Sesc SP

postado em 29/09/2016

Admirável mundo novo

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Mutações: o novo espírito utópico, organizado por Adauto Novaes, percorre dois mundos paralelos, o do humanismo e o da pós-humanidade.

 

O nono título da série Mutações, organizada por Adauto Novaes para as Edições Sesc São Paulo, reverencia o conceito cunhado em um texto clássico da história do pensamento político – a Utopia, de Thomas Morus, que está completando cinco séculos de existência – ao mesmo tempo em que o analisa à luz das grandes questões contemporâneas. Em Mutações: o novo espírito utópico, Novaes convida 21 ensaístas brasileiros e estrangeiros a relacionarem as novas perspectivas advindas das mudanças tecnocientíficas e biotecnológicas ocorridas nas últimas décadas a diversas propostas utópicas da humanidade.

O vocábulo utopia ganhou vida própria a partir da publicação do pequeno livro do humanista Thomas Morus (1478-1535) em 1516. O jurista inglês, a quem não faltava vocação tanto para o sacerdócio quanto para a vida política, concebeu a palavra como resultado da fusão do advérbio grego “ou” (não) com o substantivo igualmente grego “tópos” (lugar), conferindo ao composto uma terminação latina. No relato fictício da obra, cujo título completo é Sobre a melhor constituição de uma república e a nova ilha de Utopia, a recém-descoberta ilha de Nenhures, situada em algum lugar do novo mundo, serve de motivo para que se discuta o que vem a ser uma república ideal. Não tardou muito para que os leitores atentos percebessem a ambiguidade do novo termo: utopia não somente quer dizer não lugar como também pode significar lugar da felicidade, por sua aproximação com o termo “eutopia”.

Assim é que há quinhentos anos a palavra vem cumprindo um longo percurso cheio de enigmas, como afirma o organizador da série Mutações em seu texto de introdução à obra: “Promessa, esperança, simulação antecipadora, horizonte de nossos desejos, a utopia tem um destino comum: a ‘severa e lúcida crítica da realidade’. O fundamento da utopia é, pois, a crítica do presente. Mas vemos hoje a construção de certo silêncio não só sobre o desejo utópico, como também de triste silêncio em torno do pensamento sobre a utopia”.

Os ensaios do livro – originalmente escritos para o ciclo de conferências homônimo, concebido e realizado pelo Centro de Estudos Artepensamento em 2015, ocorrido no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, São Paulo, Brasília e Curitiba – desafiam-se a percorrer os dois mundos da utopia, o mundo do humanismo e o mundo dos pós-humanos.

Em “Os dois caminhos da conversão utópica: a epoché ou a imagem dialética”, o pensador francês especializado em filosofia política Miguel Abensour pergunta-se como o homem se torna um animal utópico. Após examinar o conceito de conversão utópica à luz do ensaísmo de Walter Benjamin, Emmanuel Lévinas e Ernst Bloch, Abensour faz coro à revolução proposta por este último (que não quer pensar o tempo a partir da morte e sim pensar a morte a partir do tempo), concluindo: “O Dasein, ser-para-a-morte, seria substituído pelo humano utópico, o homem animal utópico, o ser-para-a-utopia. Como se a utopia, o porvir de utopia, oferecesse de súbito ao ente humano – aos entes humanos – sua possibilidade mais própria, mais insigne: a conversão utópica”.

Vladimir Safatle questiona, no ensaio “Viver sem esperança é viver sem medo ou contra a utopia”, se a utopia é mesmo necessária para defender a força de transformação da política. A fim de responder à questão, o professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP aborda o problema da utopia a partir das articulações entre tempo, política e afeto. “Há uma temporalidade própria à utopia, assim como há um circuito de afetos que é próprio ao seu regime de temporalidade. Lembrar desses pontos se justifica se aceitarmos que pensar a política é, principalmente, pensar o circuito de afetos produzidos pela vida social e que sustentam a constituição de vínculos”, afirma Vladimir, indagando-se: “Que tipo de afeto o tempo das utopias produz e o que tais afetos nos levam a fazer?”.

Em “Utopia e regeneração: a fênix, a aranha e a salamandra”, a filósofa francesa Catherine Malabou aborda o problema da utopia a partir da questão da cura, apresentada pela medicina regenerativa contemporânea que anuncia “a possibilidade de curar o ser humano sem contribuição exterior, sem medicamentos nem enxerto, utilizando simplesmente seu potencial regenerador, isto é, suas células-tronco”. A autora baseia-se em três momentos da história recente da filosofia – dialética, desconstrução e pós-desconstrução –, mobilizando, para apresentar sua leitura da questão utópica, as três figuras do restabelecimento que são a fênix, a aranha e a salamandra.

Mutações: o novo espírito utópico remete o leitor, de imediato, às perspectivas criadas pelas revoluções tecnocientíficas e biotecnológicas, isto é, ao futuro pensado pelo que se convencionou chamar de advento do pós-humanismo. Enfim, à criação de um novo homem que passaria a habitar o admirável mundo novo. Entretanto, a segunda perspectiva implícita no livro é a de que no mundo contemporâneo, absolutamente dominado pela racionalidade técnica, a atividade de pensar também se converte em utopia quando se sabe que o espírito – ou a inteligência – tende a se tornar coisa supérflua. A utopia, como propõem os ensaios do livro, consiste na energia empregada pelo espírito sobre si mesmo, que se expressa em cada ação pensada.

 

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