Sesc SP

postado em 26/02/2013

O corpo como experiência

© Arquivo da família Lecoq
© Arquivo da família Lecoq

      


Livro do ator, mímico e professor francês Jacques Lecoq propõe uma viagem ao território da criação teatral

 

O mercado editorial brasileiro vive uma situação bastante curiosa em relação ao segmento que publica ensinamentos e reflexões sobre a prática do teatro com vista a atender ao interesse de estudantes, atores e professores em geral. Se, por um lado, o incremento da pesquisa universitária em torno da criação cênica tem feito chegar às livrarias uma expressiva quantidade de obras oriundas de monografias, dissertações e teses; por outro, as lições dos grandes mestres padecem do mal crônico de saírem de circulação quase que sazonalmente. Exceção feita aos dois livros do diretor russo Constantin Stanislavski que mais persistem nas prateleiras (A preparação do ator e A criação de um papel), parece incompreensível a ideia de que o interessado tenha tanta dificuldade de encontrar em livrarias, e mesmo em sebos, alguns títulos preciosos de mentores incontestes como o polonês Jerzy Grotowski e o brasileiro Augusto Boal, por exemplo. 

Eis, então, um motivo mais do que suficiente para saudar a chegada de O corpo poético: uma pedagogia da criação teatral, que reúne em livro editado pela primeira vez no Brasil algumas das lições seminais que constituem a base teórica e prática do método desenvolvido por Jacques Lecoq (1921-1999) para o treinamento do ator. Em 1941, quando ainda era aluno na escola de educação física de Bagatelle, Lecoq foi apresentado ao mundo do teatro pelo amigo Jean-Marie Conty, vindo a assistir as demonstrações feitas por Jean-Louis Barrault em suas performances de “o homem-cavalo”. Tal experiência o marcou profundamente, e o até então ginasta resolveu, a partir de sua vivência no esporte, investigar o corpo humano como instrumento de interpretação e expressão do ator. Se, em 1947, ele já ensinava expressão corporal na escola criada por Barrault; em 1956, seria a vez de fundar seu próprio centro de estudos: a Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq, na qual viria a sistematizar suas pesquisas, criando um dos métodos mais inovadores e eficientes de treino de atores ainda em voga. Longa é a lista de artistas em franca atividade nos dias de hoje que foram formados pelo mestre e estabeleceram com seu método uma relação de rica interlocução. Ariane Mnouchkine, Steven Berkoff e Geoffrey Rush são alguns deles.

O material reunido no livro nasceu das numerosas entrevistas concedidas por Lecoq a Jean-Gabriel Carasso, seu ex-aluno, e ao professor Jean-Claude Lallia, do Instituto Universitário de Formação de Docentes da Academia de Créteil. Escrito em linguagem clara e objetiva, mas sem abrir mão do registro poético que caracteriza o estilo dos textos recheados de sabedoria, o livro se divide em quatro partes. A primeira ("A viagem pessoal") começa com o itinerário percorrido por Jacques Lecoq do esporte ao teatro e termina com uma breve, mas espessa, defesa da doutrina que sustenta a Escola Internacional de Teatro. Na segunda parte ("O mundo e seus movimentos"), são descritos os métodos e as técnicas com os quais os alunos entram em contato no primeiro dos dois anos que compreende a formação integral na escola. A terceira parte ("Os caminhos da criação") trata das atividades desenvolvidas pelos poucos escolhidos que chegam ao segundo ano. (Somente um terço dos ingressantes é selecionado para dar prosseguimentos aos estudos). Na última parte ("Aberturas"), descrevem-se brevemente as perspectivas futuras dos egressos da escola.

Além de entrar em contato direto com o método de Lecoq (descrito em tom rigoroso na explanação dos conceitos e inventivo no uso das imagens poéticas – marcas que a tradução brasileira prima por preservar), o leitor poderá usufruir da exposição criteriosa e instigante de alguns conceitos fundamentais para a arte do ator, normalmente tratados somente pelo viés teórico. É o caso da provocante especulação que Lecoq faz dos chamados “grandes territórios dramáticos”. Por meio dela, as noções de melodrama, commedia dell’arte, bufão, tragédia e clown são diligentemente esmiuçadas, para serem ampliadas a partir de uma perspectiva prática por excelência: a da pedagogia do corpo. Igualmente estimulante é a definição de máscara neutra, experiência que constitui uma espécie de sustentáculo do método de Lecoq, e sobre a qual ele reflete com o devido rigor crítico – o que evita, e mesmo anula, o fácil terreno da mistificação.  

Pelo ineditismo do assunto no mercado editorial brasileiro e pela vibrante originalidade com que trata os estudos teatrais, a publicação de O corpo poético é em si um acontecimento dos mais relevantes. Entretanto, o que chama a atenção durante sua leitura é o poder que as reflexões de um artista e pedagogo da envergadura de Lecoq têm de despertar o interesse não somente do especialista, do estudioso, do acadêmico. Os livros dos grandes mestres formadores, sobretudo daqueles que trabalham com a criação cultural e artística em sentido amplo, parecem sempre transcender o terreno das obras concebidas para iniciados. Deles exala continuamente uma atmosfera de tenro humanismo, por meio do qual o assunto específico é ampliado pela lente do interesse destemido a respeito da vida humana, da franca reflexão acerca do indivíduo e do seu “ser e estar” no mundo. Assim é que os escritos de Stanislavski interessam demais também à psicologia, como os de Artaud à filosofia, os de Boal à pedagogia e os de Grotowski à antropologia – somente para ficarmos em exemplos mais do que conhecidos.

Deste modo, a leitura de O corpo poético nos leva ao exame crítico de certas questões essenciais da contemporaneidade. A partir de algumas considerações sobre a exata medida entre interioridade e exterioridade, Lecoq postula que os atores devem interpretar consigo mesmos e não a si mesmos. Mas a discussão se estende e ganha contornos mais filosóficos. Impossível não pensar na “exacerbação da singularidade” que marca o homem do século XXI como um ser ególatra e autorreferente, quando Lecoq, partindo da diferença entre expressão e criação, adverte que “o eu sempre é demais”. 

Ao falar da concentração necessária ao trabalho criativo e do exame cerrado de si mesmo que o ator deve fazer preceder à expressão, o mestre defende a ideia de que “o silêncio vem antes da palavra”. Então, podemos refletir sobre o valor do silêncio e do autoisolamento em uma sociedade para a qual estar vivo é estar conectado em rede, trocando infinitas e obsessivas emissões ruidosas.

Por essas e outras razões, a leitura de O corpo poético não se restringe a atores, diretores e estudiosos de teatro. O livro se dirige também a públicos mais amplos. Professores hão de extrair dos inventivos exercícios de Lecoq muitos subsídios para suas práticas em sala de aula. Estudiosos da dança e do esporte irão reconhecer no método o direito pleno àquele tipo de atletismo afetivo que concebe o corpo, a priori, como uma forma poética. Por fim, todo não ator com vontade de aprender algo sobre esse ainda grande desconhecido que é o corpo humano (a despeito da obstinação contemporânea em querer reduzi-lo a uma máquina hedonista), terá nas páginas de O corpo poético inúmeros tópicos para reflexão. “Como primeira leitura, temos apenas a vida”, dizia Lecoq aos estudantes no estágio inicial de sua formação. Como pedra angular desses ensinamentos e reflexões é mesmo a vida humana que salta das páginas do livro e contamina o espírito do leitor com uma atmosfera de pura poesia.
 

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