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postado em 19/12/2012

Humano, espetaculoso, teatral

Editorial Imagem A teatralidade do humano

Organizado por Ana Lúcia Pardo, A teatralidade do humano investiga a busca do homem pela produção de efeitos não somente na arte como também na vida social

 

A história conta que Téspis foi o primeiro ator a representar na Grécia Antiga um personagem, fazendo com que o teatro se diferenciasse, assim, da prática do canto coral. Ao assistir à representação de Téspis, o famoso legislador grego Sólon perguntou-lhe se ele não se envergonhava de mentir, fingindo ser alguém que, de fato, não era, ao que o ator respondeu que estava apenas brincando. Sólon, então, muito preocupado, advertiu-o dizendo que a partir daquele momento cada indivíduo também poderia brincar de mentir nos contratos públicos. Tal episódio demonstra a preocupação de Sólon com a característica essencial daquele novo fenômeno que surgia: a noção de teatralidade.

Quase três mil anos depois, o termo ainda convida à reflexão e ao debate. Falamos da teatralidade apaixonante das peças de Shakespeare, por exemplo. Ou do caráter especialmente teatral de certos contos, romances, filmes e telenovelas. Não nos esquecemos de apontar como determinada figura pública teatralizou a situação. Como ainda admiramos aqueles tipos humanos cuja performance busca produzir determinados efeitos sobre os que o rodeiam – dos profetas irados que alardeiam punições e castigos pelas ruas aos engenhosos malandros que divertem ou ludibriam os transeuntes. Para o Dicionário de teatro, de Patrice Pavis, teatralidade é tudo aquilo que, na representação ou no texto dramático, tem um caráter especificamente teatral (ou cênico), isto é, o que não é pautado pela expressão das palavras, das falas ou do diálogo. Pavis vai mais longe, ao propor que a teatralidade está presente em inúmeras manifestações humanas, de ordem individual ou coletiva, constituindo uma forma sui generis de o homem expressar suas ideias, suas emoções e suas experiências, sem recorrer à linguagem verbal. 

Um amplo painel acerca da presença da teatralidade na arte e na vida social foi montado de setembro de 2006 a fevereiro de 2007, na cidade do Rio de Janeiro, com a curadoria da gestora cultural, jornalista e atriz Ana Lúcia Pardo. O conteúdo das entrevistas, apresentações artísticas, palestras e debates realizados na ocasião foi organizado posteriormente pela própria curadora, gerando o livro A teatralidade do humano, pondo à disposição do leitor um denso material teórico e reflexivo, de inúmeras qualidades. A obra discute a teatralidade como uma expressão para além do mundo do espetáculo, tecendo finas análises a respeito da natureza humana e das infinitas possibilidades de o homem se reinventar, desempenhando no palco e na sociedade os mais diferentes papéis.

A teatralidade do humano investiga as intersecções da linguagem teatral com outras artes e práticas socioculturais. Nas quase quinhentas páginas do livro, artistas, críticos e pesquisadores das mais diferentes áreas discutem a relação entre os conceitos de teatralidade e subjetivação – relação esta que sustenta, por exemplo, a atuação dos camelôs que criam personagens para vender seus produtos, dos meninos de rua que fazem malabares nos semáforos, das prostitutas e travestis que dramatizam a exposição erótica de seus corpos e ainda de uma vasta galeria de tipos anônimos que dão feição teatral a suas existências cotidianas.

O livro está organizado em torno de seis grandes temas. O poder do teatro e as táticas de resistência se volta à história da formação do povo brasileiro para analisar suas condições de vida e suas manifestações artísticas. Provocações da vida e da arte trata das inquietações e das angústias que costumam presidir as mais radicais criações artísticas e culturais. O artista, a cidade e a rua analisa a configuração geográfica dos grandes centros urbanos, que estimula, em maior ou menor medida, o surgimento de espaços de espetacularização. As novas subjetividades e a criação coletiva expõe as iniciativas surgidas após o rompimento dos limites do edifício teatral. Teatralidades para além do humano investiga as diferentes abordagens que discutem o humano e o inumano. Por fim, Arte e imagem inventaria as principais questões ligadas ao papel que a cultura visual desempenha na contemporaneidade.

Todos os capítulos contam com uma introdução assinada por Ana Lúcia Pardo, na qual se destacam não somente uma bem-vinda síntese da discussão central como também uma valiosa identificação de seus desdobramentos. Deste modo, a organizadora guia diligentemente o leitor pelos meandros das reflexões propostas e pelos debates que elas suscitam. Tal iniciativa justifica-se também pela organização do volume, composto de diversos subcapítulos que formam encaminhamentos distintos para a mesma agenda de questões.

A teatralidade do humano é um exercício editorial bastante original que está assentado sobre duas linhas de força. De um lado, a obra apresenta os depoimentos e relatos de artistas dispostos a converter atos criadores em práticas sociais. Convocados para a tarefa, diretores como Zé Celso Martinez Corrêa, Antônio Abujamra, Amir Haddad, Antonio Araújo, João Falcão e Maria Thaís e atores como Denise Stoklos, Vera Holtz, Antonio Januzelli e Henrique Schafer contam suas experiências e descrevem seus processos criativos. Em todos os depoimentos, sobressai a busca pelo rompimento de limites (espaciais, narrativos e cênicos) com a intenção de que sejam exploradas novas possibilidades na relação entre palco e plateia, em sentido estrito, e entre arte e sociedade, em caráter mais amplo. Os demais convidados procuram enfatizar de que maneira buscam exercitar uma teatralidade que lhes permita estabelecer um diálogo crítico com a tradição da qual são oriundos e lhes possibilite a exploração de ruas, igrejas, hospitais e penitenciárias como espaços cênicos. Tais relatos não implicam o abandono do espaço teatral propriamente dito, propondo antes seu redimensionamento para além dos limites do palco italiano.

De outro lado, o livro analisa algumas práticas culturais e o próprio universo das relações sociais entendidos como exercícios de teatralidade, levando o leitor a compreender que a vida em sociedade significa também a construção de personagens e de tipos a partir dos quais o processo de sociabilidade se estabelece.

Um livro como A teatralidade do humano percorre uma longa estrada rumo a um território ancestral em que se cruzam a interioridade do indivíduo e a concretude de sua expressão. Ao viajante moderno disposto a refazer este percurso não cabe simplesmente desconfiar do teatro, como fez Sólon. Entretanto, é preciso, sim, que ele suspeite de qualquer manifestação singular e genuína que procure abrir mão de seu inequívoco caráter teatral.

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