Frechal: a história de uma luta
A partir de textos e imagens, a fotógrafa Christine Leidgens reúne a experiência de seis anos vividos na comunidade negra de Frechal, no Maranhão, e traça um panorama histórico desde a abolição até 1992
Por Gustavo Ranieri*
Em 1989, após registrar a vida de povoados ameríndios no Peru e na Bolívia, a fotógrafa belga Christine Leidgens migrou para solo brasileiro a fim de realizar uma vontade por demais presente em sua vida: travar contato com a história dos negros que para cá vieram durante os séculos de escravidão e compreender a realidade de seus descendentes no Brasil daquela época.
Um convênio entre a Bélgica e o Brasil permitiu que a artista por aqui desembarcasse. Imaginava de antemão que acabaria por ir à Bahia para dar prosseguimento ao seu intuito, mas o destino foi outro. Por meio de um trabalho desenvolvido pela instituição Cáritas Brasileira, Christine foi levada ao Maranhão, mais especificamente ao quilombo de Frechal, no município de Mirinzal. O impacto foi tão grande e a relação com as pessoas de lá tão intensa que a fotógrafa acabou por morar ali por seis anos, até o fim de 1995.
Durante esse período, fez centenas de registros fotográficos, que anos depois resultaram em uma grande exposição e, agora, na versão revista e ampliada do livro Frechal, quilombo pioneiro no Brasil: da escravidão ao reconhecimento de uma comunidade afrodescendente, com edição extremamente cuidadosa das Edições Sesc. Rico e completo, a publicação mescla dezenas de fotos com textos que abordam o tráfico negreiro do século XVI ao XIX, a formação do quilombo, os rumos da fazenda após o fim da escravatura, a memória oral de seus habitantes contemporâneos e o reconhecimento pelo governo brasileiro, em 20 de maio de 1992, como a unidade de conservação Reserva Extrativista do Quilombo do Frechal, com 9.542 hectares.
Transformações
“Quando cheguei em Frechal não demorei muito tempo para sentir duas coisas: a diferença entre índios e negros. Apesar dos índios serem marginalizados, discriminados, a cultura desse povo é vista, destacada pelo menos de alguma forma, enquanto que, no que diz respeito a cultura dos negros, exceto o Carnaval, algumas danças e pratos típicos, o Brasil os ignorou, deixando a cultura dos afrodescendentes à margem”, conta Christine Leidgens, cujo trabalho foi justamente direcionado a destacar e valorizar a cultura negra de Frechal.
A chegada da fotógrafa no quilombo foi justamente logo após um grave conflito entre os negros trabalhadores da fazenda que reivindicavam para eles a posse daquela terra, que se tornou propriedade privada. À medida que intensificavam a luta, diversas retaliações recebiam. No fim, conseguiram o reconhecimento do governo e a entrega das terras aos frechalenses.
A artista belga conta que, depois de um ano morando ali, realizou a primeira exposição de suas fotos para os habitantes, provocando um momento muito único de reconhecimento deles mesmos sobre suas histórias e luta. “Muitas pessoas nunca tinham se visto em uma fotografia e, ao se observarem ali, as emoções vieram à flor da pele, as pessoas ficavam muito arrepiadas, emocionadas. Foi nesse momento que nasceu a ideia do livro”, relembra. “Naquele período, eles falavam de mocambo e não de quilombo. Eram chamados de os pretos de Frechal. Já hoje eles têm um orgulho enorme de se afirmarem como negros e de Frechal ter aberto o caminho para outras comunidades serem reconhecidas de forma legal.”
O retorno
Depois de dezembro de 1995, quando voltou à Bélgica, Christine ingressou em novos projetos, mas jamais se esqueceu do Brasil e de Frechal. Diz ela que essa terra tupiniquim provoca nela um sentimento de pertencimento. Dez anos depois, em 2006, a fotógrafa regressou a uma Frechal completamente diferente e ao mesmo tempo igual. Diferente porque havia evoluído em recursos. Se quando foi para lá a primeira vez, não havia energia elétrica nas casas, resumidas a quadrados com redes e utensílios para cozinhar, o século 21 trazia suas marcas: “Hoje você chega e tem tudo lá, são casas como as das grandes cidades. Quando vivi lá, a maioria da população nunca tinha ido à capital São Luís. A escola, por exemplo, era pequena. Hoje os jovens são universitários, vão para outras localidades”, celebra.
Sem saber como seria a reação dos frechalenses em seu primeiro retorno, a artista descobriu que a sensação era como se nunca tivesse ido embora, tamanho eram os laços construídos. Assim, acabou voltando outras tantas vezes, sendo a última em janeiro deste ano de 2018, quando ficou em Frechal até junho para realizar uma grande mostra – homônima ao livro –, a qual havia passado por São Paulo entre novembro de 2017 e janeiro de 2018, com painéis expostos em estações da Linha 4 – Amarela do metrô.
“Quando o Consulado da Bélgica me pediu a realização dessa exposição também em Frechal, solicitei que, em vez de expor apenas vinte fotos [como havia sido na capital paulista], fizesse a mostra com oitenta. E lá fui eu para o Maranhão com esse material. Precisava de uma sala para colocar essas fotos, mas, por fim, a gente se beneficiou de uma antiga escola, a qual se tornou o Espaço Fotográfico do Quilombo Frechal, o primeiro espaço fotográfico afrodescendente no Brasil”, enfatiza Christine, antes de concluir: “Frechal me deu a oportunidade de viver uma experiência fotográfica que diz muito sobre mim”.
* Gustavo Ranieri é escritor e jornalista.
Veja também:
:: trecho do livro