Sesc SP

postado em 17/09/2021

Caminhos de iconoclastia na modernização do cinema brasileiro

Helena Ignez em <em>A família do barulho<em> (Bressane, 1970)
Helena Ignez em A família do barulho (Bressane, 1970)

      


Em Helena Ignez: atriz experimental, Pedro Guimarães e Sandro de Oliveira retraçam a trajetória e o processo criativo da artista brasileira responsável por subverter padrões estéticos e morais frente às câmeras

Por Alvaro Machado

 

Entre as décadas de 1960 e 1970 Helena Ignez imprimiu marca de “virada” na arte de interpretar no âmbito da cinematografia brasileira, a promover avanço radical desse eixo de colaboração criativa, inaugurado com sua aparição em Pátio (1959), primeiro filme de Glauber Rocha. Esse feito extraordinário, fundamentado, sobretudo, em sua estreita colaboração com os diretores Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, não fora avaliado em sua total dimensão, até que oportunamente surgem, na atualidade, o livro Helena Ignez: atriz experimental, de Pedro Guimarães e Sandro de Oliveira, e o filme A mulher da luz própria, dirigido pela filha da atriz, Sinai Sganzerla, cinebiografia a dialogar com proveito com o ensaio literário em pauta.

Como sublinha em prefácio Ismail Xavier, um dos mais importantes teóricos brasileiros do cinema na atualidade, trata-se de obra “pioneira ao revigorar uma linha de reflexão e análise dedicada ao trabalho de atrizes e atores no cinema brasileiro”. Paradoxalmente, a dimensão de renovação do trabalho da atriz começou a ser divulgada antes no exterior que em seu próprio país, uma vez que a base deste livro foi publicada primeiramente na França, no âmbito de uma homenagem que lhe foi prestada. Porém as substanciais reflexões de Xavier e as atualizações textuais promovidas para as Edições Sesc – bem como a pesquisa iconográfica incluída na edição – trazem ganho à obra original, a compensar em certa medida a rarefação de iniciativas semelhantes no mercado editorial brasileiro.

 


Cena de O bandido da luz vermelha

 

Na França, por ocasião da primeira publicação, o professor Christophe Damour, da Universidade de Strasbourg, assinalou extrapolação da linguagem de atuação inaugurada por Helena para modos de produção e de direção cinematográfica. Na esfera da produção, a atriz inaugurou sua participação com Cara a cara (1967), de Júlio Bressane, prosseguindo em colaborações com o marido Rogério Sganzerla em O bandido da luz vermelha (1968) etc. Também atuou nos demais títulos da produtora paulistana Belair, da qual se tornou sócia, a incluir uma narrativa cujo eixo é sua presença contínua na tela, A mulher de todos (1969), na pele da anti-heroína Ângela Carne e Osso. Essas práticas inovadoras no chamado “cinema independente” brasileiro alcançam os dias atuais, com Helena passando já à direção e assinando dez títulos entre 2003 e 2019. A natureza de tal atividade é sublinhada pelo catedrático francês no texto de contracapa da edição brasileira: “Cineasta independente, concebe, muitas vezes em família (com sua filha e genro), obras ecléticas (da comédia onírica ao documentário sobre o faquirismo) que continuam expressando, com ferocidade, seu ponto de vista iconoclasta sobre a torpeza do mundo contemporâneo”. Modo de produção digno de uma verdadeira Família do barulho, para lembrar o título do filme de 1970 com direção de Bressane, no qual ela contracenou com Maria Gladys, Wilson Grey e Grande Otelo.

Já no texto de orelha do livro, a pesquisadora Karla Bessa, coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp, avança para as consequências político-sociais das práticas cinematográficas exemplificadas por Damour. Ou seja, a par de musa de toda uma geração, devido ao estilo transgressivo impresso às suas personagens do “cinema marginal”, já nos anos 1970 Helena Ignez tornava-se personalidade cinematográfica e teatral feminista. Dessa maneira, seu “comportamento artístico-estético potencializador de novas tecnologias de gênero” teria “quebrado hierarquias e remexido moralidades conservadoras”, a ponto de colocar em xeque a representação estagnada da mulher no cinema brasileiro até então, “em plena sintonia com o feminismo libertário”, segundo Bessa.

