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postado em 27/02/2018

A palavra que toca o corpo

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No livro Meu alfabeto: ensaios de literatura, cultura e psicanálise, Julia Kristeva defende a conquista da singularidade para fazer frente ao mal-estar universal

Por Alain Mouzat*

 

Talvez Julia Kristeva seja mais conhecida por seus trabalhos sobre a linguagem e, particularmente, por sua Revolução da linguagem poética, de 1977. Porém, em Meu alfabeto: ensaios de literatura, cultura e psicanálise, que reúne textos produzidos recentemente e em diversas oportunidades, a reflexão sobre a linguagem não está ausente. Ela constitui um veio importante que percorre todos os textos e é dominada por uma urgência: a de radiografar a subjetividade contemporânea marcada, por um lado, pela globalização e a hiperconetividade – multiplicando, assim, nosso poder de saber e de fazer –, e, por outro, pela perda das referências patriarcais e a desagregação do simbólico e do laço social.

Como afrontar o mal-estar psíquico que assola todas as culturas e as “doenças da idealidade” de que sofre a juventude, como as anorexias e as bulimias, as violências e os integrismos, as diversas toxicomanias? Julia Kristeva responde: é preciso privilegiar a dimensão semiótica da linguagem, privilegiar a palavra que toca o corpo e que age na linguagem poética ou na psicanálise. Trata-se de encontrar a inscrição da letra no corpo que faz com que o homem escape à pura dimensão biológica a que algumas evoluções da ciência parecem querer reduzi-lo.

Julia Kristeva sempre se valeu da teoria psicanalítica para pensar a dimensão semiótica da linguagem – isto é, o modo de inscrição do sujeito na linguagem –, mas, aqui, a teoria psicanalítica parece se tornar a principal ferramenta de análise das mudanças contemporâneas e o principal meio de traçar vias apontando soluções.

Frente ao mal-estar universal, não pode haver remédio genérico. Será a conquista da singularidade, e não mais do universal, que permitirá ao homem construir suas soluções sem a garantia da lei da ordem paterna e das identificações congeladas. Isso se dará no multiverso, na multiplicidade das culturas e nas convivências dos heterogêneos, em um humanismo renovado, ainda a ser inventado e no qual a mulher terá papel fundamental.

Os textos de Meu alfabeto permitem acompanhar esse work in progress. Não são somente ensaios analíticos, mas textos de articulações, de diálogos com as instituições religiosas, de intercâmbios de culturas, de aggiornamento da teoria psicanalítica e de convocação da literatura para alimentar a leitura de nosso presente. Uma obra de reafirmação da liberdade singular de Julia Kristeva.

 


*Alain Mouzat é professor do departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo. Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.

 

Veja também:

:: trecho do livro

 

 

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