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postado em 08/03/2018

Ofício da leitura

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Ao analisar sua presença na própria literatura e em documentos de época, Alberto Manguel decifra as várias encarnações do sujeito que lê em O leitor como metáfora: o viajante, a torre e a traça

Por José Geraldo Couto*

 

Desde a origem da escrita, há cerca de cinco mil anos, o ato de ler carrega consigo uma infinidade de significados simbólicos e práticos para os diferentes povos e civilizações. Neste alentado ensaio, Alberto Manguel traça com graça e clareza um inventário desses inúmeros sentidos, desvelando as metamorfoses experimentadas pela leitura ao longo dos séculos no imaginário dos indivíduos e das comunidades.

Dos remotos tempos da epopeia mesopotâmica de Gilgamesh às publicações eletrônicas, de Homero às vanguardas do século XX, da Bíblia à internet, essa figura singular, o leitor, tem sido visto alternadamente com admiração, desconfiança ou escárnio. Analisando sua presença na própria literatura e em documentos de época (o que inclui representações plásticas como gravuras, pinturas, esculturas e monumentos), Manguel enfeixa em três metáforas principais as várias encarnações do sujeito que lê: o leitor como viajante, o leitor refugiado na torre de marfim e o leitor como “traça de livros”, ou o que no Brasil chamaríamos de “rato de biblioteca”.

A leitura como viagem, e consequentemente o livro como uma estrada a percorrer, é um dos tropos mais antigos e persistentes da literatura, como nos mostra o autor. Está presente, por exemplo, em textos do Velho Testamento e tem como correlata a ideia do universo como um livro escrito por Deus, que o homem deve aprender a decifrar. Uma das mais célebres viagens literárias é a jornada metafísica empreendida por Dante em sua Divina comédia, e não é por acaso que Manguel se detém longamente nela e em suas reverberações séculos afora.

A metáfora da “torre de marfim” só ganhou essa forma textual no século XIX, mas as origens da ideia remontam pelo menos ao grego Demócrito, que no século V antes de Cristo instalou-se numa choupana para se isolar da agitação do mundo e refletir melhor sobre a vida. No capítulo dedicado a essa imagem do leitor que se refugia do alvoroço do mundo o grande protagonista é o príncipe Hamlet da tragédia de Shakespeare. Mas encontramos ecos da metáfora em escritores como Montaigne e Virginia Woolf, sem falar nos eremitas cristãos.

A terceira parte é dedicada ao leitor como um devorador de livros que, ocasionalmente, acaba devorado por eles. Don Quixote de la Mancha, criação imortal de Miguel de Cervantes, tornou-se o protótipo do indivíduo que, por conta de suas leituras, perde a noção da realidade e passa a viver num mundo de fantasia. Mas Manguel rastreia as inúmeras nuances e gradações nesse processo de absorção do leitor pelo livro, analisando casos diversos como os de Emma Bovary e Anna Karenina. O próprio Quixote, mostra-nos ele, tem uma relativa consciência do hiato entre seus devaneios e o “mundo real”.

Com uma prosa límpida e elegante, aliada a uma erudição absolutamente isenta de pose ou arrogância, Alberto Manguel faz de O viajante, a torre e a traça uma jornada fascinante pelo que ele chama de “ofício da leitura”, talvez a atividade mais libertadora e enriquecedora já inventado pelo homem.

 


*José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Publicou, entre outros, André Breton (Brasiliense) e organizou Quatro autores à procura do Brasil (Rocco). Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.

 

Veja também: 

:: O Estado de S. Paulo | Leitores são categorizados pelo ensaísta argentino Alberto Manguel

:: O Estado de S. Paulo | Escritor Alberto Manguel mostra como ler importa na vida em O leitor como metáfora

:: O Estado de S. Paulo | Livros de Elias Canetti e Alberto Manguel analisam autores e leitores

:: trecho do livro

 

 

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