Sesc SP

postado em 24/10/2014

Convergência do gosto

Foto: pxhere.com | CC Domínio público
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Cultura popular e alta cultura, de Hebert J. Gans, desvia de julgamentos pessoais e aponta para o fato de que as práticas artísticas existem para satisfazer as necessidades e os desejos das classes sociais

*Por Newton Cunha

    

A crítica cultural que já vinha se desenvolvendo no período entre-guerras, sobretudo a partir da Alemanha, com pensadores de tendências e de princípios os mais diversos possíveis (de Oswald Splenger e Heidegger a Hannah Arendt e ao grupo marxista da assim chamada Escola de Frankfurt – Horkheimer, Adorno, Benjamin, Marcuse) teve como elo comum uma visão senão pessimista, ao menos severamente desfavorável às tendências decadentes da cultura em geral, tanto sob aspectos espirituais e simbólicos quanto técnicos, mas, principalmente, pelos efeitos progressivamente nocivos da chamada cultura de massa, que então se tornava evidente na vida das sociedades.

A essa predisposição de natureza filosófica, que não deixava de incluir a alta cultura (pelo irracionalismo das vanguardas anticlássicas ou pela “desumanização da arte”, usando-se um conceito genérico de Ortega y Gasset), se contrapôs, no terreno da sociologia, e mais acentuadamente as de origem anglo-norte-americana, um pensamento dito “funcionalista”, perfeitamente compatível com o pragmatismo tradicional daqueles países. Tal pensamento obteve maior repercussão nos anos subsequentes à Segunda Guerra Mundial, principalmente entre as décadas de 1950 a 1980. De maneira aqui extremamente simplificada, a sociologia funcionalista vê a sociedade como um organismo vivo, e justamente por isso, cada parte ou fenômeno de sua estrutura existe para cumprir uma função precisa ou desempenhar um papel necessário à manutenção ou ao desenvolvimento do organismo, ou seja, do corpo social. Logo, as instituições e as criações culturais são meios utilizados pelos seres humanos, como de resto quaisquer outros, para sobreviver e mesmo prosperar no ambiente social. Portanto, ao se analisar um fato cultural, deve-se procurar sobretudo compreender que necessidade ele satisfaz, que função preenche, já que as práticas, ainda que aparentemente anódinas, constituem usos de adaptação e de reafirmação de valores grupais, nacionais ou de classes. É dentro dessa perspectiva e com esse intuito que Herbert Gans escreveu Cultura popular e alta cultura.

A obra tem ainda como adversários autores ingleses e norte-americanos que, à direita (T.S. Eliot, Allan Bloom) ou à esquerda do espectro político (Dwight MacDonald, Bernard Rosenberg), veem na cultura de massa uma “democratização” obtida por meios radicalmente simplistas e, não poucas vezes, de qualidade medíocre. Isto é, de um lado ela necessita produzir, de maneira incessante e exponencial, produtos em série, convencionais e sem profundidade, atulhando o mundo de produtos simbólicos antes de tudo com fins comerciais, de mero divertimento e obsolescência quase imediata. De outro, por não ser igualmente rentável social e economicamente, deve relegar a um segundo plano ou mesmo desprezar aquilo que de melhor a cultura produziu ao longo da história das Humanidades.

Para cumprir seu propósito, Gans procura negar quaisquer diferenças qualitativas ou estilísticas que tais manifestações culturais possam conter entre si e, num sentido inverso, realçar as possíveis convergências. Assim, “uma análise comparativa da cultura popular com a alta cultura deve começar não com julgamentos pessoais de suas qualidades, mas sim com a perspectiva que atribui a existência de cada uma ao fato de satisfazer as necessidades e os desejos de algumas pessoas” (p. 101); “... as pessoas escolhem o conteúdo midiático para cumprir certos requisitos individuais e grupais, em vez de adaptarem suas vidas ao que a mídia prescreve ou glorifica” (p. 56). Como se vê, a análise funcionalista afirma que, apesar das diferenças das classes sociais, todas elas têm na cultura uma mesma necessidade de representação, de ideais e de práticas artísticas ou de lazer. 

