Sesc SP

postado em 14/03/2013

Retratos em branco e preto

Alaíde Costa
Alaíde Costa

      


Livro do fotógrafo Marco Aurelio Olimpio confere ao olhar estatuto privilegiado para a fruição da MPB

 

A música popular brasileira trilhou, desde o início do século XX, um bem-sucedido caminho de interlocução sociocultural com o país, captando tendências, observando costumes, incitando à reflexão – o que levou à constituição de um valiosíssimo acervo sonoro por meio do qual se pode contar a história do Brasil, desde, pelo menos, a gravação de "Pelo telefone", um marco, diga-se de passagem, bastante conhecido. A priori, a primazia da fruição desse acervo caberia à audição de milhares de registros fonográficos, que tiveram início com os primeiros experimentos mecânicos da Casa Edson e se transformaram hoje na surpreendente variedade de mídias digitais que vivem a decretar o desaparecimento de um objeto de culto do passado: o “disco de MPB”. Entretanto, o desenvolvimento técnico das artes visuais – também ocorrido no início do século XX – rapidamente incrementou a percepção simbólica do universo da música popular: a ilustração, agradando de imediato aos olhos; a caricatura, captando o detalhe espirituoso; a fotografia, celebrando o efêmero e eternizando o instante. Logo, não se pode conceber o acervo sonoro da MPB sem levar em consideração um rico acervo visual que o acompanha. Assim, é preciso educar os sentidos para poder ouvir o que cantam as caricaturas de J. Carlos ou de Nássara e as fotografias de Mario Luís Thompson ou de muitos dos anônimos cujos registros fazem parte dos arquivos históricos, por exemplo.

O mesmo processo de reeducação dos sentidos experimentará o leitor de Álbum: imagens musicais, do fotógrafo Marco Aurelio Olimpio, que reúne mais de uma centena e meia de fotografias (precisamente, 154 imagens) de alguns dos nomes mais representativos da música popular brasileira, apresentando um amplo panteão no qual cabe tanto o peso da tradição representada por Dorival Caymmi quanto o frescor das experiências ainda em construção de Vanessa da Mata.

Desde muito cedo, Marco Aurelio aprendeu a observar o mundo apurando olhos e ouvidos. Dos pais herdou o gosto pelo chorinho e pelas canções populares; do irmão, o interesse pela fotografia. Durante a adolescência, o rádio foi um companheiro inestimável, proporcionando o que faz de melhor: o exercício da imaginação acústica. Entretanto, a coleção Música Popular Brasileira, que a Abril Cultural lançou na década de 1970, também exerceu forte influência sobre o fotógrafo. Fartamente ilustrados, os fascículos vendidos em bancas de jornal apresentaram ao jovem uma iconografia preciosa – além da audição das canções, era possível ali explorar visualmente o universo da MPB.

O início profissional de Marco Aurelio se deu por acaso. Ao fazer uma viagem, ele pegou emprestada uma câmera Minolta SR. A paixão pelo objeto foi tamanha que o jovem rapaz acabou comprando a máquina das mãos de quem a emprestou. Pouco depois, ele se inscreveria num curso básico de fotografia no Sesc Pompeia. Sabendo da paixão que o aluno dedicava à música popular, o professor, especialista em fotos de dança, um dia lhe mostrou uma fotografia que havia tirado do instrumentista Paulo Moura. Ao olhar a imagem, Marco disse para si próprio: “É isso o que quero fazer”. E por essas coincidências do destino, pouco tempo depois, acabou sendo contratado como laboratorista fotográfico do mesmo Sesc Pompeia, cuja programação musical parecia ser concebida especialmente para ele.

A partir de então, Marco passou a assistir a um número espantoso de shows de música popular brasileira realizados em São Paulo, sobretudo nas unidades do Sesc – o que levou o crítico Sérgio Cabral a escrever no prefácio da obra que não se lembra de qualquer espetáculo de que tenha participado ou a que tenha assistido na cidade no qual Marco Aurelio não estivesse por lá fotografando. 

Data de 1992 o registro mais antigo do livro – uma imagem de Zezé Motta, de perfil, em que sobressai o olhar radiante da atriz e cantora ao empunhar o microfone. No ano seguinte, a lente de Marco Aurelio registrou Chico Science dançando no palco, em atitude de plena vertigem corporal; Leni Andrade, em um momento de pausa, conduzindo solenemente o microfone para longe da boca; Emílio Santiago, trajando paletó e sorriso elegantes; e Dorival Caymmi, cuja gravidade da expressão fisionômica diante do microfone parece retratar mais a “triste Bahia” de Gregório de Matos do que a costumeira brejeirice que exala de suas canções... Segue-se a esses exemplos um rico manancial de instantâneos que prestam um serviço inestimável à história da atividade musical no Brasil.

O material fotográfico reunido no livro foi editado por dois especialistas em imagens: o fotógrafo e pesquisador Thales Trigo e a fotógrafa, jornalista e crítica Simonetta Persichetti. Diante da beleza das fotos, é possível imaginar o trabalho que ambos tiveram para deixar de fora muitas das imagens a que tiveram acesso. 

Além do já aludido prefácio de Sérgio Cabral – cujo entusiasmo pelo trabalho de Marco Aurelio constitui uma benção para um profissional certamente pouco conhecido fora do meio musical –, o livro apresenta uma bem-vinda entrevista realizada pelos organizadores com o fotógrafo na qual não somente é traçada sua trajetória pessoal e profissional como também são discutidos alguns temas relevantes para a compreensão da atividade fotográfica. Nessa entrevista, o esteta Marco Aurelio discorre sobre o compromisso com a imagem e o risco que sempre é captar aquele “instante fugidio” – de que tratou tão bem Clarice Lispector, no âmbito da expressão literária. Marco também desenvolve uma aguçada observação crítica a respeito do mundo do show business, para o qual vale mais a histeria do espetaculoso e a rapidez do descartável – elementos dos quais as fotos clicadas por ele passam longe. Vale destacar ainda a postura ética do fotógrafo, para quem o propósito essencialmente fotográfico e o compromisso documental devem sempre falar mais alto.

Não só por se dedicar a uma seara onde militam com talento raríssimos profissionais, mas também pela intensa beleza dos registros captados, a publicação de Álbum: imagens musicais deve ser celebrada. Para colecionadores e fãs de MPB, o livro é peça mais do que obrigatória. (Ao prazer tátil de manipular um disco cultuado corresponde aqui o prazer visual de se deleitar com a foto de um ídolo). Para o especialista em fotografia, a obra tem caráter didático. (A exploração dos efeitos de sentido que o jogo entre luz e sombra, por exemplo, pode proporcionar é admirável). Mas talvez seja para todos aqueles interessados em discutir o mundo contemporâneo que este Álbum dirija o que lhe é mais potencial. Para uma sociedade essencialmente visual que produz e descarta imagens com uma voracidade vertiginosa, poder repousar os olhos nas fotografias clicadas por Marco Aurélio e descobrir nelas a discreta irrupção do sublime é exercício dos mais bem-vindos. Pois como ensinam inúmeras cosmogonias, sábio é o homem que aprendeu a conviver com o tempo, aproximando-se dele com lentidão e estando atento para seu fluxo. Cada instante eternizado pelas lentes de Marco Aurelio parece justamente tratar disso.   

Galeria

Produtos relacionados