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postado em 11/01/2016

Noções de cultura

Capa a partir da Série Telas Abstratas. Arcangelo Ianelli, 1980. Acervo Sesc de Arte Brasileira
Capa a partir da Série Telas Abstratas. Arcangelo Ianelli, 1980. Acervo Sesc de Arte Brasileira

      


Sociologia da cultura, de Matthieu Béra e Yvon Lamy, constitui passo importante para a superação da enorme lacuna, que temos no Brasil, de títulos nessa área

Por Isaura Botelho*



Trata-se de um manual – no melhor sentido do termo – que oferece uma competente revisão das teorias em torno da noção de cultura, esclarecendo a maneira como certas definições foram se constituindo e sendo utilizadas. Os autores fazem o longo trajeto desde o século XIX a partir da tradição intelectual alemã que, já no século XVIII, havia feito a defesa da diversidade cultural, como forma de resistência à hegemonia política francesa e às postulações universalistas do iluminismo. Dessa forma, tomou-se a especificidade da cultura alemã – o que se expressara no elogio dos autores românticos à cultura popular (folclore) e outras manifestações do espírito alemão (Voltergeist) – como critério de formação da identidade nacional, no momento da unificação tardia daquele país. Enquanto na sociologia alemã a cultura é, antes de tudo, “...um princípio espiritual e normativo a desvendar e a revelar em todos os povos” (p.26), a antropologia anglo-saxã, por exemplo, também no fim do século XIX, aborda a cultura sob um prisma essencialmente descritivo, que classifica como elementos da cultura os fatos da língua, o mundo das ideias e as práticas.

Os autores optam por trabalhar a cultura, não a partir de uma discussão puramente teórica sobre as possibilidades de defini-la, mas concentrando seu foco na questão dos bens e serviços culturais. Essa necessidade de se apoiar numa dimensão, digamos pragmática, da cultura que se expressa no cotidiano parece ser, sociologicamente, uma forma bem eficaz de introduzir o universo das práticas culturais, das profissões e das políticas – tópicos que vão constituir partes da presente obra. Essa “cultura objetiva” é, de fato, a dimensão que circunscreve de maneira clara as atividades de apoio à criação, de gestão, de circulação e de difusão bem como a de pesquisa em torno desse setor que se desenvolveu ao longo do século XX, principalmente numa Europa palco de duas guerras mundiais e com uma população necessitando de uma especial atenção dos diversos governos nacionais.

Cinco são as divisões temáticas que dão conta desses tópicos, com uma minuciosa segmentação da diversidade de categorias implicadas em cada uma delas. Assim, a primeira parte é dedicada às origens de uma sociologia dos bens culturais, tratando com muita acuidade as aplicações dos conceitos ao novo campo que se institui, seus efeitos no plano político e as conseqüências no plano da sistematização do conhecimento. Inevitável, portanto, passar por Max Weber, Émile Durkheim e Karl Marx, pilares da teoria social, dentre todos os demais autores referenciados ao longo dessa primeira parte da obra e que nos acompanharão durante toda a leitura, quer por eles mesmos quer por sua influência nos demais pensadores.

Na segunda parte do livro, dedicada às práticas e aos públicos da cultura, os autores, a partir dos bens culturais, analisam as estatísticas públicas nesse campo, a origem das pesquisas sobre as práticas culturais dos franceses – que veio a servir de modelo para outros países – passando pelo estudo dos profissionais de cada um dos setores artísticos, bem como aquelas pesquisas sobre economia da cultura. A grande responsabilidade por esse grande investimento francês se deve à criação de um serviço – posteriormente um departamento – voltado para a pesquisa e a prospecção de temas que acompanhassem os movimentos nas práticas culturais da população, no seio do ministério da cultura da França (Département des études de la prospective et des statistiques – DEPS). A suposição de seu fundador (e diretor por trinta anos), Augustin de Girard, era a de que estudos aprofundados que lançassem mão das metodologias utilizadas nas ciências sociais e humanas permitiriam detectar as necessidades latentes e identificar as motivações por trás dos comportamentos individuais. Desta forma, ele imaginava contribuir para o planejamento da alocação de orçamentos e investimentos futuros. Ao lado desse aspecto, seria também fundamental acompanhar as mutações dos modos de vida, de maneira a orientar programas no futuro. Esta utilização da pesquisa poderia trazer consequências consideráveis: uma delas seria a introdução de uma nova maneira de se tomar decisões nas políticas públicas na área da cultura.

