Sesc SP

postado em 13/05/2013

O mundo das imagens de Federico Fellini

Federico Fellini olhando pela câmera
Federico Fellini olhando pela câmera

      


Catálogo Tutto Fellini revela as obsessões e o processo criativo do mestre do cinema

 

O cinema funciona como uma espécie de mediador da realidade. Consciente desse complexo papel exercido pela sétima arte, o cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993) se lançou à tarefa de interrogar o estatuto que as imagens adquirem na cultura ocidental e a veracidade das mensagens que elas veiculam. Na segunda metade do século XX, amplamente dominada pela primazia da imagem, o cineasta interessou-se por aquilo que está em jogo na apropriação do real por parte dos meios de comunicação, no instante mesmo em que o acontecimento se transforma em espetáculo. Em sua vasta filmografia, Fellini retornou às mesmas imagens, investigando suas origens e questionando seu futuro. Afinal de contas, o mestre jamais acreditou na neutralidade delas. Muito pelo contrário, ele sempre soube que elas eram manipuláveis e interpretáveis. Talvez seja esse um dos ensinamentos da caricatura – a primeira arte praticada pelo jovem aspirante a cineasta – ou do neorrealismo, cujos usos políticos influenciaram o artista.

Desde A doce vida (1960), Federico Fellini superou a linearidade da narrativa, partindo em busca de um trabalho de introspecção. Para ele, o cinema não deve apenas servir para contar uma história. É preciso antes interrogá-lo para saber o que ele pode dizer, o que pode mostrar e o que, finalmente, ele dá a ver. Por meio de um filme, um diretor organiza, sobretudo, a tentativa de compreender sua própria história.   

O catálogo Tutto Fellini, uma coedição entre as Edições Sesc São Paulo e o Instituto Moreira Salles , apresenta fotografias de bastidores, desenhos feitos pelo próprio diretor, revistas de época, quadrinhos, cartazes, entrevistas e fotos de filmes que revelam o processo criativo do cineasta italiano. A publicação foi organizada por Sam Stourdzé, diretor do Museu de Lausanne, na Suíça, e curador da exposição homônima que ocorreu no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, de março a junho e, no Sesc Pinheiros, de julho a setembro de 2012. 

Tutto Fellini está dividido em quatro grandes temas: “Cultura popular”, “Fellini em ação”, “A cidade das mulheres” e “A invenção biográfica”. Espécie de laboratório visual, a publicação não obedece a critérios cronológicos. Seu percurso é pontuado pelas obsessões do diretor e por suas fontes de inspiração, mostrando as várias facetas do “maestro”: o devorador onívoro de imagens, o admirador das mulheres, o crítico da sociedade, o realizador enérgico, o criador profícuo...

Na densa introdução do catálogo, o curador Sam Stourdzé tece reflexões muito acuradas acerca do trabalho do diretor, intercaladas por saborosos episódios biográficos, como este: “Numa entrevista filmada de 1961, Fellini relata um dia de sua infância na companhia de gente de circo, por ocasião de uma escapada. A história iniciática termina com uma pergunta incrédula do entrevistador: ‘Mas isso é mesmo verdade?’. Contrariado com o fato de que alguém ainda se importe em saber a verdade, Fellini se exalta: ‘Não, mas, de todo modo, que importa se é verdade ou não?’. Assim, desastradamente, afirma um de seus preceitos cinematográficos: diante da encenação, a verdade propriamente dita torna-se secundária”.

O capítulo “A cultura popular” apresenta muitos dos motivos com os quais o cineasta trabalhou. Tendo deixado sua província natal da Emilia-Romagna para tentar a sorte em Roma, Fellini ganhou a vida como caricaturista para jornais satíricos. Com um traço certeiro de lápis, o jovem pôs no papel um universo que já era seu, um mundo de grandes paradas, povoado de feições estranhas e de criaturas femininas de formas generosas... Aos 19 anos ele vai morar em uma pensão de família, na via Albalonga. À noite, tem por hábito jantar numa pequena trattoria, onde observa o espetáculo dos devoradores de espaguete, cujo comportamento folclórico remete a Gargântua, o genial personagem criado por Rabelais. Na cena do jantar de Roma de Fellini (1972), o cineasta faz renascer esse ambiente tipicamente romano. 

Em “Fellini em ação”, destacam-se informações curiosas: o medo que o diretor tinha dos roteiristas, sua concepção para cenários e figurinos, a posição que ele tomava atrás da câmera, a técnica empregada na direção de atores, a configuração do estúdio 5 da Cinecittà e a origem do uso do helicóptero em A doce vida.

O terceiro capítulo – “A cidade das mulheres” – flagra as obsessões femininas, com destaque especial para três atrizes cujas trajetórias estão ligadas umbilicalmente à do diretor. Sobre Anita Ekberg, Fellini declarou: “Ela era de uma beleza sobre-humana. Vi seu retrato pela primeira vez numa revista americana: 'meu Deus', pensei, 'faça com que eu não a encontre jamais!' Essa sensação de encantamento, de pasmo arrebatador, de incredulidade que experimentamos diante das criaturas excepcionais, como a girafa, o elefante, o baobá, eu o experimentei alguns anos mais tarde, no jardim do Hôtel de Ville, em Paris, quando eu a avistei vindo em minha direção...”. A respeito de Anna Magnani, o cineasta não cogitava evocar a capital italiana em Roma de Fellini sem a presença da atriz. No filme, ele a segue até a porta de casa e, com a voz em off, dirige-se a ela: “Posso te perguntar uma coisa?”  – “Não, eu não confio em você. Tchau, Federico, vá dormir...”. Anna Magnani assina assim sua última atuação no cinema, encerrando o ciclo de seus encontros com Fellini. Sobre Giulietta Masina, com quem foi casado durante toda a vida, o cineasta declara: “Giulietta ignora seu verdadeiro talento. Ela não se conhece. Ela desconfia de seu próprio gênio cômico e não quer se dar conta de que o que a torna tão particular é justamente aquela gama de expressões, entre o bufão e o dramático, que seu rosto de palhaço é capaz de expressar ao mesmo tempo”.

“A invenção biográfica” encerra o catálogo, tratando das visões e dos sonhos do diretor e de sua película mais autobiográfica, 8 ½. Segue-se, então, uma sucinta cronologia e a filmografia completa do cineasta.

Em seus filmes, Federico Fellini questionou os limites entre o real e o imaginário, o ficcional e o biográfico, a alta e a baixa cultura, o cinema de autor e o de entretenimento. Com isso, conquistou uma liberdade criativa que resultou em uma das mais originais reflexões sobre o tempo. Tutto Fellini convida o leitor a mergulhar no mundo das imagens de um dos inventores da visualidade do século XX.

 

Veja também:

:: Trechos do livro

 

 

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