Sesc SP

postado em 19/02/2013

Por estas linhas bem traçadas

Pio & Mário

      


Pio & Mário: diálogo da vida inteira reverencia a memória, a mais épica das faculdades humanas

 

Afirma Walter Benjamin em "O narrador", seu famoso ensaio sobre a arte de contar histórias, que o homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado, abreviando até mesmo a narrativa ao criar a short story. Fazendo ressoar a constatação do crítico alemão, expoente da chamada Escola de Frankfurt, para muito além do tempo em que ele viveu, poderíamos dizer que o homem contemporâneo abreviou também as cartas de outrora, criando o e-mail, veículo diário para toda sorte de sínteses, escassez, abreviações. Assim, aquele mundo de frases torrenciais e ideias soltas que marcou a troca de correspondências até meados do século XX desapareceu para dar lugar à virtualidade dos tempos acelerados e lacônicos de hoje em dia.

A epistolografia – prática de escrever e trocar cartas (uma atividade que exige doses generosas de discrição e interioridade) – sempre serviu como uma preciosa fonte de estudos cujos objetivos são inúmeros: compreender o contexto de uma época, conhecer o processo criativo de um artista, entender de perto certas escolhas pessoais e idiossincrasias... Para muitos escritores, intelectuais, artistas e homens públicos, a importância do intercâmbio epistolar assumiu proporções grandiosas. Dedicar um tempo vital do cotidiano à correspondência com os amigos poderia significar para eles também o exercício da vigilância crítica nas esferas da atividade política, intelectual, artística.

A carta trilha o caminho sinuoso entre um terreno estritamente pessoal e privado – quando corresponde à troca recíproca de informações e intimidades – e um âmbito marcadamente de interesse público. As cartas do primeiro tipo representam conversas íntimas entre amigos, tendo por modelo ancestral as famosas epístolas a que se dedicava Cícero, na Roma antiga. No Brasil, embora o gênero epistolar não seja muito valorizado (muitas correspondências privadas descansam no fundo das gavetas dos espólios mais inescrutáveis), constituem acervos inestimáveis as cartas escritas por Machado de Assis – reveladoras pelo tom íntimo de um escritor obstinado em se esconder –, Guimarães Rosa – verdadeiros ensaios sobre poética e tradução – e Mário de Andrade – talvez os mais importantes documentos epistolares nacionais não somente do ponto de vista literário como também pela perspectiva da expressão de um pensamento crítico e estético altamente elaborado. As cartas que o autor de Macunaíma trocou com Manuel Bandeira, Augusto Meyer e Alceu de Amoroso Lima ganharam, seis décadas após a morte de Mário, uma companhia de peso graças a uma estudiosa de literatura brasileira e duas editoras dispostas a trabalhar em parceria.

Pio & Mário: diálogos da vida inteira. A correspondência entre o fazendeiro Pio Lourenço Corrêa e Mário de Andrade (1917-1945) é a realização de um projeto editorial coletivo, cujo principal objetivo é dar a conhecer ao público leitor brasileiro uma obra que, de outro modo, permaneceria inédita ou restrita a uma pequena confraria de pesquisadores. Durante muitos anos, a professora Gilda de Mello e Souza reuniu material relativo ao fazendeiro Pio, seu tio-avô paterno, com a intenção de escrever um estudo pormenorizado sobre ele, mas infelizmente não conseguiu levar o projeto adiante. Em 2007, então, a pesquisadora Denise Guaranha, após o estudo das cartas trocadas entre Pio e Mário, defendeu na área de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) a dissertação de mestrado A riqueza das diferenças, pesquisa orientada pelo professor Marcos Antonio de Moraes, coorientada pela professora Telê Ancona Lopez e subsidiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Em 2009, a Editora Ouro sobre Azul e as Edições Sesc São Paulo juntaram seu entusiasmo ao projeto com a certeza de que a publicação desta copiosa correspondência escreveria mais uma capítulo da história da cultura brasileira, que todos sabem padecer ainda de inúmeras lacunas. A edição foi especialmente preparada de acordo com a metodologia desenvolvida pela Equipe Mário de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Mário de Andrade (1893-1945) é daqueles escritores plurais e multifacetados (“Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cincoenta”) que, ao longo de 51 anos de vida, dedicou-se aos mais variados interesses intelectuais. Tendo sido, em 1922, um dos principais idealizadores da Semana de Arte Moderna, ele aliou uma vida de intensa criação literária ao estudo apaixonado da música, das artes plásticas e do folclore brasileiro. Já Pio Lourenço Corrêa (1875-1957), ao contrário dos demais correspondentes de Mário de Andrade, além de ser dezoito anos mais velho, não é um escritor, artista ou intelectual conhecido. Fazendeiro, viveu em Araraquara e, desde menino, foi grande amigo de Carlos Augusto de Andrade, pai de Mário. Da expressiva correspondência trocada entre ambos nasce o testemunho privilegiado de uma convivência, de uma intimidade compartilhada, que desenha a um só tempo um homem público e seu amigo particular. Nas cartas, o escritor e professor sempre de prontidão para acolher novos talentos, dono de humor selvagem, amante incondicional de uma boa conversa, encontra um intelectual por vocação, que construiu aos poucos como autodidata um saber de grande solidez e coerência não apenas no terreno predileto dos estudos linguísticos, mas também em ciências naturais.

Pio & Mário: diálogos da vida inteira... presta um inestimável tributo à cultura brasileira, por meio da preservação da memória, a mais épica das faculdades humanas. Nas cartas, unem-se a alta sensibilidade dos correspondentes e o acentuado gosto de ambos pelas coisas brasileiras. Mário e Pio comentam acontecimentos públicos de maneira muito viva ao lado da revelação de fatos pessoais, numa feliz conciliação que retrata quase trinta anos da vida do País – a correspondência entre eles durou de 1917 a 1945.

Antes de começar a ler as correspondências propriamente, o leitor é brindado com dois textos curtos essenciais. Em “Traços biográficos”, Antonio Candido recupera a trajetória do fazendeiro ao mesmo tempo em que tece observações críticas valiosas a respeito do perfilado. Em “O arcaico e o moderno: história de uma amizade”, Gilda de Mello e Souza alia a apresentação de dados biográficos a uma acurada análise a respeito do aspecto afetivo da correspondência e da estrutura funcional assumida pelo conjunto das missivas. Vale destacar ainda a riquíssima iconografia reproduzida com especial qualidade técnica nas páginas do livro, recolhida de acervos fotográficos públicos e privados.

Pio & Mário: diálogos da vida inteira... é daquelas publicações que devem ser celebradas. Para o estudioso da literatura brasileira, em geral, e da obra de Mário de Andrade, em particular, o livro é peça obrigatória. Para o especialista em epistolografia, um verdadeiro achado editorial. E para todos os interessados na preservação da memória histórica de um país tão afoito por se renovar a cada dia, apagando os vínculos com o passado, a obra se transforma em uma verdadeira experiência significativa, levando o leitor a descobrir e “pensar nos tempos de antes de nascer”.

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