Sesc SP

postado em 07/06/2018

Gêmeo de si mesmo

levi-strauss-dest2

      


Biografia escrita por Emmanuelle Loyer faz jus à obra do antropólogo Lévi-Strauss, dono de uma personalidade intelectual algo desconcertante

Por Eduardo Viveiros de Castro*

 

Talvez se deva ler este livro como a etnografia de uma trajetória afetiva e intelectual singular, antes que como uma biografia. Ele realiza mais que a proeza já considerável de entrelaçar, com erudição e sensibilidade, essas duas vertentes da vida de um pensador. Ele as insere em um amplo quadro propriamente antropológico, pois, ao seguir essa trajetória, aprendemos muito sobre o século que a marcou (e que ela marcou), sobre os países onde Lévi-Strauss nasceu e viveu, sobre as estruturas e os acontecimentos, as condições e contingências que estão na origem de sua obra. Entre as contingências, por exemplo, estão a demissão da USP, em 1937, justificada pelas simpatias à esquerda do jovem professor, e a interdição de retornar ao Brasil, em 1939, por ser ele judeu. Isso o levou a Nova York, à antropologia norte-americana, a Roman Jakobson e, finalmente, à revolução teórica conhecida pelo rótulo, simplificador como todos, de “estruturalismo” – nada menos que uma verdadeira refundação da antropologia, cujo substrato empírico e o referencial conceitual (a perspectiva) se originam na curta mas decisiva experiência de Lévi-Strauss junto aos cadiuéus, bororos e nambiquaras. O resto são “saudades do Brasil”, país ao qual só retornou, para uma visita protocolar, em 1985. Uma ausência intrigante de 46 anos que diz muito – muito que é embaraçoso dizer – sobre o desencontro recíproco que foi a relação entre Lévi-Strauss e o Brasil. Desencontro não sem relação, aliás, com outro desencontro muito mais profundo e tragicamente estrutural: aquele entre os indígenas desta terra e o “Brasil” inventado e devastado pelas classes dominantes.

Longe de ser o pensador monolítico apresentado pelos detratores do estruturalismo, Lévi-Strauss mostra uma personalidade intelectual algo desconcertante: esteta e cientista, surrealista e hiper-racionalista, bricoleur e engenheiro ao mesmo tempo ou, melhor dizendo, em “tempos” distintos. Ora austero, abstrato, glacial mesmo; ora temerário e flamejante, veemente em suas fulminações, abundante nas fórmulas lapidares. Autor de demonstrações  magicamente brilhantes, plenas de “aproximações abruptas e imprevistas” (lição de Max Ernst), mas por vezes enveredando por excursos capazes de erguer as sobrancelhas do mais bem disposto leitor. Amante de grandiosas modelizações geométricas como de minúsculos detalhes concretos e de saborosas expressões populares; praticante de um alto classicismo da forma e de um ousado modernismo do método. Dizendo excretar seus livros e se separar emocionalmente deles, mas dotado de prodigiosa memória para tudo que escrevera décadas antes, insistente na continuidade rigorosa de seu programa de mais de quatro décadas, de As estruturas elementares às Mitológicas. Antipático às filosofices alheias e às cabriolas metafísicas de seus conterrâneos, mas não dispensando ambiciosos sobrevoos filosóficos e solenes conclusões metafísicas (invariável e profeticamente pessimistas). Ora desfazendo do mito como discurso que nada diz, nada ensina sobre o mundo, ora admirando o pensamento selvagem por sua presciência da inanidade, apenas agora para nós evidente, do contraste entre o sensível e o inteligível, o humano e o outro-que-humano. Apaixonadamente obcecado pelo caráter contingente da história, mas afirmando a precedência racional da estrutura sobre o acontecimento – estrutura que não é, porém, senão a cifra de um percurso possível de transformações. Dizendo-se inclinado a privilegiar a contemplação das ilhotas de ordem que flutuam no magma aleatório da vida social, mas dotado de um excelente ouvido para a entropia e de um olhar de lince para as assimetrias e desajustes que constituem a forma mesma do real… Enfim; dir-se-ia que, como um personagem célebre de História de Lince, seu autor é como um “gêmeo de si mesmo” – gêmeo, como sabemos, desigual em si mesmo. Um pensamento em desequilíbrio perpétuo.

Lévi-Strauss foi convencido a vir para a USP, por Celestin Bouglé, com o argumento de que haveria “muitos índios na periferia de São Paulo”. Não havia. O embaixador brasileiro na França, em troca, disse-lhe que “não havia mais índios no Brasil”. Havia. Lévi-Strauss não chegou tarde demais ao passado, como lamentou. Talvez tenha chegado cedo demais ao futuro. Agora não só há índios na periferia de São Paulo e outras cidades brasileiras, como há muito mais índios, em todo o Brasil, do que em 1933. E agora começamos a saber quem são os índios, no sentido fundamental de reconhecer o quem de outros povos – de começar a entender o que eles nos obrigam (nos oferecem) a pensar –, graças, em grande parte, a Lévi-Strauss, que soube divisar no pensamento indígena uma alternativa absoluta à arrogância solipsista da metafísica ocidental. Este magistral estudo de Emmanuelle Loyer, como nenhuma outra das biografias já escritas sobre Lévi-Strauss, enfim faz justiça a sua obra. E esta, como se passa com todo pensador, é o que mais importa de sua vida, pois é o que resta de vivo.

 


*Eduardo Viveiros de Castro é etnólogo americanista, docente de etnologia no Museu Nacional (UFRJ) desde 1978. Autor, entre outros, de Araweté: um povo tupi da Amazônia (Edições Sesc) e A inconstância da alma selvagem (Cosac Naify). Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.
 

 

Veja também: 

:: Trecho do livro

 

 

Produtos relacionados