Sesc SP

postado em 15/02/2013

O teatro como travessia

<i>A hora e a vez de Augusto Matraga</i> (1986). Marlene Fortuna, Raul Cortez.
A hora e a vez de Augusto Matraga (1986). Marlene Fortuna, Raul Cortez.

      


Em Antunes Filho: poeta da cena, o fotógrafo Emidio Luisi e o crítico Sebastião Milaré registram a trajetória de um mestre inquieto.

 

De que serve um livro sem figuras nem diálogos?
(Lewis Carroll. Alice no país das maravilhas)

 

Antunes Filho é um dos nomes mais importantes da primeira geração de encenadores modernos do Brasil, cujo grande desbravador foi o polonês Zbigniew Ziembinski, responsável pela direção de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, em 1943. Consolidando seu prestígio pouco a pouco, desde que abraçou o teatro profissionalmente, em 1953, Antunes criou, na primeira fase de sua carreira, espetáculos memoráveis como O diário de Anne Frank, de Francis Goodrich e Albert Hackett (1958), Yerma, de Federico García-Lorca (1962), Vereda da salvação, de Jorge Andrade (1964), e Peer Gynt, de Henrik Ibsen (1971).

Uma significativa mudança de rumo viria em 1978, quando ele transpôs para o palco a rapsódia modernista de Mário de Andrade, Macunaíma, concebendo um dos mais inventivos documentos da cultura brasileira da segunda metade do século XX. Durante a criação do espetáculo, Antunes começou a sistematizar uma série de recursos de interpretação, procurando adequar algumas técnicas de corpo e voz às condições socioculturais do ator brasileiro. Assim, nasceu o grupo de teatro Macunaíma (batizado, primeiramente, de Grupo de Arte Pau Brasil), que, além de espetáculos bastante originais, passou a desenvolver também um respeitado núcleo de estudos teatrais.

No ano de 1982, o Sesc São Paulo criou o Centro de Pesquisa Teatral (CPT), cuja coordenação foi entregue a Antunes Filho. Reuniram-se, assim, as condições ideais para que as pesquisas cênicas promovidas pelo diretor e pelos integrantes do grupo Macunaíma (incorporado ao CPT) se aprofundassem, estendendo os limites do teatro para os domínios da filosofia, da estética, da história, da física e do orientalismo.

Com o objetivo de apresentar ao público leitor a trajetória do encenador, não somente por meio de um perfil biográfico-crítico cuidadosamente tecido, como também pela organização de uma primorosa seleção fotográfica de cenas de espetáculos e de bastidor, as Edições Sesc São Paulo lançam Antunes Filho: poeta da cena, um belo tributo ao mestre assinado pelo pesquisador Sebastião Milaré e pelo fotógrafo Emidio Luisi.

Além de reconstituir o itinerário de um artista cujo estilo cênico é inconfundível, a publicação oferece ao leitor informações e reflexões acerca da própria história do teatro brasileiro. O texto de um dos mais respeitados especialistas da obra e do método de Antunes e as imagens captadas pela lente de um fotógrafo íntimo dos palcos proporcionam a estudiosos e interessados em geral momentos inegáveis de fruição estética. Milaré e Luisi, que acompanham o trabalho de Antunes há mais de trinta anos, também homenageiam os intérpretes que marcaram presença em seus espetáculos. Reconhecer as figuras de Cacá Carvalho, Giulia Gam, Tássia Camargo e Bia Lessa, clicadas em destaque ou integrando os grandes agrupamentos de atores que são a marca registrada do diretor, é um desafio para os olhos e um exercício para a memória.

Sebastião Milaré é jornalista, crítico e pesquisador de artes cênicas. Por mais de quinze anos foi curador de teatro do Centro Cultural São Paulo e nas últimas décadas tem publicado ensaios em periódicos do Brasil e do exterior. É autor de Antunes Filho e a dimensão utópica, da editora Perspectiva e de Hierofania: o teatro segundo Antunes Filho, Edições Sesc São Paulo. Emidio Luisi nasceu na Itália e veio para o Brasil com sete anos de idade, onde iniciou a carreira de fotógrafo, em meados da década de 1970. Dedicando-se à fotografia de palco há mais de três décadas, publicou os livros de fotografia Ballet Stagium 35 anos e Kazuo Ohno.

Ao optar por uma narração enxuta e elegante, que articula com muita habilidade dados históricos e reflexões críticas diligentemente traçados em torno da vida de José Alves Antunes Filho, o perfil traçado por Sebastião Milaré presta um enorme serviço à memória do teatro brasileiro. Por meio dele, ficamos sabendo que o moleque Zequinha era um aficionado por futebol e por cinema e que foi sua mãe a responsável por apresentar-lhe o mundo do teatro, onde ele pode testemunhar a atuação de grandes nomes do passado como Mesquitinha, Dulcina de Moraes e Procópio Ferreira. Segue-se a essa cuidadosa recuperação dos verdes anos do diretor a fase em que ele dirigiu espetáculos amadores, após uma brevíssima experiência como ator. Chega, então, o momento da estreia profissional, a 2 de outubro de 1953, quando Antunes dirige Week-end, de Noel Coward, para a companhia de teatro de Nicette Bruno. Quase três dezenas de espetáculos depois, é a vez da explosão criativa de Macunaíma, a pioneira experiência que iria lançar as bases do Centro de Pesquisa Teatral, provavelmente a mais bem-sucedida parceria brasileira entre um criador individual e uma instituição tão atuante no panorama sociocultural do País como o Sesc São Paulo. São os anos em que Antunes busca aprofundar sua compreensão do teatro a partir de uma investigação acurada sobre a própria existência humana.

Já os 239 instantâneos fotográficos produzidos por Luisi reúnem imagens de espetáculos – de Macunaíma (1978) a Policarpo Quaresma (2010) –, retratos do diretor e cenas dos bastidores de ensaios e montagens. Ao examinar as fotos das peças, o leitor atento poderá testemunhar a teatralidade vibrante que emana dos corpos dos atores. No prefácio da obra, o jornalista Antonio Gonçalves Filho chama a atenção para o fato de o cinema e o teatro andarem juntos no palco de Antunes, “o que talvez explique as infindáveis, mas necessárias, sessões dos clássicos a que submete seus atores do CPT”. “É interessante notar”, continua o jornalista, “como esses mesmos atores, nas fotos de Luisi, refletem os rostos expressionistas dos filmes de [Carl] Dreyer, ou como os cenários despojados das peças de Antunes fazem lembrar o ascetismo visual da nouvelle vague francesa”. O material reunido confirma o paradoxo: uma fotografia de teatro ousa flagrar o vacilante senso de realidade que serve de base ao fenômeno teatral, procurando eternizá-lo.

Vale ressaltar que a edição, além de identificar cuidadosamente cada um dos atores retratados nas fotos (a lista é extensa), organiza ainda uma cronologia completa dos trabalhos de Antunes para teatro, televisão e cinema, mencionando os inúmeros prêmios conquistados por ele ao longo de meio século de atividades.

Não somente pelo perfil biográfico-crítico exemplar, mas também pela beleza das imagens captadas, Antunes Filho: poeta da cena é item obrigatório em qualquer bibliografia sobre o teatro brasileiro. Para uma sociedade obstinada em espetacularizar tudo – das ações mais banais às ocorrências mais graves –, conhecer a obra de um homem dedicado a compreender as leis fundamentais que regem um espetáculo teatral (fatia privilegiada da vida social) é exercício dos mais bem-vindos.

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