faz do teatro e da importância dele?
Acho que o teatro está se tornando cada vez mais fundamental. Por mais que se fale que ele tem um alcance quantitativo pequeno, eu acredito que o alcance qualitativo desse encontro teatral é muito forte. Estamos vivendo no Brasil uma situação de absurdos feitos por esse desgoverno, com o desmonte da ação do Estado na sociedade, com a destruição da Amazônia, a destruição dos indígenas, a destruição da saúde e da educação. Enfim, a destruição absoluta. E posso estar redondamente enganado, mas sinto que não existe uma contestação a todos esses absurdos porque as pessoas estão entocadas em suas casas, impossibilitadas de se reunir. E o teatro tem essa força de reunir as pessoas em torno de uma roda na rua, em torno de um palco dentro de um teatro, o que é muito mobilizador. É uma arte com poder profundamente catalisador. Uma sociedade precisa de teatro. E o teatro tem essa coisa de comunhão, ele está fazendo muita falta nesse momento, pois é um ato social insubstituível.

Mas o fazer teatro on-line durante a pandemia, ainda que alguns se recusem a chamar essas apresentações de teatro, teve e ainda tem grande importância, não?
Sinto que a gente está numa tentativa heróica de resistir. Acho que a única via que a gente tem agora é essa e estamos ocupando esse lugar de todas as maneiras possíveis. E quando se fala que o meio virtual vai transformar o teatro, eu acredito mais que é o teatro que está transformando o meio virtual, por meio da nossa ação enquanto criadores, artistas. Não condeno nada, acho necessário o on-line agora, é o espaço que nos resta e precisamos ocupá-lo como sobrevivência, não somente econômica, mas para manter uma chama criativa. Mas como já disse, o teatro é insubstituível, morro de saudade, estou louco para voltar ao encontro presencial no aqui e agora com o público

O teatro é uma arte efêmera, já que cada apresentação tem suas particularidades, mas se encerra geralmente em uma ou duas horas. Por isso, como você nota a importância do livro Grupo Galpão: tempos de viver e de contar?
Por mais que a gente veja um vídeo de uma apresentação, ele está a léguas de distância do que foi o espetáculo ao vivo. Quem estava naquele momento viu e quem não estava não vai ver mais aquela apresentação, que, de fato, é sempre especial. Por mais que a peça seja a mesma, o espaço é diferente, o público é diferente, tem um sabor que é único. E vejo que para o Galpão, com essa carga de quase quarenta anos, é importante deixar um registro de sua experiência. Imagino daqui a trinta anos, com pessoas começando a fazer teatro, e tendo essa referência de um coletivo que se formou em Belo Horizonte, uma cidade hoje um pouco menos, mas na década de 1980 bastante periférica, já que tudo ainda é muito centralizado nessa coisa do eixo Rio-São Paulo. Um coletivo que construiu um trabalho de quatro décadas, que fez vários espetáculos. Um coletivo de pesquisa, que busca criar linguagens, que trabalhou com vários diretores. Então, deixar esse registro é importante para os que vierem depois de nós, que quiserem abraçar o teatro, podendo ver a trajetória bem sucedida do Galpão.

 


Teuda Bara e Eduardo Moreira em cena de Nós. Foto: Guto Muniz

 

Aliás, há alguma forma de explicar a força dessa relação de vocês, juntos a tantas décadas?
Temos constantes e permanentes crises durante a criação, mas dentro de um coletivo é importante que as perspectivas individuais possam ser contempladas também. O coletivo precisa alimentar os desejos individuais. E coletivamente a gente percebe também, embora seja quase uma reinvenção diária, que o trabalho é mais importante do que todos nós e precisamos nos conectar para criá-lo e mantê-lo.

E como manter a chama em um país tão complexo, com o teatro tão distante ainda de grande parcela da população?
Às vezes me incomoda uma tendência do teatro que é falar as mesmas coisas para as mesmas pessoas. Sinto que o teatro perdeu um discurso mais republicano para todos, virou uma coisa de nicho, como se fosse bolhas das redes sociais, em que as pessoas falam as mesmas coisas para as pessoas que pensam da mesma maneira. Não existe uma troca, um diálogo, um respeito, pois as pessoas estão acostumadas a concordarem o tempo inteiro. E acho que o teatro cai nessa mesma armadilha às vezes. Por isso que o teatro de rua hoje é tão importante e um dos fatores da grandeza da história do Galpão foi a capacidade de, ao longo dos quarenta anos, ter sempre feito teatro de rua, de estar sempre encontrando com um público que é muito diversificado, desde o professor universitário até o analfabeto, da criança até o velho, de uma classe média alta até os muito pobres, que veem um espetáculo pela primeira vez. O teatro tem a tarefa, a obrigação de se expandir para mais pessoas, ele não pode ficar preso a um tipo de classe social, a um tipo de gente. Alcançar isso depende de uma série de fatores, de políticas estaduais, de apoio da imprensa, mas, principalmente, de nós artistas, pois a própria sobrevivência do teatro depende disso, da rua.

Então, assim que for possível, teremos algum novo espetáculo do Galpão voltado para a rua?
Continuamos com essa bandeira e acredito que o próximo espetáculo será um teatro de rua. Mas é preciso retornar com outra forma. Depois de Romeu e Julieta, o Galpão fez espetáculos extraordinários na rua, mas criou quase que levando a estrutura de teatro para fora, fazendo apresentações para grandes multidões, muito bonito. Mas agora é a hora de chegar de outra maneira, até pelo momento econômico e político que a gente vive. É um momento de se libertar dessas grandes estruturas, de grandes produções que se tornam muito pesadas e complexas. Voltar para o simples, para o início. Há vários desafios pela frente e precisamos encarar com força e com coragem.

 


Depoimento do elenco

 


Trecho do livro

 

Gustavo Ranieri é jornalista e escritor.

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