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postado em 19/02/2015

Desvendando os primórdios da habitação social

Conjunto Residencial Pedregulho. Foto: Bob Wolfenson
Conjunto Residencial Pedregulho. Foto: Bob Wolfenson

      


Inventário inédito é nova leitura obrigatória para arquitetos, gestores públicos e pesquisadores da área habitacional

Por Maria Teresa Diniz

 

Os pioneiros da habitação social, o novo livro coordenado pelo Prof. Dr. Nabil Bonduki, com coordenação adjunta da Prof. Dra. Ana Paula Koury, é um belíssimo trabalho de historiografia da produção pública de habitação social no país na era Vargas, entre 1930 e 1964, focado nos aspectos relacionados com a arquitetura e o urbanismo. A publicação traz os resultados de extensa pesquisa realizada entre 1987 e 2012 na Escola de Engenharia de São Carlos (EESC-USP) e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP), ambas da Universidade de São Paulo, produzida por mais de 80 pesquisadores de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado, orientados por Bonduki e Koury. Constituído por três fases, sendo a primeira correspondente ao período de elaboração da tese de doutorado do autor que resultou na publicação Origens da habitação social no Brasil (Estação Liberdade, 1998), o livro é uma versão revisada e ampliada de sua tese de livre-docência, defendida na FAUUSP em agosto de 2011.

O autor defende a tese de que embora as “condições para que o direito à habitação digna possa ser garantido para todos os cidadãos brasileiros” tenham sido alcançadas, o enfrentamento do problema pelos atuais governos não tem sido realizado de forma adequada, preocupando-se com o que de fato faz a diferença: a questão fundiária, a qualidade do projeto e a inserção urbana. E para isso, Os pioneiros da habitação social – organizado por dois arquitetos e urbanistas que vêm dedicando sua carreira à questão habitacional – traz a coletânea da produção realizada pelos órgãos públicos, além de elementos biográficos de profissionais que protagonizaram sua concepção e realização, na esperança de contribuir para “uma correção de rumos da atual política habitacional brasileira”.

Organizado em três volumes que somam quase 1.200 páginas, a vasta investigação encontra-se registrada por esta publicação, um conjunto de documentos inéditos da história da moradia econômica brasileira realizada durante o período de 1930 a 1964 em todo o país. O inventário abriga textos descritivos e analíticos cuja produção baseou-se em levantamentos documentais, bibliográficos, arquitetônicos, urbanísticos e fotográficos. Um verdadeiro e laborioso garimpo nos arquivos públicos e privados que hoje reúnem o material oriundo de departamentos governamentais extintos, cindidos e restituídos. Neste caminho cheio de rotas sem saída e frustrações, os levantamentos de campo ganharam grande relevância, procurando suprir as insuficiências das fontes documentais.

É bem verdade que o registro e a análise da habitação social nunca tiveram o destaque merecido na história da arquitetura e urbanismo brasileira, de que ressente o autor. Até mesmo globalmente, obras dedicadas à profissão concentram seu interesse na publicação de projetos que abrigam a minoria, as classes sociais mais altas das sociedades mundo afora. É esta lacuna que a publicação pretende preencher, contextualizando a produção objeto da pesquisa nos cem anos da ação estatal no Brasil e inventariando-a com detalhes para, em seguida, selecionar exemplos representativos e analisá-los com grande profundidade.

Nova leitura obrigatória para arquitetos, engenheiros, pesquisadores e gestores públicos da área da habitação social, o tratamento dado ao tema tão complexo torna-o de fácil compreensão, amparado por um amplo conjunto de ilustrações e organizado de forma a permitir que o conteúdo possa ser absorvido paulatinamente, sem que seja necessária uma leitura contínua. Dessa forma, o enorme número de páginas não deveria impressionar o leitor não especializado e sim encorajá-lo a embarcar nesta viagem a um tempo de habitação social de qualidade. Lançado em outubro de 2014, o estudo foi motivado pelas descobertas e lacunas encontradas por Bonduki em sua primeira fase. Apoiado pela Fapesp nas etapas posteriores, traça o perfil do atendimento habitacional oferecido aos cidadãos de um país em transformação que vivia novos desafios ao tornar-se essencialmente urbano em curtíssimo espaço de tempo.

O volume 1, Cem anos de política pública no Brasil, discorre sobre a construção da política pública de habitação no Brasil a partir da primeira ação do governo federal ocorrida em 1912, com o início da implantação do Bairro Operário Marechal Hermes, no Rio de Janeiro. A descrição do contexto da era Vargas – e também do sequenciamento que nos traz à atual – reconstrói a motivação dos pioneiros órgãos públicos que enfrentaram a questão da habitação como política de Estado, permitindo-nos compreender as mudanças de rumo ocorridas nos períodos seguintes, inclusive as do presente.

