Sem fracassos nem sucessos
Após um longo processo de produção editorial, Fernanda Montenegro: itinerário fotobiográfico reflete não só a história de uma grande atriz, mas de parte importante da dramaturgia nacional
Por Maria Elaine Andreoti*
"Fracasso: não tive. Mesmo quando fracasso eu não fracasso. Porque tudo é resultado de um trabalho tão grande, é um moto-perpétuo, é uma roda. Porque, para ligar tanto para o fracasso, eu teria que ligar muito para o sucesso. E nada é mais efêmero do que o fracasso e nada é mais efêmero do que o sucesso. É assim que minha vida vai se dando, não é tão estanque."
Fernanda Montenegro
O trabalho de produção editorial da fotobiografia de Fernanda Montenegro começou, para mim, em meados de 2015 – e digo para mim porque, antes disso, tanto a autora como sua assessora, os editores e o designer já trabalhavam muito desde 2012 para tornar o livro viável.
A primeira prova que chegou em nossas mãos indicava que haveria muito material para selecionar, um fio narrativo para construir e um sem número de informações para confirmar. Mãos à obra: cerca de seis meses de dedicação diária das equipes editorial e gráfica para apresentar um boneco no fim daquele mesmo ano, além de pesquisas e planilhas infinitas de licenciamento de imagens, textos e todo tipo de material que ajudariam a reconstruir suas memórias. Conseguimos, e Fernanda recebeu a primeira versão impressa para poder apreciá-la durante suas rápidas férias entre o término das gravações da novela Babilônia e o início de outros muitos projetos com os quais ela se envolve simultaneamente – porque Fernanda é, antes de tudo, uma trabalhadora incansável.
Em fevereiro de 2016, veio o veredito: Fernanda agradecia o empenho, mas sentia que o livro não a representava. Apesar do abatimento inicial com que recebemos a notícia, pouco tempo depois ganhamos um novo fôlego, pois ela, em pessoa, queria reunir-se com a equipe de trabalho para participar do novo projeto que já se desenhava. De lá para cá, foram quase dois anos de encontros, ligações, mensagens. Um labor artesanal e de esmero para reunir fragmentos de 86, 87, 88 anos – porque cada novo ano de vida era mais um amigo para homenagear, mais um filme e mais uma novela para incluir nesse livro que ainda está sendo escrito.
E Fernanda continua: revisando, retocando, reforçando os prováveis pontos frouxos com sua memória incrível. Página a página, ela corrige informações, remexe suas caixas de fotos e textos, lembra-se de novas histórias, dos companheiros de carreira, organiza a linha do tempo de acordo com os marcos de sua vida, e não do calendário. Faz questão de trocar algumas imagens suas, belíssimas, por outras que privilegiem um cenário magnífico ou colegas de cena apagados pelo tempo, mesmo que a qualidade estética não seja tão boa. “Não se faz teatro sozinho, minha filha!” Enfim, ela explica como conseguiu se emancipar num tempo em que a profissão de atriz era associada à de prostituta, e num país que não sabia – e continua não sabendo – respeitar a mulher, fosse ela atriz, prostituta ou dona de casa.
Cada encontro se tornou, então, uma aula de história e de resistência alegre, contada com a segurança e a humildade de alguém que ousou atuar como protagonista. E todos os presentes, trabalhadores-espectadores, pudemos partilhar intensamente de seu amor pela vida – que continua inabalável –, pela profissão, por aqueles que vieram antes e depois dela, pelo companheiríssimo Fernando. E choramos a saudade de quem nem mesmo conhecemos, mas reconhecemos em nossos pais, irmãos, amigos e amores. Sem o glamour das divas das telas, sem fracassos nem sucessos. Porque Fernanda comunica algo profundamente humano, seja atuando, seja sendo ela mesma.
*Maria Elaine Andreoti é graduada em letras e mestre em literatura brasileira pela USP. É assistente editorial nas Edições Sesc São Paulo.
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