 


Cena de A mulher de todos

 

Em seu livro, Guimarães e Oliveira retraçam todo o percurso da artista até alcançar essa condição libertária, ou seja, desde os “experimentos” realizados na parceria com Glauber na produção do curta-metragem inaugural acima citado. A par dessa vocação iconoclasta, é preciso recordar que, em atitude generosamente feminina, antes de se tornar feminista pela via de seus trabalhos – ou de exercer esse ativismo em ordem prática –, Helena viveu profundos casos de amor com três dos maiores ícones do cinema nacional moderno. Foi esposa de Rocha e de Sganzerla, e também manteve laços afetivos com Bressane, tendo assumido aspectos de produção em filmes desses três criadores, além de neles atuar, como detalham os autores do livro.

Assim, Atriz experimental aborda exemplos notáveis da modificação da natureza da relação diretor-intérprete na história mundial do cinema, procedimentos em favor de potencialização da concepção total das obras. Essa conexão é traçada a partir de filmografias europeias e norte-americanas, notadamente com as atuações de Ingrid Bergman em Stromboli (1950), entre outros filmes de Roberto Rossellini, e de Harriet Andersson em Monika e o desejo (1953), de Ingmar Bergman, bem como em exemplos do norte-americano John Cassavetes e de sua esposa Gena Rowlands (Faces, de 1968, entre outros) e do suíço-francês Jean-Luc Godard e Anna Karina, atriz-símbolo da Nouvelle Vague desde O bando à parte (1964), assim como Helena se tornaria emblema do cinema “marginal”, “underground” ou “udigrudi” brasileiro. Sempre parcerias de cinema e de vida, com grandes paixões amorosas a incendiar a criação cinematográfica.

 


Cena de Copacabana, mon amour

 

A capacidade da atriz de improvisar e também de contracenar ousadamente com cidadãos e cidadãs comuns nas ruas cariocas (como faz, por exemplo, a Sônia Silk de Copacabana, mon amour, de Sganzerla, 1970), levando o cinema ao universo da performance e às práticas de imantação corporal e de vestimentas da arte neoconcreta de Hélio Oiticica e Lygia Clark, também são aspectos abordados pelos autores, assim como uma miríade de outros, em análises amparadas em obras de dezenas de pensadores contemporâneos da filosofia e do cinema, como patenteado na bibliografia publicada no volume, que dessa maneira se converte em fonte obrigatória não apenas para pesquisadores da “sétima arte”, mas para todo cinéfilo que se preze.

Pelo paradigma da trajetória dessa personalidade das artes cênicas e audiovisuais brasileiras – felizmente em pleno exercício criativo –, e pela via de multiplicidade de enfoques e angulações, Helena Ignez: atriz experimental dá conta de inaugurar panorama teórico sobre modernização na arte de atuar no cinema brasileiro a partir dos anos 1960.

 


Trecho do livro

 

*Alvaro Machado é jornalista, editor e pesquisador teatral. Publicou, entre outros, a biografia [...] metade é verdade – Ruth Escobar (Edições Sesc São Paulo, 2020).

 


Veja também:

:: A mulher de luz própria | Assista ao documentário na plataforma Sesc Digital (disponível até 18/10/21).

 

Serviços:

Live de lançamento do livro Helena Ignez: atriz experimental
Dia 22 de setembro, quarta-feira, às 19h.
Bate-papo com os autores Pedro Guimarães e Sandro de Oliveira, e participação da atriz, roteirista e diretora, Helena Ignez, e do teórico e professor de cinema brasileiro, Ismail Xavier.
Transmissão ao vivo no  canal do CineSesc no Youtube (youtube.com/cinesesc). 

Noite de autógrafos do livro Helena Ignez: atriz experimental na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Dia 31 de outubro, domingo, às 19h.
Sessão de autógrafos com Pedro Guimarães e Helena Ignez.
Espaço Itaú de Cinema, anexo 4 (Rua Augusta, 1470). 

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