Cenário da guerra contemporânea
Participante da Bienal do Livro de São Paulo, o historiador Francisco Alambert fala sobre os levantes do século XXI e sobre como a sociedade é marcada por uma nova forma de violência
Por Gustavo Ranieri*
Muitas foram as vezes que diferentes populações, indignadas com alarmantes desigualdades sociais e em desacordo com o poder absoluto que as regia, promoveram, quase que espontaneamente, determinadas revoltas, insurreições coletivas, as quais nem sempre foram lideradas por alguém. Uma lida rápida da história francesa no século XIX, por exemplo, expõe esse cenário claramente, com destaque à acontecimentos como a Comuna de Paris, entre março e maio de 1871.
Lançado ano passado no Brasil pela Edições Sesc, o livro Levantes, fruto de extensa pesquisa do filósofo e historiador de arte francês Georges Didi-Huberman, reflete com perfeição o conceito do título da obra e tudo o que o envolve. Com diferentes ensaios, assinados por nomes como Judith Butler, Antonio Negri e Nicole Brenez, entre outros, e inúmeras fotos e reproduções de artes que expressam as revoltas, dividindo-as em gestos, palavras, conflitos e desejos, Didi-Huberman conversa com o passado, mas também com o muito presente.
Nesta sexta-feira, 10 de agosto, às 19h30, Francisco Alambert, mestre em história social, e Taisa Palhares, mestre em filosofia, falam sobre o livro e sobre esse cativante assunto no estande Edições Sesc, durante a 25ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo (Confira a programação completa aqui).
De quebra, Francisco Alambert também nos concedeu a entrevista a seguir sobre os levantes no Brasil contemporâneo e a transformação da violência no século XXI.
Vivemos no Brasil um momento de muitos levantes, de toda a ordem, deflagrados com o movimento de junho de 2013, o qual pedia a redução de vinte centavos na passagem do transporte público. Desde então, com o cenário político conflitante e a polarização de ideias, outros tantos tomaram as ruas. Como você observa isso em analogia ao livro Levantes?
Quando Didi-Huberman pensou essa mostra, esse livro, ele estava certamente com o olhar nessas questões que você está dizendo. De um lado, a preocupação dele era pensar, via imagens, a história desse tipo de ação, a ação do levante que toma a sociedade historicamente, que representa uma espécie de insatisfação com o tempo, sem que haja necessariamente um provocador. Ao longo do século XX o levante foi entendido fundamentalmente pelo conceito de revolução. Em grande medida o século XXI não vê mais a revolução em seu horizonte, mas, incrivelmente, o levante, que vem especialmente do século XIX, e da França, onde é o grosso do conjunto de imagens que ele organizou para essa mostra. Esse processo não é uma questão francesa, uma questão europeia, é mundial e nisso se refere essencialmente ao Brasil. O junho de 2013 foi de fato o centro desse levante não programado por ações de partidos, sem ações diretas politicamente organizadas, mas que se disseminou como pólvora, como levante, que vai explodindo sem um programa exato, com motivos variados. No caso do Brasil, há uma particularidade que se diferencia do projeto do Didi-Huberman ou do princípio que ele tomou. Ele não quis mostrar manifestações conservadoras da direita. Para ele, é importante a lembrança da Comuna de Paris, mas não do nazismo. Ele não vê o nazismo como levante igual.
Mas, por aqui, movimentos conservadores coexistem com os demais durante a tomada das ruas...
No caso do Brasil, nós tivemos juntíssimo aos levantes de junho, um levante conservador, um levante que foi antilevante. Não deixava de ser um levante, por motivos reacionários no sentido literal da palavra; ou seja, de reação, contra a ação. Foi o que aconteceu com os movimentos que tomaram as ruas e, cai entre nós, venceram a batalha das ruas, a batalha dos levantes. De modo que a gente tem uma equação politica muito curiosa, que não deixa de ser internacional também, porque esse tipo de levante também acontece na Europa, nos Estados Unidos, vindo da nova direita e grupos extremistas que defendem o poder branco, que são contra qualquer minoria.
E como você observa as novas formas de violência do século XXI, diferentes das que marcaram o século XX?
A violência mudou de ação. O século XX foi o século das matanças em massa com as guerras mundiais. E, sobretudo ao fim da Segunda Guerra Mundial, com a bomba caindo em Hiroshima, se iniciou algo que é a marca da guerra contemporânea. Não é mais a guerra entre Estados, mas, sobretudo, uma guerra na qual o alvo são as populações, como foi a de Hiroshima. A bomba atômica não foi contra o exército japonês, mas foi indiscriminadamente contra a população de uma cidade. As guerras contemporâneas tomaram essa forma, elas se tornaram micro e, nesse sentido, se espalharam de maneira completa pelo mundo inteiro, seja na forma de violência policial, repressão aos levantes, ou guerras concentradas, como invasão do Iraque pelos Estados Unidos, os novos campos de concentração. Cidades do mundo inteiro estão conflagradas em conflitos de toda a ordem, pautados pela concentração de riqueza, pela periferização da própria estrutura da cidade, que é mais ou menos a mesma ou vai se tornando mais ou menos a mesma no mundo inteiro, com um centro protegido onde vivem os ricos e privilegiados e uma periferia onde estão os pobres e refugiados. É um cenário de guerra, uma guerra pulverizada.
*Gustavo Ranieri é escritor e jornalista