Inicialmente, Gans trata as expressões “cultura popular” e “cultura de massa” como conceitos praticamente sinônimos, ainda que historicamente a cultura popular anteceda de séculos a cultura atual de massa, e desta aqui se distinga sob certos aspectos de criação e de difusão (o artesanato tradicional, para mencionarmos um exemplo). Em segundo lugar, o autor denomina todos os níveis culturais de “culturas de gosto” e, em suas palavras: “... quando me refiro a públicos de gosto superior e inferior, não acredito que o primeiro seja melhor do que o segundo” (p. 22). Em ambas as expressões – alta e popular – haveria três “culturas de gosto”: a refinada, a convencional e a vulgar, o que indicaria uma nova semelhança de situação e de níveis de criação e de apreciação entre elas. Ou ainda: “... as diferenças dentro de um determinado gênero [artístico] não são menores na cultura popular do que na alta cultura; existem tantas variedades de rock quanto de música barroca... as diferentes escolas da alta cultura são equivalentes às diferentes fórmulas da cultura popular” (pp. 46-47).

Pensando-se na produção cultural, toda ela atual e igualmente industrializada, “a oferta de cultura cresceu e continua a crescer, dando mais opções para mais pessoas... o crescimento foi quase universal, quer se considere a venda de best-sellers ou de livros de ficção e de não ficção, a quantidade de filmes e cinemas, ou a quantidade e a variedade de canais de televisão. Um crescimento menor, mas equivalente, ocorreu na alta cultura” (p. 29). Mas nesse particular há uma diferença inegável entre a cultura de massa e a alta cultura, habilmente salientada por Gans. Enquanto aquela última “interessa a um número pequeno de pessoas, não mais do que meio milhão nos Estados Unidos, um programa de TV popular pode atrair uma audiência de mais de 40 milhões de telespectadores” (p. 46). Portanto, a função da cultura de massa é muitíssimo mais eficiente segundo critérios socioeconômicos. E com o desenvolvimento dos novos meios de comunicação – via internet e sistemas interativos –, os conteúdos de cultura e de gosto se fragmentarão em diversos estratos ou grupos sociais, com um ligeiro predomínio do que o autor chama de cultura média inferior: “Se a economia do país permitir, é possível que algum dia haja mais públicos e culturas de gosto do que podemos contar nos dedos das mãos” (p. 39). Daí esse outro aspecto que o autor julga importante e que consiste na “salvação do marginal, do aberrante e do inovador... Se as agências públicas não conseguem mais desempenhar essa função, por motivos políticos ou financeiros, outras fontes de ajuda devem ser encontradas. Empresas comerciais muitas vezes não podem sacrificar a clientela convencional em troca do status que resulta da ajuda ao marginal... embora no passado os financiadores geralmente limitassem seu patrocínio a produtos da alta cultura, todas as culturas possuem seus fornecedores marginais e todas geram inovadores... Por exemplo, a cultura gay é frequentemente inovadora, porque ainda está sendo inventada, à medida que mais pessoas se revelam homossexuais” (pp. 202-203).

O antigo prestígio da alta cultura talvez não se tenha perdido inteiramente, sobrevivendo em certos guetos intelectuais e artísticos. Mas se há uma cultura que se impôs mundialmente no transcorrer do século XX, é justamente aquela que Herbert J. Gans toma como digna de ser defendida: a cultura de massa que ele denomina popular e que se difundiu por todas as classes, não sem razão sendo denominada por alguns de cultura híbrida, onívora ou do ecletismo.

 


*Newton Cunha é escritor e tradutor de algumas obras, entre elas Ética contra estética, de Amelia Varcárcel (Ed. Perspectiva e Edições Sesc São Paulo), Luxo e design, de Giovanni Cutolo (Ed. Perspectiva) e A história do design, de Renato de Fusco (Ed. Perspectiva).

 

 

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