Em Inventário da produção pública no Brasil entre 1930 e 1964, volume 2, Bonduki e Koury apresentam a grande maioria dos projetos concebidos em todo o país: 325 empreendimentos localizados em 81 cidades situadas em 24 unidades da federação. O volume se divide em nove capítulos que agrupam os empreendimentos por órgãos ou conjunto de órgãos promotores: institutos de aposentadoria e pensões dos industriários, comerciários e bancários (IAPI, IAPC, IAPB), Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (IPASE), institutos dos marítimos, estivadores e empregados em transportes e cargas (IAPM, IAPE, IAPETC), Caixas e Institutos dos Ferroviários e Empregados em Serviços Públicos (CAP, CAPFESP, IAPFESP), Fundação da Casa Popular (FCP) e órgãos regionais e áreas residenciais das cidades novas (Volta Redonda, Cidade dos Motores, Ipatinga e Brasília).

O inventário minucioso foi realizado a partir do levantamento de todas as informações sobre os empreendimentos e sua subsequente sistematização, trabalho realizado ao longo de duas décadas sob coordenação dos autores. Todos os projetos foram redesenhados, permitindo sua comparação a partir também da elaboração de fichas e textos descritivos. O inventário constitui legado extremamente valioso e generoso da pesquisa, uma antologia da habitação social na era Vargas, com todos os seus matizes.

Finalmente, o volume 3 – Onze propostas de morar para o Brasil moderno – reúne apresentação e análise detalhada de uma seleção de empreendimentos de “particular interesse do ponto de vista da qualidade arquitetônica, inserção urbana, diversidade de soluções tipológicas e construtivas e valorização do espaço público”. Na intenção de fomentar a reflexão e o debate sobre o futuro da habitação e da cidade brasileira, os autores utilizaram-se dos seguintes critérios de escolha: presença de projetos realizados por diferentes órgãos, relevância dos profissionais envolvidos, variedade das cidades onde se localizam.

Não se trata, portanto, de uma classificação dos projetos de maior interesse arquitetônico e urbanístico presentes no volume 2, embora estejam entre os mais importantes do período: Conjunto Residencial Operário de Realengo, Cidade-Jardim dos Comerciários em Olaria, Conjunto Residencial Pedregulho, Conjunto Residencial da Penha, Conjunto Residencial Presidente Getúlio Vargas, Casa da Bancária e Conjunto Residencial Paquetá (Rio de Janeiro), Conjunto Residencial da Várzea do Carmo, Conjunto Residencial Japurá (São Paulo), Bairro Industriário de Lagoinha (Belo Horizonte) e Vila Passo d´Areia (Porto Alegre).

Os dados são apresentados de forma tão detalhada que permite ao leitor fazer suas próprias análises – e inclusive discordar da qualificação oferecida pelos autores. E criam novas perspectivas de estudos futuros, sobre a era Vargas ou os períodos que a seguem, que poderão apoiar-se em diversos aspectos aos quais a concepção dos projetos se dedicava à época, como: processo construtivo, tipificação e reprodutibilidade, racionalismo, inserção urbana e inclusão de equipamentos sociais no programa, relação entre habitação e gênero – tratando a questão do custo de produção como pertinente sem negligenciar a qualidade. O estudo demonstra a postura coerente com a qual as diretrizes eram desenvolvidas, dedicando-se a criar moradias econômicas alinhadas aos melhores preceitos daquela época, o que infelizmente não se pratica na atualidade.

Muito daquilo debatido e documentado na era Vargas – como, por exemplo, o documento final do Seminário de Habitação e Reforma Urbana (SHRU, 1936) – aparenta continuar relevante nos dias de hoje, um verdadeiro avanço conceitual. Talvez porque ainda não tenhamos tido êxito na implantação daqueles ideais e os experimentado na prática em larga escala. Ou quiçá porque passemos por um processo de amadurecimento de nossos ideais de interesse coletivo.

A frustrada construção da política habitacional no país é amostra de quão decepcionante o processo de estruturação e expansão das cidades pode ser e de quão raras podem se tornar as transformações bem-sucedidas. Estabilidade das fontes de recurso, agenda política, capacidade executiva, diretrizes de programa e projeto arquitetônico: são muitos os processos que interferem no planejamento e na implementação da política habitacional.

E tratando-se de desafios tão complexos, a publicação defende que a política nacional lidere a coordenação destes processos, pactuando com a produção de habitação social de qualidade, considerando o enorme passivo acumulado e o poder decisório do governo federal por ser o detentor do maior volume de recursos financeiros. Os exemplos de conjuntos habitacionais recém-construídos desastrosos e outros extremamente positivos alimentam o debate: “as restrições orçamentárias certamente são um problema, mas elas podem ser superadas quando existe uma preocupação do poder público e dos próprios beneficiários em exigir tanto qualidade como economia no desenvolvimento dos projetos habitacionais.”

Que estas experiências recentes que fizeram a habitação social convalescer no país possam fazer coro com aquelas dos pioneiros trazidas por esta intensa publicação, contribuindo para o atendimento do déficit e a construção de um país digno para todos. Há ainda muito que se desbravar para que as reais necessidades dos brasileiros deixem de ser inaudíveis por aqueles responsáveis pela produção habitacional.
 


Maria Teresa Diniz  é arquiteta e urbanista, mestre em geografia pela Université Panthéon-Sorbonne. Atualmente, é coordenadora executiva do USP Cidades e professora no Curso de Especialização "Planejamento e Gestão de Cidades" do PECE Poli.

 

Veja também:

:: O arquiteto e urbanista Nabil Bonduki fala sobre os livros Os pioneiros da habitação social

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