Assim, descrever, explicar e compreender, ações articuladas que os autores apontam como “três grandes direções da pesquisa em ciências sociais”(p.99), são também os métodos empregados nos estudos realizadas pelo DEPS  e que Béra e Lamy analisam minuciosamente, discutindo os tipos de pesquisa produzidas não só por esse organismo como por instituições (museus, por exemplo) e também por acadêmicos. Reconhecem que o estímulo por gerar conhecimento nessa área depende muito das partes envolvidas: quando são instituições que dependem da existência de públicos, o interesse é muito maior e direto, permitindo uma periodicidade nesses estudos que auxiliam a constituição de séries comparativas. Isso é fundamental do ponto de vista do planejamento e das políticas. No caso dos acadêmicos, essa responsabilidade não existe e segue, portanto, uma lógica diferente, não comprometida com a “utilidade” do conhecimento produzido. Algo singular e mais amplo em sua repercussão, no entanto, ocorre no caso da realização de pesquisas sob encomenda do ministério da cultura ou de outras instituições. Esse foi o caso de Pierre Bourdieu (cuja metodologia influenciou de maneira determinante os estudos das práticas culturais realizadas pelo DEPS), com seu estudo sobre os públicos dos museus de arte europeus; o caso de Michel de Certeau, com sua pesquisa sobre as práticas do cotidiano; o de Pierre-Michel Menger, sobre os profissionais do espetáculo; o de Raymonde Moulin sobre o público de arte contemporânea, todos por encomenda do DEPS. Aqui, podemos incluir também o estudo de Nathalie Heinich, sobre as rejeições do público à arte contemporânea, pesquisa diretamente contratada pela Direção de Artes Plásticas do ministério.

Essa segunda parte do livro dedicada aos públicos e às práticas se encerra com o estimulante capítulo 6, no qual os autores escolhem três modelos interpretativos, mobilizando autores clássicos fundadores de orientações de análise que estão presentes no trabalho de sociólogos contemporâneos, buscando esclarecer, de forma cuidadosa, as filiações destes com seus conceitos e, finalmente, apontando as diferenças entre os três modelos.

A terceira parte da obra é dedicada às profissões culturais e às questões que delas decorrem, traçando um panorama daquilo que se convencionou, mais recentemente, chamar de cadeia produtiva do setor. Com grande clareza pedagógica discutem uma pretendida singularidade dessas profissões reivindicada por seus protagonistas. Os autores esclarecem que, na verdade, essa ideia se baseia no modelo do artista criador, que vai, em círculos, contaminando, progressivamente, todas “as dimensões da atividade organizada”, no dizer de Béra e Lamy. Eles chamam a atenção para o fato de existirem poucos estudos que permitam esgotar as especificidades de cada uma dessas profissões, o que também pode contribuir para diminuir a carga romântica sobre as diversas carreiras e os modos de vida desses sujeitos. Citam os trabalhos de Moulin e Menger que mostram que, tal como em outras profissões, também nas atividades  artísticas existe progressão de carreira, reconversões materiais e interesses econômicos. O mesmo ocorre com relação a ter reconhecimento, a ser singular, a ter sucesso.

As políticas são objeto da quarta parte do livro. Muito centrado nas políticas culturais na França e os desafios implicados nas políticas de desconcentração de recursos e responsabilidades – transferidos para as Delegações Regionais do Ministério da Cultura – e os efeitos e discussões sobre a democratização do acesso à cultura. Embora focada numa experiência particular – a francesa –, as discussões são muito úteis, seja pelo fato de a França ter sido o primeiro país a criar um organismo em nível ministerial para tratar dos assuntos da cultura, seja porque o modelo francês vem alimentando o setor cultural em nível internacional com suas políticas, paradigmas e experiências. O fato da sede da UNESCO estar sediada em Paris parece ter um grande papel nessa difusão de ideias mediante suas conferências internacionais e nos seus diversos documentos e publicações. Mesmo se tratando de um caso específico, ele nos convoca a uma reflexão produtiva sobre as nossas práticas locais.

Finalizando esse minucioso e produtivo trabalho sobre o “estado da arte” na constituição e evolução dos conceitos, dos estudos realizados e dos resultados no escopo da sociologia da cultura, Béra e Lamy propõem três modelos teóricos que se traduzem em interessantes maneiras de pensar a cultura na contemporaneidade: a cultura como campo, como mundo e como mercado. Como representantes de cada uma delas, temos, respectivamente, Pierre Bourdieu – cujo trabalho estabeleceu padrões para os estudos realizados em torno das práticas culturais –, Howard Becker e Raymonde Moulin.

Essa obra poderá responder, de maneira plenamente satisfatória e instigante, a uma demanda por informação e reflexão para estudantes na área das ciências humanas, gestores e produtores culturais – nos mais diferentes níveis – e públicos interessados em aprofundar seus conhecimentos sobre as lógicas que presidem as práticas e as políticas culturais.

 


*Isaura Botelho é gestora cultural, especializada em planejamento e formulação de políticas públicas de cultura, ligada a instituições do governo federal como a Funarte, a Biblioteca Nacional e o Ministério da Cultura.

 

Veja também:

:: Trechos do livro

 

 

 

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