Sesc SP

postado em 11/11/2014

Arte em movimento

Grupo Teatro de Dança em Therpsichore, 1978. Foto: Renato Folla
Grupo Teatro de Dança em Therpsichore, 1978. Foto: Renato Folla

      


Caminhos cruzados recupera a trajetória do Teatro de Dança Galpão e traça um rico panorama da dança brasileira nas últimas décadas

Por Welington Andrade*

 

Uma fecunda modernização da dança brasileira ocorreu durante os anos 1970, quando inúmeras iniciativas experimentais souberam muito bem plasmar a sensibilidade daqueles tempos, que viram surgir excelentes bailarinos, coreógrafos e preparadores corporais. O Teatro Galpão em São Paulo – primeiro espaço dedicado à dança com subsídio do governo – reuniu muitos criadores dispostos a pesquisar e desenvolver novas técnicas e linguagens, tornando-se um templo ideal para a atmosfera de experimentação criativa que se estendeu sobre a área da dança na capital paulistana. Inaugurado por iniciativa da bailarina Marilena Ansaldi, o local ocupava a Sala Galpão do Teatro Ruth Escobar, sendo apoiado diretamente pelo então secretário de Estado da Cultura do Governo Laudo Natel, Pedro de Magalhães Padilha.

Naqueles anos difíceis, mas ousados, as barreiras entre as artes foram rompidas, levando ao aparecimento de novas relações. O teatro e a dança estiveram mais próximos, e as artes plásticas, como os happenings e as performances, também se associaram às artes do corpo, criando para si alternativas de expressão. A arte tomava o cotidiano como objeto de sua preocupação e, no auge da ditadura militar responsável por uma ferrenha repressão, buscava modos muito sinuosos de explorar conteúdos políticos. 
Os anos 1970 foram também a época em que se procurou incansavelmente investigar a propalada “identidade brasileira” na área da dança, requerendo autonomia em relação ao padrão tradicional europeu, vinculado à técnica clássica.  A busca desta singularidade estimulou novos olhares sobre nós mesmos. As mudanças se deram primeiro pela escolha dos temas; depois, pela transformação corporal do movimento – processo que sofreu um longo tempo de decantação até chegar aos dias de hoje, quando a dança no Brasil vive um momento auspicioso de maturidade artística.

Caminhos cruzados: Teatro de Dança Galpão 1974-1981, de Inês Bogéa, lançado pelas Edições Sesc São Paulo, reconta boa parte desta história, constituindo desde já um precioso documento que muito tem a contribuir com a escassa bibliografia sobre dança existente no Brasil. Acompanhando passo a passo a intensa programação desenvolvida pelo Teatro Galpão, durante os sete anos de sua bem-vinda existência, a autora recupera a trajetória dos principais criadores que por lá passaram, traçando um amplo panorama histórico e conceitual. Subiram ao palco do Galpão profissionais renomados e jovens dançarinos à procura de novas maneiras de expressão e comunicação, como Marilena Ansaldi, Ruth Rachou, Célia Gouvêa, Ismael Ivo, J.C. Violla, Ivaldo Bertazzo e o grupo Andança. Cada performance deles parecia projetar um estilo de vida, um modelo de mundo possível; a improvisação, por exemplo, aparecia como um símbolo de liberdade e suporte para novas formas de cooperação. A vanguarda assumia, assim, o sentido duplo da palavra: combate e renovação. 

Doutora em artes pela Unicamp, professora no curso de especialização em linguagens da arte, na Universidade de São Paulo, documentarista e escritora, Inês Bogéa é diretora da São Paulo Companhia de Dança. Ex-bailarina do grupo Corpo (no qual atuou de 1989 a 1991), ela escreveu críticas de dança para a Folha de S. Paulo, de 2001 a 2007. Autora, dentre outros títulos, de Sala de ensaio: textos sobre a São Paulo Companhia de Dança (2010), Contos do balé (2007) e O livro da dança (2002), Inês Bogéa dirigiu mais de 25 documentários em vídeo sobre dança, entre eles Lenira Borges: uma vida para a dança (2011), Maria Dushenes: o espaço do movimento (2006) e Renée Gumiel: a vida na pele (2005).

Caminhos cruzados não somente reflete sobre o que se passou no Teatro Galpão como também traça um rico panorama da dança brasileira nas últimas décadas, já que muitos dos que lá estiveram continuam na ativa, fomentando a criação artística no país. Além disso, a pesquisa procurou estabelecer vínculos nem sempre tão visíveis. Como bem aponta a autora, nada se deu de modo isolado, e a relação entre os criadores e as diversas áreas artísticas nas quais eles atuavam – esses “caminhos que se cruzaram” – acabaram por sustentar o programa estético e comportamental de toda uma geração.

No texto de introdução do livro, Inês Bogéa mostra que nem toda experimentação de dança nos anos 1970 se deu no Teatro Galpão, embora tenha sido ele um grande foco. O início desta vertente mais experimental na dança tem raízes em precursores como a gaúcha Chinita Ulmann (1904-1977) e os estrangeiros Renée Gumiel (1913-2006), Maria Duschenes (1922), Yanka Rudska (1916) e Vaslav Veltchek (1896-1967), difusores de uma nova maneira de pensar a dança que atuaram, sobretudo, em sala de aula. A experiência do Balé do IV Centenário, em 1953, inaugurou um processo de conscientização e profissionalização dos intérpretes de dança, que passou pela organização do Corpo de Baile Municipal, em 1968, – e sua modernização em 1974 –, e consolidou-se com a fundação do Ballet Stagium em 1971. Como isso, pouco a pouco, ampliou-se o mercado de trabalho da dança e fortaleceu-se a diversidade que hoje se vê.

A redação de Caminhos cruzados teve início com a pesquisa decorrente do prêmio no Concurso de Desenvolvimento de Projetos de Pesquisa e Investigação em Dança da Secretaria do Estado de São Paulo, em 2006. Para estudar o período, a autora contou com depoimentos, programas de espetáculos, fotografias, vídeos e textos publicados em jornais, preservados em arquivos particulares e públicos, como os do Centro Cultural São Paulo e os do Balé da Cidade de São Paulo. Uma cronologia publicada no final do volume – feita com a colaboração de Acácio Ribeiro Vallim Júnior, crítico de dança de O Estado de S. Paulo, de 1977 a 1986 – lista os espetáculos que deixaram registros escritos.  

O Teatro de Dança Galpão marcou um momento especialmente rico, não só por suas criações, mas também pelo trânsito de linguagens e informações que circulavam pelo espaço, sem falar na plateia que acompanhava de perto o que lá se dava. Criadores, críticos e espectadores, sem exceção, participavam ativamente daqueles ritos de comunhão e de liberdade. Nos dias atuais, em que vários teatros se abrem para a experimentação e os editais públicos ampliam sua ação, um livro como Caminhos cruzados se propõe a contar a história de uma época em que, pela primeira vez, o poder público deu o devido suporte para o desenvolvimento da dança, a longo prazo. Mais de trinta anos depois, esse resgate da memória do Teatro de Dança Galpão parece fundamental.

 


*Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela USP, professor e vice-diretor da Faculdade Cásper Líbero e colunista da Revista Cult.

 

Veja também:

:: Inês Bogéa fala da formação do grupo, dos artistas que por lá passaram e da importância que o Teatro de Dança Galpão representa para a modernização da dança no país.

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