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postado em 07/03/2013

A história ilustrada de uma poderosa ideia

A luta entre Carnaval e Quaresma (1559). Pintura que Pieter Bruegel, o Velho, fez da vida no séc XVI
A luta entre Carnaval e Quaresma (1559). Pintura que Pieter Bruegel, o Velho, fez da vida no séc XVI

      


Utopia, livro do historiador inglês Gregory Clayes, narra a busca pela sociedade ideal com uma grande variedade de fotografias, pinturas, gravuras, mapas, documentos, pôsteres e fotos de filmes

 

Ao longo dos tempos, o conceito de utopia variou entre os aspectos de um presente ideal, um passado ideal e um futuro ideal. Cada um deles pode ser mítico ou imaginário, ou ter algum fundamento real na história. O conceito surgiu de uma dimensão religiosa, que projetou mitos da criação e da vida após a morte, mas se desenvolveu rumo a uma esfera histórica especulativa, tal qual o dilúvio destruidor descrito inicialmente na epopeia suméria de Gilgamesh, escrita por volta do segundo milênio antes de Cristo. Os gregos (cujos “antepassados” foram os egípcios, de acordo com a tradição ocidental) idealizaram o presente secular, resumido pela vida na polis, e conceberam o futuro sob a forma de uma existência além da vida, em parte capturada na imagem dos Campos Elísios, descrita na Odisseia, de Homero (século IX a.C.). Egípcios e gregos constituem o passado dos romanos, que conceberam vários mitos de uma “era de ouro” original, ou Arcádia. Na Eneida (século I a.C.), Virgílio apresenta uma versão modificada de um ideal elísio, ao qual poucos virtuosos têm acesso. A Idade Média cristã conferiu ao Gênesis a autoridade de um relato histórico, acreditando na existência de um casal primordial, que habitava um bucólico jardim do qual acabou sendo expulso, e de um dilúvio que encerrou o estágio inicial da História. A Ásia e o Oriente Médio também produziram semelhantes mitos da criação e eras douradas.

 


A criação, como retratada nos versos iniciais do Gênesis em uma das primeiras traduções alemãs da Bíblia, impressa em Nuremberg por Anton Koberger em 1483

 

Hoje em dia, há os indivíduos que preveem um futuro dominado pela ciência, no qual especialistas irão fornecer as soluções para todos os problemas da humanidade. Existem também aqueles privilegiados que encaram o presente como o melhor estágio já alcançado pelos homens. E há ainda um número menor de pessoas que identifica um ponto no passado como um ideal para o qual vale a pena retornar, pois nele as necessidades do homem se harmonizavam com a natureza e o consumo se equilibrava com a produção.

Em Utopia: a história de uma ideia, o pesquisador inglês Gregory Claeys trata das aspirações por um mundo melhor – até mesmo perfeito – que existiram ao longo de toda a história, descrevendo as utopias que foram imaginadas em detalhes intrincados por filósofos, poetas, reformadores sociais, arquitetos e artistas. Professor de história do pensamento político na Royal Holloway, da Universidade de Londres, Gregory Claeys escreveu e organizou inúmeros livros sobre o tema, dentre os quais se destacam The Utopia reader [O leitor da Utopia, 1999], Utopia: the search for the ideal society in the West [Utopia, a busca pela sociedade ideal no Ocidente, 2000] e The Cambridge companion to utopian literature [O guia Cambridge para a literatura utópica, 2010].

 


Mapa do império britânico, 1886. Abrangendo um quarto da população mundial em seu auge, seus motivos, custo e legado continuam sendo controversos

 

Acadêmico proeminente no campo da história das ideias políticas, Claeys pesquisa, no livro, o desenvolvimento do conceito de utopia ao longo dos tempos e a influência que ele exerceu na literatura, nas artes, na arquitetura, na religião e na vida social. A essência de sua exploração dos mundos ideais se volta para os mitos da criação, os arquétipos do paraíso e do além, os novos mundos e as viagens de descoberta, as eras revolucionárias e o progresso tecnológico, as comunidades-modelo e os kibutz [coletividade comunitária israelita], as distopias políticas e ecológicas, as viagens espaciais e a ficção científica.

Os dois capítulos que analisam a ficção científica, aliás, merecem destaque especial por explorarem a natureza de um fenômeno muito próximo do leitor contemporâneo. Em ”O surgimento da ficção científica: novos mundos acima e além”, o autor trata do gênero literário que cativou a imaginação popular de uma maneira nunca alcançada pela ficção utópica. “Muito se discutiu se a ficção científica é exatamente uma parte da utopia, ou se, na verdade, a utopia é apenas um ramo da ficção científica. O termo ‘ficção científica’ só foi inventado em 1929 por Hugo Gernsback. Com a definição apresentada aqui, em que utopia, em resumo, é basicamente a representação formal de uma linha da tradição da comunidade ou cidade-estado ideal, a ficção científica é um subgênero em que há predominância dos temas ciência e tecnologia – utopicamente quando expresso de maneira positiva, ou distopicamente, quando usado de modo negativo. (Alguns escritores usam a expressão ‘ficção especulativa’, que convida a uma definição muito mais ampla e é muito mais próxima do domínio maior de ‘ficção utópica’.) Na versão mais estrita, ciência e tecnologia são fundamentais para a visão do futuro; o foco não são os meios constitucionais, institucionais, comunais ou quaisquer outros para melhorar a ordem humana e manter a segurança, harmonia, felicidade e tudo o mais. A ficção científica pode, contudo, funcionar como uma crítica ou sátira social” analisa o especialista. Já em “Utopia, ficção científica e cinema: a fronteira final”, Gregory Claeys aborda a bem-sucedida parceria que se deu entre o gênero literário e a sétima arte, inventariando os principais filmes que tanto fascinaram e ainda fascinam plateias em todo o mundo: “A transição da ficção científica para o cinema começa com filmes como Uma viagem para a Lua, dirigido por Georges Méliès em 1902, adaptado da novela Da Terra à Lua, de Júlio Verne. Depois disso, uma variedade de subgêneros produziria muitos dos filmes mais amados de todos os tempos, abordando e embelezando um grande espectro de temas de ficção científica”.

 


Pôster de Guerra nas estrelas, de George Lucas, 1977. Inovador, o filme explora a disputa entre o bem e o mal

 

Apresentado por meio de um arrojado e envolvente projeto gráfico, no qual se destaca uma vasta e rica iconografia que reproduz fotografias, quadros, gravuras, mapas e pôsteres de filmes, além de documentos os mais diversos, Utopia: a história de uma ideia constitui uma investigação atrativa e criteriosa da ampla diversidade da imaginação utópica. O leitor pode contar também com um acalentado número de notas publicadas do final do volume, cujo intuito é o de aprofundar certas discussões, e com uma abrangente bibliografia. Partindo das épocas clássicas e chegando aos dias de hoje, Utopia: a história de uma ideia traça o itinerário que a necessidade do homem de imaginar e construir mundos ideais vem trilhando desde sempre.

 

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